antigo sem título em resposta à chama

 

Imagem: foto a partir de instalação de Márcia Cardeal

 

amiga eu aqui desse lado padeço de mesmas diferentes dores
que cansativo isso dos processos sucessivos
quanto processo quanto processo
caminhar sempre em desalinho
sonhar do alto de bandeiras
sem nome

como sonhas
como sonhos
sonhando comemos
bolhas de mar

vertigens no olhar também
já confessadas muitas vezes

porque
me repito

réptil esquento
o sangue numa caldeira fria
e arde
e envenena

como libidinosa correia enrodada em minhas pernas
se elas caminham
se elas vivem

as pernas
se elas abraçam o corpo
se elas vibram

se bato com elas o chão agora conduzindo correntes de sangue vermelho da vida e na ponta um sapato fetiche a terra debaixo dos meus pés a força dessa fêmea tão etérea tudo se mistura

desalinho ossos dentes cabelos pernas ajustes nas ancas que suportam
o peso porque peso não é para mulher diziam alguéns algures

e quase parnasiana ruge de vermelho da vida
com um escorpião na boca
uma pretensa sereia

daqui te respondo de uns fogos porque nos fogos acho que algo se inflama
essa sede de vida
esse amor essa cachaça
e toda poesia e toda vida
essa sede de dádiva
essa sede de dúvida
essa sede

e alguém poderia dizer estávamos falando de fora do seu umbigo
onde rege a desgraça a desforra a briga por um naco
de vermelho da vida

bem no compasso
me lago no espaço
desaguada desovo

mar e sargaços

peixe e onça desfiro refiro reviro
só porque morro logo ali como morrem
moram ao meu lado e vivem vigoram vivem
também muitas coisas acontecem entre o céu e a terra
além de sua vã filosofia

minha amiga bandeiras vermelhas com nomes insuflamos algumas às vezes alhures enfrentando cada uma seus próprios dragões rubros ou cinzentos há sempre quem lembre do vermelho que foge dos olhos a chama o fogo que se apaga logo ali e de repente é simplesmente deixar de existir e daí que o presente de novo é só o que pode ser verdadeiro mas também fugidio porque se penso nele logo

ele me escapa

o presente sempre escapa e memórias avolumam-se no trajeto de tudo e eu preciso ainda pensar na conjuntura política na macro estúpida estrutura fascista na esquisitice

de ter uma rolha sei lá o que é qual é o problema
desses que veem no viver do vermelho da explosão de cores
[isso tudo que já não é mais no estado de exceção]
um interdito um rito maldito

surge em abismos aquele futuro blade runner aquele futuro de quadrinhos cinzentos aquele futuro do anjo que olha pra trás sem conseguir voltar aquele futuro feio
pouca cor pouca vida pouco amor pouca partilha

e vocês irão me dizer então
sempre foi assim tanta barbárie
a desgraça só tem gradações de lugar, volume e intensidade

mas a graça a graça dos dias a graça de estarmos em plena letargia da poesia certas vezes na noite no café na erva dividida da cuia da cuca que beleza compartilhar minhas dores e delícias e todos os demais clichês que andam na garupa de unicórnios quando convivemos

se pudesse agora te diria
sonha comigo hoje

só não dá pra juntar
os corpos na embarcação
e compartilhar o copo

mas letras enferrujadas
forjadas com a carne de
âncoras naufragadas
oceanam de ilha em ilhas

 

4 respostas em “antigo sem título em resposta à chama

  1. lutiscoski seus poemas tão povoados dessas mesmas criaturas que me dão e tiram e dão e tiram o sono, a fome, o sossego, se elas caminham, se elas vivem, elas abraçam o corpo, elas abraçam o corpo, elas abraçam o corpo, me ecoa na casa

    Curtir

Deixe um comentário