Brasil 2020

Imagem de “Desvio para o vermelho” (1967-1984), instalação de Cildo Meireles*

Caminhávamos, Ib e eu, até o apartamento de minha mãe. Ao entrarmos no prédio e seguirmos pelo corredor circular, ouvimos os sons de alguém vomitando. Tinha um banheiro no corredor e, ao nos aproximarmos dos sons, vimos que o chão do corredor na parte em frente à porta, aberta, estava sujo de vômito e merda. Os sons eram horrendos, o cheiro insuportável. Tomava-nos a imagem chocante de um menino, com cerca de 5 anos, vomitando na privada jatos que quase o afogavam com o que parecia impossível sair de um corpo tão pequeno. Jatos imensos, intermináveis, violentos de vômito e de merda saíam pela boca do menino. Ib foi ajudá-lo a sustentar o corpinho, os cabelos, a testa enquanto ele gritava “Eu vou morrer!” Eu saí correndo chamar ajuda.

*Fonte da imagem: https://heloisabomfim.com/historia-da-arte/cildo-meireles-1948-desvio-para-o-vermelho-1967-1984/

Pow! Poema iconoclasta

Colagem de Lu Tiscoski

É urgente desaprender
o cotidiano, praticar
a desobediência metódica
ainda que sob a pena
de queimar
na fogueira do
nexo

Façamos dos clássicos
monumentais elementos
explosivos
é preciso recriar a queda
do muro
de Berlim
de Edward Colston e Colombo
do Coronel Bertaso e
seus consortes
reencenar uma iconoclastia sistemática
substituir a vontade de
perdurar pela ardência
erótica
dos corpos

Liberdade irrestrita sem
concessões
helenas fugidias
por uma arquitetura
vivente
o que mais nos toca
destruir?

Fomos devoradas pela História
mas agora
muros serão
lousas para a renovada poesia.

Floresta antes do nada

foto e tatoo de Juliana Bauer

O mato não mata
a mata não bala
semente
a mata sim
Ave Terra
cheia de Marias
é hora de louvá-la

A mata não mata
o homem que calça
pés de terra
a mulher mãos de
terra
a criança terracota

O pequeno cresce com
a mata
e dentro dele só há
Futuro
ele quer ser do tamanho
da mata
ele quer ser

Escute, animal!
Olhe com atenção!
Sinta!
Tenho que te falar
assim, animal
com a força das
palavras que já
esquecestes
Tu, animal sem memória
sem camadas no olhar
animal que só sabe
aproximar com zoom
palavra estrangeira
cujo significado já
esquecestes
Memória diluída
gasta
de um corpo flácido
fala ácida
consciência miúda

Decai, animal…
desmonta
o que era homem
ficou só a ruindade
e uma sociedade disciplinar
radicalmente
imune
irremediavelmente
isolada
mata o mato todo

A gente não toca
não tem boca
tem máscara
a casa
é cárcere
escola
teletrabalho
o corpo estéril
histérico

Para, animal!
a mata não mata
mas no mato
só os fortes sobrevivem
os livres e fortes
vivem
só quem quer ser
Floresta

raízes feridas

arte de Luzia Rocha

Em cada rincão desta terra, limite medido à colônias hereditárias, frestas
por onde o odor azedo de esterco passa
há uma gota de sangue
um sinal de cansaço
um sabor de desgosto.

É preciso, sempre dissimular e limpar…

avidamente a roupa com esfregão – mancha é preguiça. Limpar o mato alto que é sujeira,
o terreno das árvores, as plantas dos pulgões, das lagartas, a parreira da doença que ela ainda
não tem. Limpar a carne da sujeira do desejo porque ócio é desleixo. Livrar o corpo da dor
constante como a sujeira que diariamente surpreende, a sujeira, não a dor.

É que o esfregão, o lava-jato, a roçadeira, a motosserra, o trator, o pulverizador, e o patriarca
roncam e zunem ferozmente

porque é preciso a todo instante dissimular…minha voz altiva…

É que nesta cada tão minha quanto o tempo do pinheiro contíguo me diz
nesta terra tão eu quanto sua altura imponente
tenho raízes feridas.

Caminho a passos pesados através do mato salvo dentro das botas de borracha. Caminho lento
por entre contratos assumidos, assinados, território expropriado – meu corpo.

