o alaranjado das bergamotas

eu quero falar das bergamotas
que caem da árvore da vizinha

eu quero falar
das minhas duas mãos
abertas
cheias
sem poder pegar uma câmera
sem querer pegar uma câmera
sem mais ninguém por perto
pra compartilhar
o alaranjado transbordante

só minhas palavras nesta página

que sempre podem se transformar
nos olhos do grande outro

de qualquer modo
todo dia eu tento
falar dos momentos
em que o abacateiro
nos dá abacates
e eles não cabem nas minhas mãos

Metafísica?

minhocas

aos meus alunos da turam 2D, estudantes no IFC em Concórdia

Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E pensar muitas cousas cheias de calor.

Álvaro de Campos

O professor de química perguntou
o que é vida para mim.
Dei uma resposta besta
apressada
tão superficial que
nem lembro.

Lembro que de
minha voz saíram
ruídos dissonantes
sons de coisas insignificantes
sacolinhas de mercado
talheres caindo no chão…
coisas assim
sem nenhuma importância.

O professor de filosofia respondeu
que “a vida é uma causa perdida”…
senti um peso
tão grande que
a aula de física sobre gravidade
passou a fazer o maior sentido.

Fiquei pensando que esse tipo de pergunta
se faz para poetas
eles sabem dizer bonito.

Mataram uma minhoca da
maneira mais perversa possível
(mas é tudo em nome da ciência!).
Mataram a minhoca para
falar da vida!
Mataram a minhoca para
encontrar sua alma animal?
Oi?
Essa aula não entendi
preciso criar coragem e
perguntar mais uma vez ao professor.

Mas a pergunta ficou ecoando
como aquelas músicas que grudam
igual chiclets nas tripas do
pensamento da gente.
A pergunta
“o que é vida para você”
volta e volta
e não para de voltar
sempre num volume mais alto.

Pensei em outras perguntas mais
fáceis de serem respondidas
pensei outras músicas
inventei outros dramas
mas a pergunta…
irritantemente
voltou.

Arrisquei uma definição que passava
pelos mistérios
pelos enigmas e
pela linguagem, mas
mordi a língua e calei.

Talvez a vida seja o meu silêncio
e o gosto do sangue que
pingou da minha língua e
escorreu do corpo da
minhoca arregaçada
o gosto de alface com terra que
a minhoca tem.

Talvez a vida seja
minha vontade de
provar o sabor da minhoca
enquanto ainda vive e se debate
entre meus dentes…
Músculo minúsculo da terra.

Sangue
terra
quadricoração.
Afinal a vida existe
sem definições
nem ciências
nem compreensão.

Essa máquina do mundo segue veloz
ainda que eu não exista
ainda que você não exista.

E fecho os olhos apertados para
sentir melhor o gosto e o
nojo da minhoca vivendo e
morrendo em minha boca.
O nojo me invade e não penso
em mais nada.

 

 

Minha escrita, minhas regras

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Eu não gosto quando as pessoas me dizem para escrever sobre algo, só porque eu escrevo. Eu gosto de escrever, mas não gosto que me digam o que fazer. É curioso, sabe, porque eu tenho um certo hábito, não é sempre, sabe, é quase sempre, só, de dizer, assim, pras pessoas, o que fazer. Não que eu goste de mandar, longe de mim, eu que sou uma pessoa tão… tranquila, quer dizer, as pessoas dizem que eu sou uma pessoa tranquila, algumas pessoas dizem, na verdade, mas esse não era para ser um texto sobre mim, mas se tudo que a gente pinta é autorretrato, então… mas não era sobre isso que eu queria falar, o fato é que eu não gosto dos outros quando eles sugerem que eu escreva sobre um assunto que a eles interessa. Vocês não percebem que escrever é exercitar a intimidade consigo mesma? Eu acho engraçado, sabe, que essa interpelação a outra, para que ela escreva sobre algo, para que dê vida e registro a ideias que não são suas, costuma ser uma interpelação gendrada. Me explico, pergunto: quem são os alvos de tais interpelações? É engraçado, sabe, porque eu não vejo homens sendo interpelados dessa forma, eu não vejo gente se intrometendo na escrita dos homens, eu não vejo gente sugerindo assuntos maravilhosos dos quais estes homens deveriam dar conta. E eu vejo uma diferença, sabe, entre mandar alguém fazer alguma coisa qualquer [isso acontece, às vezes, disso eu entendo] e se intrometer no exercício da intimidade alheia. Pior: intrometer-se naquilo que nos constitui como sujeitos públicos. Sim, somos mulheres públicas que tecem sua publicidade na intimidade. Existe uma diferença entre dizer “vá buscar o guri na escola e aproveite para comprar algo para o almoço [já que todo o resto não é você quem faz]” e dizer “escreva sobre o monumento dos açorianos, ele é tão bonito, tão carregado de História“. Não, eu não vou escrever sobre o monumento dos açorianos. Eu não vou escrever sobre o surto que sua tia teve no avião. Eu não vou escrever suas ideias ordinárias. Escreverei apenas sobre o que me toca, sobre o que toca as mulheres nas quais eu confio. Minha escrita, minhas regras.

