raízes feridas

arte de Luzia Rocha

Em cada rincão desta terra, limite medido à colônias hereditárias, frestas
por onde o odor azedo de esterco passa
há uma gota de sangue
um sinal de cansaço
um sabor de desgosto.

É preciso, sempre dissimular e limpar…

avidamente a roupa com esfregão – mancha é preguiça. Limpar o mato alto que é sujeira,
o terreno das árvores, as plantas dos pulgões, das lagartas, a parreira da doença que ela ainda
não tem. Limpar a carne da sujeira do desejo porque ócio é desleixo. Livrar o corpo da dor
constante como a sujeira que diariamente surpreende, a sujeira, não a dor.

É que o esfregão, o lava-jato, a roçadeira, a motosserra, o trator, o pulverizador, e o patriarca
roncam e zunem ferozmente

porque é preciso a todo instante dissimular…minha voz altiva…

É que nesta cada tão minha quanto o tempo do pinheiro contíguo me diz
nesta terra tão eu quanto sua altura imponente
tenho raízes feridas.

Caminho a passos pesados através do mato salvo dentro das botas de borracha. Caminho lento
por entre contratos assumidos, assinados, território expropriado – meu corpo.

Será preciso anos de esquecimento até que em cada confim desta terra já não haja
na morte e na vida
rastros de rancor nem gotas de veneno.

À hora magenta do dia
tenho raízes feridas
sou terra judiada
sonhando em rebrotar.

mãe, a mãe trabalhou na roça?

mãe, a mãe trabalhou na roça?
a gente pintava o cabelo
eu nunca tinha feito
essa pergunta
não, na roça não

a gente pintava o cabelo
da mãe
quis saber o porquê
das lacunas
quis preenchê-las todas
de uma vez
penso nas coisas que herdei
da mãe
dentre elas essa fome

acho que a mãe
não percebeu isso
não vou conseguir dizer
desse abismo
na roça não
a mãe trabalhava
no mercadinho ali bem na curva da rua que vira pra casa da vó
lembra desse mercadinho?

não lembro mas pergunto
e depois?
fui morar com a tia dete
que era casada
tinha um colchão assim na sala pra mim
ela faz o gesto do colchão ela parecia ter
carinho ela disse
era legal
era melhor
do que morar com a vó
eu queria saber
e se saía a noite, se fazia alguma coisa
além de trabalhar
não fazia nada, só trabalhava
eu queria saber
por quê
ah quando mais nova a gente até ia na discoteca
todo domingo a vó dava um dinheirinho como se fosse 10 reais assim
e a gente ia, dançava

eu queria saber
do que a mãe gostava
se era bom ir na discoteca
ô se era! anos 80, né filha. a gente dançava bee gees, abba, essas coisa
dançava um monte

a mãe gostava de dançar

a gente pintava o cabelo
e os aniversários, mãe?
eu queria saber
se ela comemorava
não fazia festa, filha
eu queria saber
por quê
não fazia nada não tinha muita gente não tinha dinheiro

a mãe gostava de dançar

lembro
(não digo desse abismo)
da dor que ela contava
nas costas
que era chato trabalhar
de caixa
eu queria saber
quando foi que a mãe decidiu
que queria ser professora
a vó que queria que eu fosse 
e se ela gostava
mas eu não gostava muito

a mãe gostava de dançar

e essa foto aqui na moto, mãe?
continuo querendo preencher
as lacunas
é de quando eu era solteira
um amigo da mãe que tirou
ele me ensinava a andar de moto
a mãe não me diz
se ela gostava
de andar de moto

eu não disse
mas foi a mãe
a minha primeira referência
feminista
na época nem ela nem eu
sabíamos disso
hoje também
não digo
desse abismo

manual para descolar

IMG_1825a mãe era descolada
dos cabelos que insistia em mudar
a cada estação
das roupas que seguiam
a moda
da maquiagem
que ela não usava
dos sapatos comuns
dos quais ela não gostava

