sal grosso


porcelana de Jessica Harrison

salgar o pensamento mórbido com muito mar
e todas ou quase todas

solitárias armadilhas faróis distantes da literatura

que coisa essa
de insistir
em experiências
poesia mar
e se ilhar

revoltosa dentro de mim
uma cobra d’agua se retorce

por dentro da cabeça as aranhas seguem
tecendo redes com meus cabelos brancos

o coração
ainda exposto
os dentes também

deslumbrada e trôpega

porque por dentro
uma cobra revolta-se
bem no estômago

e me sobe pela goela
esgaçando os caminhos

não consegue sair
porque há muito perigo lá fora

violência em cada fala de retrocesso ordem cinismo
deixa meu coração de feridas batendo mais fraco
pesado

mancando em saltos altos sustento a pose
quase me esvaindo pela goela com a cobra

sal grosso para os maus pensamentos
cansada demais dessa humanidade toda em nós

só piora
tudo deteriora

vira ruína
nossos dias nossas vidas

só piora
diz a velha que fala pra dentro

ego sum, ego existo

e acha
que fez um poema

enquanto navega em chuvas
da ilha ao continente
dentro de besouros poluentes

e do continente pela ponte
irrompem floemas
mar de chuvas

e de novo o desejo
a experiência

pra dentro do umbigo revolve a cobra
d’água bem inocente

o veneno
a velha acha
que vem de fora

 

 

 

Setembro

A primavera chegou assim…

infernal

trazendo tua primavera assim

no açoite de um vento descomunal

crivado de minúsculas estrelas

afiadas.

Chegou assim dilacerante

teus olhos nos meus errantes

a primavera chegou assim…

certeira

carregada do presságio que mora

nas minúsculas asas das formigas

aladas, rachando ao sol, aciduladas

corrosivas.

A primavera chegou assim…

no alforge teu natalício forrado

de oiro forjado o sanhaço, o curió,

o jacu que desperta as glaucas manhãs

extenuadas.

 

A revolta é fogo

IMG_20180904_123104.jpgAos 35
vou cumprir aquela meta-segredo-esquecida
disse ela
eu digo
35
é daqueles números estranhos
primos na aparência
mas bem enviesados
divide por 7
divide por 5
dois números
primos

Aos 35
dias de festa
descubro que não há
fresta
pra dor
e que a dor é importante
e que esse negócio de querer felicidade
o tempo inteiro
talvez seja até
meio facista
ela disse
eu digo
dor

Aos 35
cacos
que não pude juntar
[porque só dessa vez
jurei que não juntava
só se fosse junto
porque só Juju juntando
é muito triste]
me vi
no caco mais pequenino
naquele que a gente não vê
sempre
e por isso
não junta
naquele que dói
mesmo
quando não aparece

Aos 35
fogos
ativados
por descaso público
morri um pouco
mas quem morreu mesmo
foi o crânio de Luzia
e os ossos do Dinoprata
o maior dinossauro já encontrado no Brasil
quem morreu mais
que um pouco
foi o registro da cultura Marajoara
uma civilização pré-colombiana bastante sofisticada
que contava com mais de 100 mil pessoas
mortas
pelos mesmos
homens
brancos
públicos
que ontem
me mataram um pouco

Acho que a revolta é isso
Ibi
acho que as manchas no caderno
talvez sejam isso
pra mim
Ju
Ari
acho que tenho 35
como tu
Elisa
acho que somos mais
do que 35
mulheres
Lu
Mai
Ana
acho que sou vocês
também.

lugar coração-labareda corpo-seta

há noites em que não consigo dormir
porque é como se não tivesse
feito o importante do dia
como se faltasse
chegar naquele lugar que importa
e importa dizer isso? talvez nada
talvez nunca
talvez haja sempre o abismo de
comunicação
a correspondência não chega,
Bartleby,
e se morre de inanição
em muitos cadernos diferentes
em pequenas anotações perdidas
pra sempre
jamais organizadas
jamais lidas
estive num lugar ontem
em que não havia diálogo
nem eu conseguia
precisei me segurar na minha respiração
era só o que eu tinha
pra me manter
ontem à noite
tive um sonho inventado
sonhei que vagalumes
alumiavam o teto do meu quarto
e eu sorria
e minhas clavículas sorriam
e eu ia para o lugar
dos super-heróis de coração-labareda
corpo-seta
e, sim, eu vou cumprir
aquela meta-segredo esquecida
aos 35
e vai ser bom, labaredas

aguardo as próximas instruções
dos instrumentos de trabalho

E a revolta, o que é?

Um gosto amargo na boca?

Uma libertação?

Barricadas, caminhos fechados,

desvios para aonde devemos ir

de fato?

Um poema feito de cuspe?

Aquele pensamento ardente que

não encontra palavras

nem hora para se expressar…

Revolta revolta n’areia imensa da

minha solidão.

Re

voltar

ao passado?

Nada!

Quero o agora!

Não vim à vida à passeio.

Volta o gosto amargo

na boca

a convulsão no abdômem

do vômito

do riso desenfreado

do amor amassado

por palavras pesadas

de densidade re vol to sa.

Volta, retoma a revolta

que é vida e dor

que é corpo e

luta.