 

língua quebra ossos

a minha Musa antes de ser
a minha Musa avisou-me
cantaste sem saber
que cantar custa uma língua
agora vou-te cortar a língua
para aprenderes a cantar
a minha Musa é cruel
mas eu não conheço outra

Adília Lopes

vem cá
que hoje eu vou te falar
com uma língua raivosa

não me interessam tons brandos
só quando eu os quero
não me interessa convencer autoridades
eu faria e faço mais
coisas por minha vontade
do que há entre o céu e a terra
céu e terra são limites que desconheço
e domino bem

faço quando quero
minha santimônia
pejorativa
devotamente afetada

meu afeto
é excesso, você diz
sempre vai ser, para quem não sabe lidar
com o que sobra
lembra
que o que sobra
só sobra
nessa sua lógica
aqui fora tem muito
que você não entende

hoje eu não vim
para falar baixo
venho mesmo para quebrar ossos
ô abre alas!
tenho pouca paciência
para cerimônias
apenas para os carnavais
pasme!
e para a pessoalidade dos encontros
em que você não está

não correspondo à ternura
esperada da minha lábia
supostamente doce
supostamente delicada

nas entranhas
borbulham coisas que você não imagina
fervo e firo
onde você menos espera
sou mulher
das zonas que você não suporta

quebro ossos por qualquer lugar
por onde
eu passo

Opus sadicum versão pútida

Ousas acaso querer gozar?
Mulher de Putfar
O mundo enfermo
tristezas caudalosas debaixo
de pontes prestes a desabar
e a louca Salomé pensa
em porcas às soltas

Ouves acaso o doce glosar?
Digo que a porca
foge dos estampidos na carne
engolindo a porra da literatura
Finge matar a sede do versar

Malditas

Balas

Latem

Cara flor do lodo
não cortarás fora
a cabeça do macho
após tua dança

Terás que escolher
Implodir ou explodir

Teus órgãos liquefeitos
levarão ao êxtase reis entronados

A porca puta não é Clódia
que retratava conas e caralhos e
profanava as sacristias

Cara leitoa desajeitada
fuja da esporrada da literatura
de nada te servem as línguas lascivas
serão cortadas com as cabeças

Por minhas pálpebras entram
cordas de versos na madrugada
farpas ferem a gelatina do meu olhar
pedaços de palha saem pelo crânio

Deflorado meu cérebro equilibra-se
na corda suja da memória afora

A santa foi trespassada nas entranhas
A puta na massa imaginária

Sempre se esvai uma ferida de dentro
Res pública

Flores do mal crescem
na terra onde sonhei aldeias pares
A puta velha carrega em seus membros
metais pesados demais
não dá cambalhotas
em meio a hortaliças orgânicas
arrasta-se impura
sobre livores cadavéricos

misérias acordam
a puta farta
de avessos e mistérios

misericórdia

na língua inflamada
devolvo esse pus
jorrado da garganta
da puta sagrada

 

A mulher pública

womendrinking

Se a mulher escreve e publica
seus pensamentos, ideias, poemas, romances
e o público bate palmas, uiva, relincha e rejeita em coro
ou faz corações com as duas mãos e outros gestos de congratulação
ou simplesmente se arrepia e se toca no silêncio solitário de seu corpo ou quarto
a única certeza é que
pega
mal
dita
escrita
livro
mulher

se a mulher ocupa um palco púlpito ato rua câmera tela
e exibe a cara-corpo
faz soar no microfone as palavras
no meu ouvido – ai!
públicas
lúbricas
lutas
furiosas
revoltam
mal
ditas
sejam

fazer versos não faz mal
publicar sim
aquela foto indecente na orelha do livro
a estante repleta no fundo
o vídeo da entrevista
não engana
meu
público
púbis
mal
dita
escrita

tomar chá pega bem,
é saudável e elegante
tanto melhor se for de tarde com amigas no recato do lar
tomar chop – cerveja-vinho-vodka-cachaça-whisky-tequila-saquê-conhaque-fernet no público pub
pega mal
dita
línguas más dizem
falam que
escrever no guardanapo
um poema bêbado barco
o número do telefone endereçado a alguém
pega mal
muito mal
dita

dita
dores
abundam
no público espaço
no banheiro toilete wc fb
cagam regras obtusas e podres
enquanto
falo
grande
em alto e bom som
poetisa
não
poeta
sim

Poema pras’amiga (pastiche da Quinta Santa Maldita)

O riso que jorra forte

da mordaça de sua boca

rasga o retrato bem

comportado da moça.