Será preciso anos de esquecimento até que em cada confim desta terra já não haja
na morte e na vida
rastros de rancor nem gotas de veneno.

À hora magenta do dia
tenho raízes feridas
sou terra judiada
sonhando em rebrotar.

poema prótese

Uma fala se abre

para a negatividade

Minha voz inversa

experimentada na materialidade

do horror diário

na substância bruta dos nomes

que não sabe pronunciar

na solidão absoluta do

imperioso silêncio

Se eu digo “fora” é

aqui dentro que machuca mais

a pior violência é ter de

calar

assim o poema não cumpre

sua tarefa de curto-circuito

E se digo nessa voz

mecânica

me desfaço em

infinitos pixels

diminutas partes do

holograma eu

transformação incorpórea

O que resta para o curto-circuito

do poema?

Choque elétrico é muito

pouco

Volto ao estado de natureza

Estrutura de Emergência

estruturaI

Chove, milhares de lágrimas.
As árvores de dourada cabeleira
cantam para a cidade adormecida
a fauna toda de farra
trespassa fronteiras
derruba porteiras
portões desossados
fanfarra da bicharada
pisoteia o vazio contínuo da cidade
os animais e suas famílias seguem
surpresos pelo não-saber e gozam
Chove, milhões de lágrimas.

II

A paisagem exterior ao meu coração
é neblina.
Não se sabe de que lado vem a morte
lá fora, na cidade amortecida
não importa o sol ou a lua
não importa a exterioridade das estrelas
a paisagem ao vento dobra a esquina
e aqui dentro o tumulto
íntimo faz um rugir
de asas
é normal, tanta, tanta morte na
paisagem exterior ao meu coração?

III

Quero ver a cidade calada.
Ladeira abaixo
ladeira acima
a cidade do trabalho
obrigatoriamente estática
entra para as estatísticas
na volta da esquina
me assusta o tenebroso
corpo estranho
ESTRUTURA DE EMERGÊNCIA
alva    lona    estéril  –  contágio
medo    distância   silêncio

IV

Cada uma das vezes que passo
ladeira abaixo
me surpreende o
corpo estranho
como se não soubesse
como se não fosse real
ESTRUTURA DE EMERGÊNCIA
é cidade estarrecida
obrigada à imobilidade
se sai, é com olhos sorrateiros
entreabertos para a morte
mirada certeira no próximo destino

V

Quero ver a cidade deserta
mas ela insiste, ela teima
corre da morte, como inseto pisado
corre da fome que nem retirante
corre, corre, corre como sempre
morre como nunca
na paisagem exterior ao seu coração
não importa o índice
da morte diária
importante mesmo é o
índice da produtividade
cidade viva, vai e vem
Chove, milhões de almas.

Roça: é dentro da gente

roçaEnxada
hoje, no jardim
tenho palavras novas
com a brutalidade de lâmina
nas raízes daninhas
que não tive forças
para arrancar com as mãos
Ariele Louise

Quando a gente garra
amor à terra
a dor da enxada é coisa pouca
a vaidade fica sossegada
dentro das botas de borracha
escondida nas luvas de trabalho

Quando a gente garra
amor à terra
a peste é tudo que se
arranca com as mãos
e a brutalidade está no fio preciso da
enxada

Quando a gente garra
amor à terra
sente o ego se esvair
devagarinho co’a chuva
lava a gente todo
por dentro
e o que sobra é aquilo que brota de cada
semente

Quando a gente garra
amor à terra
a pá, o restel e a
carriola importam mais
importa a chuva
importa o sol
importa a lua
que dá o tempo certo
pra podar, pra plantar
pra cortar o cabelo
importa a fogueira sob as estrelas do
mato

Queimamos tudo que secou
as folhas
os calendários
as agendas
o passado

(A vida mudou
em todos os sentidos)

Nos libertamos dos relógios
dos despertadores, das
notícias

Lutamos com ira de motosserra
contra o opressor
contra o ditador
contra as lagartas onipresentes
contra os crentes que viraram
céticos

Estamos afinados com os
quero-queros
os periquitos
as curucacas

e no centro do caos
ele abre os olhos e me
diz “Terra é liberdade”
semeia os sonhos do
amanhã
e acredita na comunidade

(em tudo que morre
no afã das horas
morre mais meu pensamento)

