Convite, ainda desenho de saliva sobre a imagem de barro na janela

Há semanas me fascina esta imagem:

uma mulher, com um cinzel,

extrai da pedra fria um rapaz

ajoelhado, as nádegas perfeitas

sobre os pés: nenhuma aresta,

nenhuma sobra de pele,

nenhum bolsão de gordura,

nenhum osso sobressaindo.

Diante do rapaz de pedra,

a mulher extrai outra mulher,

ajoelhada, nádegas igualmente

perfeitas sobre os pés.

O casal pétreo se aproxima num beijo

anunciado pela curvatura das costas.

Mas eis que algo acontece:

das cabeças a mulher extrai matéria demais

e, contornando o oco de cada um

dos sujeitos esvaziados de si

a pedra ganha mobilidade líquida

e se torna tentáculos

que tentam alcançar, mutuamente,

o Impossível: preencher com o vazio do outro

seu próprio vazio.

A mulher suspeita da matéria prima:

a pedra talvez não se preste a tais mobilidades.

E experimenta a imagem no bronze fundido.

O metal líquido e quente

logo ganha solidez pétrea.

É só por isso que a mulher continua

com seu cinzel, procurando nas pedras

qualquer resposta, qualquer

possibilidade de encontro

em que as mentes possam fundir-se

e não escorrer, estalactíticas.

(Este encontro insinua-se

no próprio gesto de esculpir.

Na poesia, isto é.)

(Decalque da obra-prima de Maria M.)

(Convite a seguirmos na estação dos encontros e desencontros. Quase botei aqui este link para a música de Milton, mas desisti antes que tudo se me perdesse em sentimentalismo.)

outra vez

foi no café se bem me lembro
não
inexata ontem
a mão na alça da xícara
de chá
o tropeço colossal
era para sair do tédio que dança
mos em descompasso
tanto dispêndio as palavras outra vez soltas
alguém ainda tenta encontrar o fio da meada
e consome
taquicardia contínua
você me dizia da resignação maior
conformado, morrer um pouco todo dia
baixar o olhar, os braços pensos
acompanhavam quase rígidos o movimento do corpo
caminhamos ao lado
não

talvez seja isso:
sobre os modos da continuação
a previsão permanente é
sucumbir
o apagão
na iminência
uma questão de tempo
uma questão de pulso
dia e noite
há escapatória?

do esgotamento
ela grita que não entende o que isso quer dizer
amor
não
sinto que devo, muito
masoquista
a carne em frangalhos
chorou e insistiu em sua narrativa
outra vez
mas não sabe como é ser profissional

o que dura mesmo são os fungos na beirada da panela
não
a fórmula alquímica
a carta ridícula
despojos preciosos na intempérie
nossa casa
não
meu alívio é ter uma pergunta para responder
e a possibilidade de calar
o que te cura da dor?

se chegarmos ao ápice, haverá outra versão
possível talvez
desejo
não
paramos por aqui

R.

isso aqui não é uma resposta.  várias. da ponta do dedo ao nó na garganta, escrevo não só para você. eu mesma. é do amor mesmo que quero te falar, da ardência e da duração. modos de usar, modos de atuar a ausência.  sinto tanto, mais tanto a falta de Clarice e é só por isso que choro agora, porque sinto a sua falta. Eu consinto a sua falta.

um chinês se suicidou na cidade pacata. o suicídio do chinês que trabalhava no restaurante chinês da cidadezinha fez todos nós sabermos que ele era tibetano e que sofria. um tibetano que eu não sei o nome se suicidou no restaurante chinês da cidade, ele não falava a língua, ele não tinha casa, nem documentos. ninguém sabe falar o seu nome.

na terra das grandes oportunidades muitos conseguem chegar. a chegada tem sempre algo do fracasso do ter de abandonar a própria língua.

