conversa

IMG_1254– acho que vai chover
– então vou sair de bicicleta
– você não ouviu o que eu disse? acho que vai chover
– ótimo
– você quer se molhar?
– sim, acho que é um bom dia para se molhar
– você não tem medo?
– de me molhar?
– não, de sair na rua
– um pouco, mas o medo de envelhecer dentro de casa às vezes é maior
– já faz tempo, né?
– é
– eu fiz essa máscara pra você
– ela tem bichinhos!
– sim, achei que você ia gostar
– obrigada
(silêncio)
– será que algum dia isso tudo vai acabar?
– não sei
– as coisas sempre são diferentes do que a gente pensou que seriam né?
– quase sempre
– fico pensando que esse é um bom momento para a gente dizer a verdade sobre tudo, sabe?
– como assim?
– sei lá, dizer o que a gente sente, o que a gente pensa, manifestar o desejo
– hmmmm
– eu te amo
(silêncio)
– eu não sei o que te dizer
– tudo bem
– acho que tá todo mundo muito mexido com tudo, nesse momento. fico em dúvida se esse tempo de isolamento faz aflorar as verdades ou nos confunde sobre o que sentimos de fato
– talvez você tenha razão
(pega a mochila, a máscara e o capacete)
– você quer alguma coisa da rua?
– justiça

poema número seis

Estou fendida
de minha pele peneira
saem dores
sinto tanto…
Ouço suas vozes /de longe
elas me confundem
e a dor aprofunda
fura fundo atravessa
o choro não resolve
a dor
esta dor do não
esta dor de estar
pela metade.
A precariedade do
meu verso não
consegue dizer da
dor que sinto.
Ante a mesa da cozinha
que se encharca aos
poucos com as gotas
de saudade
escorrendo pelas paredes
e pelas janelas,
molhando o chão
se misturando com
a poeira dos dias,
imaginei mulheres
cujo sangue se coagula
em poemas.
Vocês, lobas marinhas
vocês que queimam
as ervas (daninhas)
elixir e veneno.
Há quantos quilômetros
existiria verdadeiramente
seria loba
seria sereia
seria completa?

Sei que preciso voltar
mas a barca em brasas
me leva mais pra lá
da distância.
Ainda assim resisto
e confio na barca
abrasante – vida –
e vou até os rincões
infinitos das nossas
palavras.

a versa

IMG_20190707_100946

volto a escrever diante da fotografia do álbum de fotografias
nesta manhã
nessas manhãs só minhas
para me lembrar novamente que
quer dizer
“lembrar” já não cabe mais aqui

volto a escrever nesta manhã tão minha
para ser o prazer de sentir o aguadeiro tão meu
só eu junto com todas as venenas da munda imunda
escorrendo pelas minhas poras

eu volta
de nova e de nova
para fincar bandeira naquila que ma pertença
em ma domínia
sem responder demanda de ninguém
nessa territória-desobediência cotidiana
desenhada na ritma da que se dá a si

senhoras, vamos falar na feminina
e ver a que aconteça com a língua?
ver em que caminhas desemboca
a aguadeira loca?

pensanda em formata de versa
ela recolhe a versa da língua dele

é uma lógica de leitura essa da versa

ela sonha com a versa
depois fala da sonha
e transforma a versa sonhada
em enigma esfinge porta

Carta para Ju Ben

Querida Ju B.,

Sua Preia-mar, zona limite entre a água e a terra, confirma minhas suspeitas: há algo na linguagem dos seus poemas absolutamente inalcançável aos meus dedos, e isso me intriga e fascina como se fosse ler hieroglifos ideogramas em língua estrangeira e isso é poesia, ler em língua estrangeira, ver figuras incompreensíveis que ressoam num lugar profundo, ou que vibram na superfície da pele (acabo de me lembrar o significado de martelo, aquele ossinho do ouvido; será disso que se trata, o martelo debaixo do travesseiro, um modo de proteger-se?).

Admiro a urbanidade dos seus poemas, e o modo como se colocam as palavras lado a lado sem jamais fundir-se, boca de jasmim, cartas-tótem, bolhas-casa, emesmoassextassãoazuisamarelasvermelhasmastemossortepoisosábadoéroxo eodomingoninguémsabe. Seus poemas me dizem sobre viver na cidade, e não compreendo seus poemas pois não compreendo como é viver na cidade, eu que nasci na cidade, mas de repente consigo dizer que viver na cidade é essa angústia de jamais fundir-se, e são seus poemas que me contam que jamais fundir-se é angústia, e que me contam que o que não compreendo de viver na cidade não é a cidade, mas que viver é jamais fundir-se.