Temos os tons do barro
os matizes da cúrcuma
a lã que se faz fio
o frio que se faz manhã
que tece o pão
onde a mão é terra
porque após a guerra –
liberdade

mês II da quarentena

mergulho

mergulho

Não há imunidade
consideramos números e dados
contemplamos o horizonte do tempo
a partir de nossas janelas
os dias são solares
o outono traz seu frio com amizade suave
os poucos ruídos da rua
convidam e repelem
a indesejada das gentes
brinca
ameaça tocar a campainha
a qualquer momento
baixar a curva
é o mantra social
escapar do invisível e do inominável

mergulho fundo no infinito particular
e muitas vezes desconfio que não haverá saída
que não haverá tempo ou desejo
abandonar esse mundo outra vez
e o delírio do convívio
com a outra a outra a outra a outra de mim
não é o mesmo
de quem tem fome frio falta

nada está sob controle
já dissemos tantas vezes
e agora essa frase ecoa na minha barriga
antes de dormir depois do despertar
sonho com viagens estradas aviões encontros
e vivo dormindo o que não é possível realizar
acordada
ironia do destino
você me chamando
amor acorda
aqui estamos
acorda
a lua cheia nasce do oceano outra vez
sussurra um acalanto
há mares de amplidões inexploradas
nuances na teia da vida
é preciso escutar o som que faz
o ar entrando e saindo dos pulmões
a onda que avança e recua
a dança atemporal
da plenitude e do vazio
silêncio, amor

conversa

IMG_1254– acho que vai chover
– então vou sair de bicicleta
– você não ouviu o que eu disse? acho que vai chover
– ótimo
– você quer se molhar?
– sim, acho que é um bom dia para se molhar
– você não tem medo?
– de me molhar?
– não, de sair na rua
– um pouco, mas o medo de envelhecer dentro de casa às vezes é maior
– já faz tempo, né?
– é
– eu fiz essa máscara pra você
– ela tem bichinhos!
– sim, achei que você ia gostar
– obrigada
(silêncio)
– será que algum dia isso tudo vai acabar?
– não sei
– as coisas sempre são diferentes do que a gente pensou que seriam né?
– quase sempre
– fico pensando que esse é um bom momento para a gente dizer a verdade sobre tudo, sabe?
– como assim?
– sei lá, dizer o que a gente sente, o que a gente pensa, manifestar o desejo
– hmmmm
– eu te amo
(silêncio)
– eu não sei o que te dizer
– tudo bem
– acho que tá todo mundo muito mexido com tudo, nesse momento. fico em dúvida se esse tempo de isolamento faz aflorar as verdades ou nos confunde sobre o que sentimos de fato
– talvez você tenha razão
(pega a mochila, a máscara e o capacete)
– você quer alguma coisa da rua?
– justiça

cardume

cardumea imagem do peixe fora d’Água
não me sai da cabeça
e já ocupa a pele, as vísceras
o pulmão

a lateral inchando
do peixe
num vai e vem angustiante
o olho parado
o pulo que estala
a barbatana que brilha
e reflete o tempo
que não vem

convém contar
até três
antes de abrir a boca
para qualquer coisa que seja
mais
do que respiro

chega o ar ao coração
antes da água?
como inundar o peito
sem afogar as mágoas?

eu escrevi sobre um afogamento
uma vez
sobre ter o sal nos pulmões
mas hoje eu quero escrever sobre a magia
de respirar
sem aparelhos
sem água no pulmão
eu quero falar dessa maldita
necessidade de espelho
e de oposição
dois lados de um mesmo mundo
quebrado

convém contar
a vocês
um segredo
muito simples
o mar não tá pra peixe
nem pra sereia

eu sei
é difícil de aceitar
principalmente pra você
que é peixe grande
e gosta de poluir
seu próprio habitat

o convívio dos peixes
além mar
ainda é uma incógnita
criarão eles novas formas de respiro e vida?
fingirão estar vivos na sobrevivência?
aprenderão com a morte de seus semelhantes?

gosto de pensar que o peixe é um animal
de bando
que antes de aquático
é coletivo
antes de pular
ele nada
e sempre chega a algum lugar
comum

nós
peixes
imensidão
encharco
correnteza
o que faremos para lidar com a dor?

o peixe que há em mim
saúda o cardume que há de vir
coletivo que é
força
matéria
presença
união