essas coisas. essas coisas são como pontos finais, interrompem algo. eu estava arrumando as malas e tinha e-mails importantes e compromissos inadiáveis para responder. decidi desabitar a urgência e tomar a minha língua, meu amor. abandono com alegria as metas, as listas, os compromissos e assumo a falha da não obrigação. talvez resida aí a coisa toda. quando abandonamos a expectativa que atribuímos aos outros e assumimos o querer. é disso que você falava ao assumir a mulher que erra? desse lugar errado no certo do mundo? ás vezes é difícil não esquecer que o certo do mundo é a governança dos corpos, a apropriação do que há de mais vivo na gente. resistir ao homem de bem. carregar o dano. trazer o dom. as línguas do desterro são sertão que podem vir a virar mar. vir a amar. te escuto, entre a perda e apropriação, nesses fragmentos do espelho que somos. mas hoje, quero te dizer, meu amor, que declaro guerra aos homens cordiais em nome de um coração transtornado. o meu coração transtornado perturba a ordem, aproxima o medo e a coragem, a hospitalidade e hostilidade. o coração transtornado deseja. o desejo é. no amor, erre.

pq

Há sempre algum poema que está falando de mim. Não sei se porque eles têm a incrível habilidade de ler o intruso leitor, ou se porque tenho a insuportável necessidade do espelho. Quebrei todos os espelhos da minha casa. Foi pior: eles se transformaram em muitos, milhares, incontáveis…Agora já não há poema que não me persiga. Agora já não há eu que não persiga uma palavra, uma só palavra capaz de dizer tudo…de calar tudo.

As crianças de Kosovo

Uma casa tivesse curado a nossa ferida? Ou não, talvez

não, quero dizer: até que ponto a crueldade é afeto?

De que modo encontra em nós a dor seu nome? Aquilo

que damos uns pros outros, seja o terror ou

a tristeza, nasce do mesmo desejo: curar e ser curados.

E aí, então, voltou a me perguntar, ontem à tarde, como

era ou ainda é possível diferenciar o desastre

da beleza. Não podemos agora recuperar aquilo que

perdemos, ninguém pode. Assim como sempre há um

verdugo disponível para matar, assim sempre resta

algo por perder. Você, rainha da desolação, estava

consagrada à mística dos violentos. E se justificando

repetia: não há escapatória. Crianças de Kosovo,

todos nós sofremos da neurose de guerra. Quem foi

danado leva em si esse dano, como se a sua tarefa

fosse propagá-lo como à peste, fazê-lo impactar

contra aquele que estivesse por perto. Onde você caiu,

me disse, ali você deverá fazer a sua casa. As praias do desterro

impiedosas devoraram o tempo das nossas vidas. E talvez sim,

talvez tudo aconteça exatamente entre a perda e a apropriação.

Joaquín Correa

boquiaberta diante da Outra Pergunta, certa mulher se expõe

certa mulher

erra

mas não é a errância

o que a consome.

uma outra,

certa,

também é consumida

por ardores, ardências.

sentem, ambas,

arderem as bordas

apenas as bordas,

vermelhas e túrgidas.

apenas das bordas,

vermelhas e túrgidas,

o insistente e dolorido

ardor.

o centro profundo,

escuro e úmido

pulsa

não arde

pulsa.

o pulso

sensível

às oscilações da borda

que arde em chamas

mas

em sua oscilação

o centro não

arde

o centro

pulsa

em ritmo perene

pulsa.

permanência

é muito menos

que eternidade.

permanência possível:

pulsação vacilante

diante do desejo

de durar um pouco

mais

dia menos dia.

ao desejo

a entrega

é errância.

e pulsa.

aquela mulher

secretamente sabe

que arder

inflamar, consumir-se

é punição

dada a bruxas.

errada,

sabe

e não faz disso segredo:

erro fatal,

e culpada

arde.

outra pergunta

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Navegantes,

Tentei gravar áudio, vídeo – e dar a cara (a bater) -, mas hoje não está funcionando quase nada… então, pra não demorar mais, pra aproveitar esse domingo de sol maravilha, vou na ponta dos dedos até vocês, lançar uma outra pergunta pra impulsionar a conversa, pra seguir adiante, pra sustentar a brasa…

É também uma pergunta sobre os modos de vida, sobre o que me move; a intensidade, o tempo, o desejo, a necessidade:

:

(É) melhor durar do que arder?

