divagações sobre a fome, a sacies e o desespero: pela potência das tríades

pao

Comi um pedaço de placenta
que não era minha.
Comi com um bocado de pão
que não fui eu que fiz;
o pão cujo trigo não
foi limpo por mim
nem moído pela minha
força
nem amassado pelas
minhas mãos.

Comi um naco de placenta;
antropofagia lícita
ainda que suja
tão vida quanto o pão!
é resto
excrescência.

Dessa excrescência-mater
nasci em grito;
fui concebida pelo grito
esse que correu pelo mundo
caiu nas bocas silenciosas
das peneiradoras de Coubert
que dão a vida pelo pão
de suas placentas.

O grito correu os tempos
foi parar nas bocas das
Mães da Praça de Maio
que já muita vida perderam.

O grito virou fogo nos sutiãs
atlânticos de 1968;
artefatos de beleza na
sarjeta
pela inteireza da placenta
que é linda!

O grito virou Munch
virou museu
mas não termina de
GRITAR!

O grito, a placenta, o pão

O grito muito
a placenta na valeira
o pão que falta
fala do grito
de não poder parir
um pedaço de alforria.

 

 

Malus Domestica

maça2

Encontrei a perplexidade numa 
maçã.
Vontade de escrever com letras
à lápis – MAÇÃ

Quando a escolhi dentre tantas
na banca do mercado
sua complexidade estava
no preço do quilo
não que valesse muito
nem que valesse tão pouco
mas era junto daquele monte de 
frutas, tão todas e tão elas
como se fossem nada
– o trivial é invisível, mas o essencial também – 
era lá que estava o sentido da vida.

Para quê a massa da maçã?
Se o impulso maior da semente é
germinar para eclodir
crescer para reproduzir
e revolucionar em seus ciclos
inquietos?

Ela sabe.

Molhava meus lábios com seu
corpo doce sumarento, mas suave
estalava entre meus dentes, mas macia
saciava a fome, a sede, a imaginação.
Este ano elas estão especialmente
atraentes e deliciosas,
venenosas talvez – o que é invisível,
não o veneno, mas sua trivialidade – 
mas disso ela não sabe.

Ela foi se acabando aos poucos
em cada mordida buscava a 
palavra específica, especial,
que pudesse dizer da minha
perplexidade ao gozar de algo tão 
grandioso como o morder
barulhento de uma maçã.

Pensei na maçã do amor, pensei
em Adão e Eva e na Serpente,
não nego,
na Branca de Neve, mas pensei
também num desenho que vi 
outro dia, cruel como a fome.

Maçã  Mulher  Mãe

Estou saciada, e perplexa.

a polpa do indicador

P049-cebolas-caramelizadas

 

estava almoçando sozinha
as cebolas carameladas ao forno
uma delícia
as camadas desfolhando
a memória de uma conversa
semanas meses atrás
sobre uma pergunta
que passou despercebida

à procura de registros
vestígios, indícios
de uma pergunta discreta
imperceptível

um elefante na loja de cristais
terminava em ponto de interrogação
um imenso quê acentuado
QUÊ?
versava sobre a fome
ousava perguntar sobre
O Desejo

dava pra ouvir na memória
os versos daquela música
“eu gosto dos que têm fome”
a cantora, quem era?
“dos que morrem de vontade”
uma mulher de voz rasgada
“dos que secam de desejo”
de voz áspera, “dos que ardem”
uma mulher de voz

soube que o desejo
revelado não se realiza
descobrira depois o contrário
revelar o desejo é condição
pro desejo realizar-se
mas já tinha decorado o verso
inesquecível
ao ver a estrela cadente
ao soprar a vela que celebra
mais um ano, menos um

no momento de comer o bolo
já não resta fome
e, outras vezes, de tanta fome da festa
se esquece de comer o bolo
e já em casa, a Fome

de quê?
de comida mesmo
de que todo contato tenha
a profundidade de um orgasmo
a gente fica gulosa e mal acostumada
e rejeita, tem hora, qualquer conversa
que seja menos que foda

e nesses momentos
há fome de silêncio escuro
úmido e profundo
fome de regenerar a pele
e evitar aberturas
pros desconhecidos

e esse momento também
passa e há fome de ser tocada
por quem quer que seja
por quem quero que seja
uma tremenda fome
de saber-se amada
e outra de desejar
fome de fome

há vezes, fome de fama, de grana
de ouvidos atentos às palavras
e tantas só fome mesmo
de sal, de doce, de carne, de fruta
de chegar ao caroço
sem jamais revelar o que pensara
com o cílio colado
na polpa do indicador

você tem fome de quê?

 

IMG_1266aqui do alto
eu sou
muitas
e posso tudo
posso ponte
posso tempo
posso mundo

passo sem pressa
e penso:
sou pulo
peso sem passagem
passagem direta
sem futuro

sem futuro não
sem medo do futuro
sem fome
do que não posso ver
do que ainda
não posso ter

eu desejo tanto
que nem sei contar
mas sei
coitar

coito contigo
conto comigo
corro
largo
pêlos
pele
gozo
grito.