Carta para Ju Ben

Querida Ju B.,

Sua Preia-mar, zona limite entre a água e a terra, confirma minhas suspeitas: há algo na linguagem dos seus poemas absolutamente inalcançável aos meus dedos, e isso me intriga e fascina como se fosse ler hieroglifos ideogramas em língua estrangeira e isso é poesia, ler em língua estrangeira, ver figuras incompreensíveis que ressoam num lugar profundo, ou que vibram na superfície da pele (acabo de me lembrar o significado de martelo, aquele ossinho do ouvido; será disso que se trata, o martelo debaixo do travesseiro, um modo de proteger-se?).

Admiro a urbanidade dos seus poemas, e o modo como se colocam as palavras lado a lado sem jamais fundir-se, boca de jasmim, cartas-tótem, bolhas-casa, emesmoassextassãoazuisamarelasvermelhasmastemossortepoisosábadoéroxo eodomingoninguémsabe. Seus poemas me dizem sobre viver na cidade, e não compreendo seus poemas pois não compreendo como é viver na cidade, eu que nasci na cidade, mas de repente consigo dizer que viver na cidade é essa angústia de jamais fundir-se, e são seus poemas que me contam que jamais fundir-se é angústia, e que me contam que o que não compreendo de viver na cidade não é a cidade, mas que viver é jamais fundir-se.

É por isso que neste domingo de leitura de Preia-mar te envio em agradecimento um presente estranho para uso do martelo. Ou do travesseiro.

Um beijo,

Ana A.

P.s.: Bocas de jasmim. Juliana Ben, 2018.

Durar ou arder?

IMG_1454.JPGtalvez eu não tenha entendido a pergunta
isso acontece bastante comigo
às vezes
talvez
eu tenha tantas respostas
entaladas
entre o esôfago e a garganta
tantas ardencinhas
mal resolvidas
emboladas
assim
bem grudentinhas
que não sai

daí eu me lembro do marcelo
não, não
eu me lembro do martelo
[nosso instrumento de trabalho]
e me vem uma luz
[uma ardência
que dura
o suficiente
para seguir
ardendo]
eu prefiro
a enxada
é
definitivamente
eu prefiro
a enxada
lembra enxurrada
estalada
cocada
bananada
termina com A
A de buceta

um dia me disseram
inclusive
que tenho cara de A
foi numa oficina da Telma Scherer
sabe a Telma Scherer?
conhece a Telma Scherer?
pois é
cara de A
A de enxada

será que cabe uma enxada embaixo do travesseiro?
será que arde?
quanto dura um sono sob a ardência de uma enxada?

a enxada é um instrumento produtivo
ela cava
ela lavra
ela assenta
ela cobre

enxada é vida

ok, eu sei que ela é pesada
pouco prática, assim,
para sair, carregar na bolsa
ir na balada
levar pra casa do boy

eu sei
mas acompanha a potência de uma enxada
a presença de uma enxada
com uma enxada
a gente vai longe.

volátil

duro no tempo que arde
ardo sem medida
do tempo
que não dura eu vivo
de ardência
ar respiro me falta
espaço nas narinas derrama
ar logo por outras vias entra
segue (talvez tímido transforme
no ouvido)
pelo estômago engasga
improvável úmido
delírio nevoento anuviado voo
sem pouso permanente vapor
se vai na temperatura ambiente
se derrete nas curvas o ponto
de vista é outro
gira facilmente se enrola
nos caules segura
nos espinhos pinga gota
(diz-se volátil de animal
que voa) eu nunca
voo sonho me enrolo
perco a parada os poemas caio
dou voltas reviro cavo saio com a fuça cheia
de terra deixo
cair os vestígios são muitos
cato tudo na bolsa grande
da minha barriga repetidas vezes
no mesmo buraco insisto as vísceras
roncam falam falam falam digo
ao contrário tudo
no instante seguinte
agora arde dura
no tempo da ardência
te convido
pra brincar de vir
ar

Opus sadicum versão pútida

Ousas acaso querer gozar?
Mulher de Putfar
O mundo enfermo
tristezas caudalosas debaixo
de pontes prestes a desabar
e a louca Salomé pensa
em porcas às soltas

Ouves acaso o doce glosar?
Digo que a porca
foge dos estampidos na carne
engolindo a porra da literatura
Finge matar a sede do versar

Malditas

Balas

Latem

Cara flor do lodo
não cortarás fora
a cabeça do macho
após tua dança

Terás que escolher
Implodir ou explodir

Teus órgãos liquefeitos
levarão ao êxtase reis entronados

A porca puta não é Clódia
que retratava conas e caralhos e
profanava as sacristias

Cara leitoa desajeitada
fuja da esporrada da literatura
de nada te servem as línguas lascivas
serão cortadas com as cabeças

Por minhas pálpebras entram
cordas de versos na madrugada
farpas ferem a gelatina do meu olhar
pedaços de palha saem pelo crânio

Deflorado meu cérebro equilibra-se
na corda suja da memória afora

A santa foi trespassada nas entranhas
A puta na massa imaginária

Sempre se esvai uma ferida de dentro
Res pública

Flores do mal crescem
na terra onde sonhei aldeias pares
A puta velha carrega em seus membros
metais pesados demais
não dá cambalhotas
em meio a hortaliças orgânicas
arrasta-se impura
sobre livores cadavéricos

misérias acordam
a puta farta
de avessos e mistérios

misericórdia

na língua inflamada
devolvo esse pus
jorrado da garganta
da puta sagrada

 

A mulher pública

womendrinking

Se a mulher escreve e publica
seus pensamentos, ideias, poemas, romances
e o público bate palmas, uiva, relincha e rejeita em coro
ou faz corações com as duas mãos e outros gestos de congratulação
ou simplesmente se arrepia e se toca no silêncio solitário de seu corpo ou quarto
a única certeza é que
pega
mal
dita
escrita
livro
mulher

se a mulher ocupa um palco púlpito ato rua câmera tela
e exibe a cara-corpo
faz soar no microfone as palavras
no meu ouvido – ai!
públicas
lúbricas
lutas
furiosas
revoltam
mal
ditas
sejam

fazer versos não faz mal
publicar sim
aquela foto indecente na orelha do livro
a estante repleta no fundo
o vídeo da entrevista
não engana
meu
público
púbis
mal
dita
escrita

tomar chá pega bem,
é saudável e elegante
tanto melhor se for de tarde com amigas no recato do lar
tomar chop – cerveja-vinho-vodka-cachaça-whisky-tequila-saquê-conhaque-fernet no público pub
pega mal
dita
línguas más dizem
falam que
escrever no guardanapo
um poema bêbado barco
o número do telefone endereçado a alguém
pega mal
muito mal
dita

dita
dores
abundam
no público espaço
no banheiro toilete wc fb
cagam regras obtusas e podres
enquanto
falo
grande
em alto e bom som
poetisa
não
poeta
sim