É por isso que neste domingo de leitura de Preia-mar te envio em agradecimento um presente estranho para uso do martelo. Ou do travesseiro.

Um beijo,

Ana A.

P.s.: Bocas de jasmim. Juliana Ben, 2018.

Durar ou arder?

IMG_1454.JPGtalvez eu não tenha entendido a pergunta
isso acontece bastante comigo
às vezes
talvez
eu tenha tantas respostas
entaladas
entre o esôfago e a garganta
tantas ardencinhas
mal resolvidas
emboladas
assim
bem grudentinhas
que não sai

daí eu me lembro do marcelo
não, não
eu me lembro do martelo
[nosso instrumento de trabalho]
e me vem uma luz
[uma ardência
que dura
o suficiente
para seguir
ardendo]
eu prefiro
a enxada
é
definitivamente
eu prefiro
a enxada
lembra enxurrada
estalada
cocada
bananada
termina com A
A de buceta

um dia me disseram
inclusive
que tenho cara de A
foi numa oficina da Telma Scherer
sabe a Telma Scherer?
conhece a Telma Scherer?
pois é
cara de A
A de enxada

será que cabe uma enxada embaixo do travesseiro?
será que arde?
quanto dura um sono sob a ardência de uma enxada?

a enxada é um instrumento produtivo
ela cava
ela lavra
ela assenta
ela cobre

enxada é vida

ok, eu sei que ela é pesada
pouco prática, assim,
para sair, carregar na bolsa
ir na balada
levar pra casa do boy

eu sei
mas acompanha a potência de uma enxada
a presença de uma enxada
com uma enxada
a gente vai longe.

volátil

duro no tempo que arde
ardo sem medida
do tempo
que não dura eu vivo
de ardência
ar respiro me falta
espaço nas narinas derrama
ar logo por outras vias entra
segue (talvez tímido transforme
no ouvido)
pelo estômago engasga
improvável úmido
delírio nevoento anuviado voo
sem pouso permanente vapor
se vai na temperatura ambiente
se derrete nas curvas o ponto
de vista é outro
gira facilmente se enrola
nos caules segura
nos espinhos pinga gota
(diz-se volátil de animal
que voa) eu nunca
voo sonho me enrolo
perco a parada os poemas caio
dou voltas reviro cavo saio com a fuça cheia
de terra deixo
cair os vestígios são muitos
cato tudo na bolsa grande
da minha barriga repetidas vezes
no mesmo buraco insisto as vísceras
roncam falam falam falam digo
ao contrário tudo
no instante seguinte
agora arde dura
no tempo da ardência
te convido
pra brincar de vir
ar

Meanwhile nightmare

Vi as éguas da noite galopando entre as vinhas

E buscando meus sonhos. Eram soberbas, altas.

Hilda Hilst

Estará Lu dormindo um sono denso naquela cama santuário sonhando um sonho unicórnico ao lado de seu homem de vísceras quentes que sonha um sonho sólido enquanto Luna dorme um sono inquieto crivado de sonhos luxuriosos e adolescentes? Estará Elisa afundada em sua câmara suave de soberana de Tiro sonhando só um sonho musical repleto de versos verdes? Estará Ana dormitando em pensamentos febris inquieta ao lado de seu homem jovem que sorri enquanto dorme? Estará Juliana Ben – a preia – dormindo agora? Estará ela loba perfurando todos e tudo com seu olhar? Estará Ju Pera dormindo em sua cama estrela sonhando com um amor para ser seu sonhando de longe um amor tão perto? Estará MaeIara dormindo agora? Estará ela alimentando de leite o filho na imensa cama onde cabe o mundo enquanto olha seu homem na delícia do último sono da aurora? Estará Mai sonhando sonhos automáticos? Estará Ariele deitada insone em sua cama estreita cama onde cabe o mundo mas não basta para sonhar? Estará ela pensando demasiadamente em Wilma? Estarei num exercício de sonho sonâmbula perambulando calada surda cega pelos cômodos abarrotados de saudades de tudo que é tipo e tamanho?

para arriscar mares

bateau ivre 5

(imagem de Marjolaine Fillon)

 

ilhas em busca do seu náufrago

frio
belo
duro
frágil

moldado em barro
meu coração
de
porcelana

cheira a terra
depois (durante) da tempestade

fio-limite e centro de estrada
cada início é precipício
todo passo queda

nascer é depois
é cavar – abismos (?) – com a mão
afundar os castelos mais belos

meu reino é rocha
esculpida a grito pelo mar

poema de “pequenos reparos”, de Omar Salomão