descolada
do corpo
e das ideias
que envelhecem
ela também
era
descolada
dos vínculos obrigatórios
do medo de afrontar
de costurar

durante muito tempo
achei que ela
não tinha medo
de nada
que os cacos
não a cortavam
que os fios
não a prendiam

aprendi com ela
a juntar os cacos
e ignorar
os pequenos cortes
a refazer o tecido
de dentro
no escuro
a olhar para frente
e para cima
a decidir

ela me deixava decidir
sobre quase tudo
e eu gostava disso
ela conta que, certa vez,
precisava me arrumar para sair com minha tia
acho que iríamos ao teatro
eu devia ter cinco, ou seis anos
ela, minha mãe,
deixou eu me vestir sozinha
porque eu disse que não precisava de ajuda
quando eu cheguei na sala
ela conta que eu estava com a maior combinação
de tecidos e cores que ela já tinha visto
e que por um momento pensou:
“será que a deixo sair vestida assim?”
mas eu estava tão feliz, de acordo com ela
que me deixou sair vestida assim
do jeito que eu queria

ela gostava de me ver
sempre
feliz
me trazia chocolates
na volta do trabalho
me fazia cosquinhas
até minha barriga doer tanto
que eu quase não conseguia respirar

a mãe era descolada
do serviço público
tanto que o largou
e foi fazer teatro
eu não sabia
o que isso significava
para ela
mas sabia
que estava feliz
pela decisão
pela mudança
a mãe não tinha medo
de mudar

o que eu não sabia
na época
durante muito tempo
eu não soube
é que ela sentia dor
e que a dor que ela sentia
eu também sentia

eu soube
que ela sentia medo
porque todo mundo sente medo
em algum momento
e tá tudo bem sentir dor e medo, às vezes, mãe
tá tudo bem chorar muitas vezes, mãe
a gente não precisa chorar sozinha no escuro, mãe
não
sempre

a mãe descolada
torna-se
deslocada
pois não se espera
uma mãe descolada
mesmo quando a filha
é descolada
mesmo quando a vó
é descolada
se você é mãe
você não se desloca
só se você for louca
daí você se desloca
e vira
mãe
descolada

a mãe é descolada
ainda
cada vez mais
talvez
esses dias fez uma tatuagem no braço inteiro
e me mandou uma foto com a seguinte legenda:
olha o que a tua mãe tá fazendo à beira dos 60 anos!
achei o máximo
ser descolada
aos 60

aos 36
ainda tenho algumas amarras
que aos poucos
vou descosturando
aprendendo a desaprender
descolando aquelas partes
que carrego
por descuido
tecendo
o que posso
e o que não posso
eu descolo
e fico bem descolada
como minha mãe

máquina de costura

IMG_1809na casa da minha vó tinha uma máquina de costura
que nunca vi em uso
mas minha vó dizia que usava
que havia usado
que sabia usar
mas eu sabia
que minha vó
não era uma mulher prendada
minha vó tinha o espírito livre
e eu tinha orgulho dela por isso

a máquina era simples
compacta
e tinha aquele pé embaixo
que aguçava minha curiosidade
como funciona uma máquina de costura?
é preciso ser habilidosa com pés e mãos
eu pensava
é preciso ter atenção e destreza para passar a costura no lugar certo
para não furar o dedo
para não manchar de sangue
o tecido
branco
minha vó gostava de cores 

eu pensava que
talvez
a máquina de costura da minha vó
fosse herança de sua mãe
minha bisavó
mas essa também não era mulher prendada
minha bisavó era mulher brava e decidida
e adorava futebol
conta-se que andava sempre com um radinho de pilha
e quando seu marido perguntava
Ondina, o almoço ainda não está pronto?
ela, agarrada no radinho,
olhava firme na direção do marido
e lhe esticava o braço com a mão aberta
como quem diz
stop
estou fazendo algo mais importante
e você me vem com cobrança de comida na mesa?