:

Essa pergunta que tem me perseguido encontrei formulada assim na dissertação do Joaquín, e um dos textos que dialoga com ela é A via crucis do corpo, da Clarice, que coincidentemente eu estava relendo logo antes de ler o trabalho dele… Mas na literatura não há coincidência, há conversa, é a minha aposta. Por isso tomo a liberdade de convidá-lo pra embarcar nessa conosco.

Uma economia impossível (o trabalho, a alegria, o prazer, o amor, a leitura, a escrita, o alimento, a casa)?? O que nos consome??

Nesse momento, a alegria enorme da menina que chama as amigas, os vizinhos todos, pra brincar. É bom estar perto.

 

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O INTRATÁVEL

AFIRMAÇÃO: Ao contrário de tudo e contra tudo, o sujeito afirma o amor como valor.

Apesar das dificuldades da minha história, apesar das perturbações, das dúvidas, dos desesperos, apesar da vontade de me livrar disso, não paro de afirmar em mim mesmo o amor como um valor. Todos os argumentos que os sistemas mais diversos empregam para desmistificar, limitar, apagar, enfim, depreciar o amor, eu os escuto, mas me obstino: “Sei bem, mas contudo…”. Transfiro as desvalorizações do amor para uma espécie de moral obscurantista, para um realismo-farsa, contra os quais ergo o real do valor: oponho a tudo “o que não vai bem” no amor, a afirmação do que vale nele. Essa teimosia, é o protesto de amor: debaixo do concerto de “boas razões” para amar de outro modo, amar melhor, amar sem estar apaixonado, etc., uma voz teimosa se faz ouvir que dura um pouco mais de tempo: voz do Intratável apaixonado.

O mundo submete todo empreendimento a uma alternativa; a do sucesso ou do fracasso, da vitória ou da derrota. Protesto por uma outra lógica: sou ao mesmo tempo e contraditoriamente feliz e infeliz: “conseguir” ou “fracassar” têm para mim sentidos apenas contingentes, passageiros (o que não impede que minhas dores e meus desejos sejam violentos); o que me anima surda e obstinadamente não é tático: aceito e afirmo fora do verdadeiro e do falso, fora do êxito e do malogro; estou destituído de toda finalidade, vivo conforme o acaso (a prova é que as figuras do meu discurso me vêm como lances de dados). Confrontado com a aventura (aquilo que me ocorre), não saio nem vencedor, nem vencido: sou trágico.

(Dizem-me: esse gênero de amor não é viável. Mas como avaliar a viabilidade? Por que o que é viável é um Bem? Por que durar é melhor que inflamar?)

Certa manhã, devo escrever urgentemente uma carta “importante” – da qual depende o sucesso de certo empreendimento; em vez disso escrevo uma carta de amor – que não envio. Abandono alegremente tarefas desinteressantes, escrúpulos razoáveis, condutas reativas, impostas pelo mundo, em benefício de uma tarefa inútil, vinda de um Dever remarcável; o Dever amoroso. Faço discretamente coisas loucas; sou a única testemunha da minha loucura. O que o amor descobre em mim, é a energia. Tudo que faço tem um sentido (posso então viver, sem me queixar), mas esse sentido é uma finalidade intangível: é somente o sentido da minha força. As inflexões dolentes, culpadas, tristes, todo o relativo da minha vida cotidiana é revirado. Werther elogia sua própria tensão, que ele afirma diante das mediocridades de Albert. Nascido da literatura, só podendo falar através de seus códigos gastos, estou portanto só com minha força, condenado à minha própria filosofia.

(BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1981. p.16-17)

 

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Conto “Melhor do que arder” em A via crucis do corpo, Clarice Lispector

 

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