Quando eu era criança já fazia arte

BERTA, Mariana. Sagu. Miríade Edições: Florianópolis, 2018.

A estupenda familiaridade com um tema causa uma mudez tão intensa quanto a falta total de conhecimento sobre ele.

Ao ler pela primeira vez os escritos da Mariana Berta, fiquei entre a mudez e a gagueira porque tudo que li ali me pareceu a mim mesma, ao meu entorno familiar. Não conseguia elaborar nada, como se tivesse que falar de teoria musical ou da matemática dos astros. A diferença é que depois de ruminar, como as vaca de que ela fala no Sagu, depois de decantar, que nem do vinho o seu processo, chego até a escrever como ela, porque foi assim que aprendemos a escrever.

Quando ela fala “quando a mãe faz polenta, ela rebola, rebola”, ela fala da minha mãe também, ela fala da arte das nossas mães.

Quando a mãe fazia polenta no fogão à lenha, dentro de uma panela de bunda funda, na casa antiga de madeira, ela fazia a casa toda tremer. Mariana me lembra que todo esse bole bole, é necessário para fazer uma polenta cremosa, lisinha, sem bolóta. Fazer polenta é uma arte do corpo que só hoje, após voltar para a casa da mãe e do pai e, depois de conhecer o trabalho artístico da Mariana, é que me dou conta dessa importante lição.

É arte também aprender com quem nunca pisou na academia, com quem só tem a “terceira série forte” como dizem aqui na roça.

Li ano passado, no romance Paraízo Paraguai do Marcelo Labes, que a avó da família, personagem protagonista do romance, guardava um tesouro no baú; a nora passou o romance todo pensando onde poderia estar o baú que escondia o tesouro, porque a velha já estava por morrer. Encontraram, enfim, no sótão da casa, lugar onde a enchente não chegaria. O tesouro eram sementes.

Sim, sementes são tesouros. Sementes crioulas, não aquelas compradas na cooperativa a 800 reais o saco de 20kg. Assim como os porcos pretos e malhados, e as galinhas criadas soltas no pátio. Isso é coisa que estou aprendendo agora, no que chamo de meu pós-doc em roça.

As letras, como sementes, precisam de outras para brotarem em palavra. A monocultura míngua a produção natural da palavra. Se reunidas com esmero e dedicação palavras fazem brotar frases, orações, versos e enfim, poemas.

É como a abóbora cabotiá; ela só vinga se for plantada com uma semente da abóbora moranga junto, se não, ela não vem.

Como o trabalho intelectual, de análise de texto, de leitura intensiva de teoria literária e de poesia, o trabalho braçal na roça requer bastante esforço e atenção, principalmente para iniciantes nessa arte, como eu.

Quando eu era criança, e todos que eram crianças ao mesmo tempo que eu, éramos artistas. Isso porque toda vez que nossas mães nos pegavam fazendo alguma peraltagem diziam que estávamos fazendo arte.

Essa sensação do que seria arte me acompanhou por muito tempo. Confesso que quando entrei em contato com as teorias e crítica literária, com a filosofia, enfim com toda a epistemologia que envolve o conhecimento acadêmico, foi bastante custoso para que eu pudesse me livrar disso que se chama senso comum. Mas a Mariana não trata de senso comum, ela coloca em evidência saberes e costumes que passam ao largo da razão mas são tão fortes que constituem toda uma cultura localizada, que é, a todo momento, celebrada.

Mariana fala em desterrar, do nomadismo que assumimos em algum momento de nossas vidas em busca de uma impossível definição de nós mesmos, longe de nós mesmo, longe do ser colono e perto da academia, das letras e perto do que é hegemonicamente conhecido como arte.

Neste caminho percorrido daqui pra lá longe, para ao redor do mundo e de volta para a terra que me viu nascer, descobri que nem tudo está dito e há muita matéria de poesia guardada neste rincão de mundo onde vivo, o velho jovem oeste catarinense.

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