seria a máquina de costura
herança da mãe de minha bisavó?
dessa mulher sei muito pouco
chamava-se Laurinda
casou-se aos 16
viuvou aos 31
teve 5 filhos
e um marido que lutou na Guerra do Paraguai

imagino que Laurinda usasse a máquina de costura
para vestir seus filhos
para tecer os sonhos
de outros
para alinhavar as aventuras
não vividas
para pregar
o choro
a dor
o medo
a solidão

quando me lembro da máquina de costura da minha vó
empoeirada no canto de um quarto escuro
coberta
por uma capa transparente
e mais tarde
invisível
guardada em um armário aéreo com portas bem fechadas
sinto angústia
por não saber usar a máquina
sinto alívio
por não precisar saber.

Máquina

 

Cable Telefónico Quipu (2006)

Cecilia Vicuña, Quipus.

Disseram que era sobre
menstruação. E ponto.
Acusaram as Índias:
lá, a menstruação
é um tabu.

Oh!
na Índia
um tabu.

Nas Américas não:
as mulheres trabalham
igualmente mesmo
que sangrem
mesmo que tomem
lícitas injeções
pílulas milionárias
para que coagulem
tudo que flui pelo cérebro
pelo útero pelo coração
e não sangrem.

Nas Américas
as melhores
mulheres
não
menstruam
não
parem
trabalhem
sem
cansaço
sem descanso.

Na Índia
usam velhos tecidos
de cores e estampas
mas um homem
sim, um senhor
muito higiênico
que não menstrua
inventou uma máquina
muito higiênica

Nela, dezenas de mulheres
limpas e com máscaras
higiênicas para tampar
suas bocas de mulheres
produzem novos
tampões para mulheres
descartáveis:
plástico, algodão branqueado
e cola
para serem plantados
na terra para ninguém
notar.

Na terra
onde caiam
nada brota:
assepsia
is a thing.

O trabalho das mulheres
na Índia rural
é tão barato
que até as mulheres
da Índia rural
poderão comprar
um absorvente.

Que importa
Se é feio? mas
muito eficiente!
E eficiência
Is a thing.

E elas não terão mais
as unhas sujas de terra
e elas não terão mais
o dia perdido
no cuidado dos filhos
e elas não terão mais
que plantar, que colher:
perderão os dias
na máquina do homem
em que podem trabalhar
mesmo sangrando.

Há também uma jovem na Índia
rural, entretanto
muito urbana, de jeans, moleton
possivelmente lycra
quer ser da polícia
prefere o trabalho
ao casamento
e estudantes americanas
acham louvável.

Estudantes americanas
investiram
to start up her
para que ela
empreenda
– e empreender
yes, it is
a thing–
que empreenda
na Máquina
o dinheiro que poupar
do trabalho das companheiras
que não falam a palavra
menstruação
e provavelmente
não pronunciem mesmo a sílaba “ão”
como em rebelião, revolução
dado falarem outra língua
e agora trabalham
sempre que há luz.

Mais-vale
para não terem que implorar
ao marido ao pai aos irmaõs
algum dinheiro
para um presente destinado
ao marido ao pai aos irmãos
ou para um tampão
daqueles mais bonitos
com a foto da moça branca
de biquini branco
no mar
escondendo mais fundo
o plástico fedorento
que resta
do tabu.

Era sobre menstruação
,
disseram.

Uma vírgula.

 

 

 

A.I. A.I. A.I.

IMG_1413Adelaide Ivánova dorme
com um martelo embaixo
do travesseiro
apenas por precaução
há penas
há duras penas
no seu colchão

Adelaide Ivánova não tem medo de morrer
e
por isso
abre o seu bocão

ela sabe que espera
ela sabe quem
espera na espreita
na cela
do seu coração

se Adelaide Ivánova fosse uma casa
ela teria tijolos
à vista
e na porosidade de sua tez
sujaríamos as mãos de vermelho