 

Abrasadas

Amélia e Dona Adelaide

comem da placenta

contra a própria reputação.

 

Braba e suja agora, é a mulher.

Duras Florbelas

falam de amor

falam de deus

de seus corpos flechados, possuídos pela poesia

Cosa casi sagrada.

 

Foram vários tiros,

Meretrizes.

Depois de tanto verbo a pessoa morre.

Esse cadáver

insulto público

pega a maldita!

 

Dis(puta)

no trecho vertiginoso.

Sempre se esvai uma ferida de dentro.

Meu glorioso pecado

te absorvo, te secreto

mereço, merecemos.

 

Mulheres de Jerusalém

Tentáculos, mandíbulas, vórtices.

Mulheres de Desterro

a pele assaltada de indecisão e

o corpo vai à frente do pensamento.

 

A escrita da luz

A lucidez é histérica

lima periférica.

A lentidão do boi na

vida marginal do milho.

A gente nasce de um grito e mesmo assim têm medo da dor

(dita)dores

dis(puta)m

enquanto dormimos com um martelo embaixo do travesseiro

porque não cabe tudo em apenas um buraco negro da noite.

publicar pra que(m)?

Amelia_de_oliveira

 

Amélia de Oliveira foi noiva de Olavo Bilac, e quando publicou seus primeiros versos, recebeu uma carta do amado. Pensamos que esse texto apresenta uma das muitas respostas possíveis à pergunta “Por que as mulheres publicam menos que os homens?”.

São Paulo, 7 de fevereiro de 1888

Minha Amélia,

Antes de tudo, quero dizer-te que te amo, agora mais do que nunca, que não me sais um minuto do pensamento, que és a minha preocupação eterna que vivo louco de saudade. Já te disse que há mais de dois meses tinha eu vontade de te escrever em liberdade, para coisa urgente. Trata-se sito: não me agradou ver um soneto teu no Almanaque da “Gazeta de Notícias” deste ano. Não foi o fato de vir em um almanaque o soneto que me desagradou: desagradou-me a sua publicação. Previ logo que andava naquilo o dedo do Bernardo ou do Alberto. Tu, criteriosa como és, não o farias por tua própria vontade. Folguei muito, depois, vendo a minha previsão confirmada por D. Adelaide. Devo confessar que fui o primeiro a insistir contigo para que publicasses versos. Cheguei mesmo a dar alguns aqui, no “Mercantil. Fiz mal. Arrependi-me. Hás de concordar comigo. Há uma frase de Ramalho Ortigão, que é uma das maiores verdades que tenho lido: — O primeiro dever de uma mulher honesta é não ser conhecida. — Não é uma grande verdade? Reflete sobre isto: há em Portugal e Brasil cem ou mais mulheres que escrevem. Não há nenhuma delas de quem não se fale mal, com ou sem razão. Além disso, quem publica alguma coisa fica sujeito a discussão, cai no domínio da crítica. E imagina que mágoa a minha, que desespero meu, se algum dia um miserável qualquer ousasse discutir o teu nome! Eu, que chego a ter ciúme do chão que psas, eu que desejava ser a única pessoa que te pudesse ver e amar, – ouvir discutido o teu nome. Ainda há bem pouco tempo, em São Paulo, um padre, escrevendo sobre Júlia Lopes, insultou-a publicamente. Eu nada tinha com isso. Mas tratava-se de uma senhora e mulher de um amigo meu: tive vontade de esmurrar o padre. E sem razão. Sem razão, porque uma senhora, desde que se faz escritora, tem de se sujeitar ao juízo de todos. Não quer isto dizer que não faças versos, pelo contrário. Quero que os faças, muitos, para os teus irmãos, para as tuas amigas, e principalmente para mim, — mas nunca para o público, porque o público envenena e mancha tudo o que lhe cai sobre os olhos.

Teu noivo Olavo Bilac.

 

(ELEUTÉRIO, Maria de Lourdes. Vidas de Romance: as mulheres e o exercício de ler e escrever no entresséculos (1890-1930). Rio de Janeiro: Topbooks, 2005.)