o rio mais caudaloso

o rio mais caudaloso do mundo é o amazonas
aqui, nas nossas terras
desperto de um sonho que não tive
porque é sempre o mar
isso poderia ser uma pergunta

acho que todo mundo carrega
um pouco que seja
de sal
no peito
e a lembrança do fazer muito
com o pouco
que se tem
pra deixar grosso o caldo
caudalosa a vida é melhor

a minha amiga me disse
pra fazer um poema
com essa palavra
seria preciso criar
uma história pra ela
nada melhor pra isso
do que um rio, certo?

mas o amazonas é imenso demais
e eu só conheço histórias
sobre o mar
inventar dá muito trabalho
as pesquisas me dizem
sonhar com rio
sonhar que está nadando confiante no rio
sonhar que está nadando confiante no rio e a água é cristalina
é sinal de que a vida tá dando certo
mas como pode funcionar essa explicação
quando não só
é intenso o fluxo de água
mas também
você vai nadar
ou ser levado
por uma loooonga extensão
afinal o amazonas
além de ser o mais caudaloso
é um dos rios mais extensos do mundo
acho que isso não cabe em um só sonho

as pesquisas me dizem
é importante se perguntar
como é esse rio que se apresenta?
no sonho é possível
enxergar suas margens?
qual é a intensidade de suas águas?
é um rio largo ou um riacho?
como o ser que sonha se sente nesse rio?
há obstáculos?

me parece que não vai adiantar
responder nenhuma dessas perguntas
a água não se pode agarrar
despertar no amazonas
é pra quem tem sal nos pulmões

de olhos abertos

(este é um poema-ensaio apresentado em conversação sobre arte e psicanálise na jornada “Tempos de sonhar, instantes de despertar”, da Escola Brasileira de Psicanálise em Florianópolis, outubro de 2019.)

eu queria fazer um poema
sobre a escuta
falar sobre escutar
desde sempre
uma contradição?

o que é preciso ouvir
pra se acordar?
enquanto estou falando
quem dorme?
quem desperta, não pra si
mas porque o alarme tocou
é hora de ir
pegar o ônibus
deixar pronto
o conforto
do caminho pros outros
acordarem?

tem casos em que dormir
e acordar
não passam de dormir
e acordar

então estamos em uma distopia?

perguntas clichês?
imagens clichês?
todos os dias vistas
histórias pra serem ouvidas
sobre as quais sequer
sonhamos

em que estágio do sono deixamos
todas aquelas que não somos
todas aquelas que não estão mais aqui
e as que estão
de olhos forçadamente abertos
pra que a gente durma em paz?
eu deveria aqui trazer fatos? alguns exemplos concretos do que estou querendo dizer?

como é que a gente vai pensar em despertar
quando o sonho for o único lugar
em que a invenção parece possível?

eu sei, são muitas perguntas
mas talvez seja a interrogação
algo que nos possa fazer estirar
o olhar
desapertando
a língua
que se joga
em instantes de um certo
despertar que sonha
se mantém carne
viva
muito real
porque pulsante

assim, isso não seria um poema
mas o verso
tentando
acordar?

o que me garante que
acordado
o verso
desperte?

eu gosto muito
de algo que a susana scramim escreveu
em “literaturas do presente: história e anacronismos dos textos”
sobre a poesia
contemporânea
ter abandonado
o que ela chama de
fazer arte
(poderíamos dizer deixado
de sonhar?)

ela fala isso pra discutir
algumas posturas da crítica literária
ela diz:

quando a crítica contemporânea acusa a arte e a poesia de produzirem formas “fraquinhas de negatividade”, aquilo que é cobrado nesse julgamento não são formas “fortes” da negatividade e sim a origem da forma não como geradora de mais e mais questionamentos, mas antes, tomada em seus mitos, como doadora de soluções apaziguadoras em sua sistematização.

ela tá se referindo aí
a um texto específico
da iumna maria simon e vinicius dantas sobre o poeta carlito azevedo
que têm uma postura
muito próxima à dos modernistas
que não conseguem incluir a si mesmos
no gesto crítico que colocam no mundo
em resumo
a poesia que essa crítica
muitas vezes considera “fraca” ou “repetitiva” ou “infrutífera”
na verdade
diz de uma incapacidade
dessa crítica
de olhar
de escutar
essa poesia
que estaria
de algum modo
devolvendo
esse olhar
como quem sinaliza:

acorde!

a susana scramim diz
ainda
sobre essa poesia:
mesmo abandonando a prática de um “fazer” artístico, a poesia contemporânea marca de modo bastante intenso seu “desejo” de produzir arte. Negando os princípios que organizam o pensamento e ações modernas que operam pela teoria e prática da conquista, da divisão e da dominação, busca evidenciar a distância da arte de seu mais precioso desejo. Quer seja, o de anular a relação dicotômica moderna entre arte e vida. Esse desejo se moveria por encenações da mitologia mesma da literatura. Encenações essas que colocam em evidência os limiares das formulações construídas com base em contradições. Deixa, com isso, de tratá-los como limes/fronteiras, e os expõe em carne viva, ou seja, como contrações – que são – não resolvidas. A escrita que resulta desse modo de compreender a si mesma apresenta-se como teatral, uma vez que já não representa nada, não está no lugar de nada, apenas é, sem se preocupar com elemento contraditório, seja ele o referente, seja ele o pensamento abstrato. Com uma escrita bastante marcada por um desejo de produzir experiências sensíveis e inteligíveis em meio a processos de formulação escrita, a poesia contemporânea responderia à exigência de sua tarefa com uma atitude que pode ser interpretada como uma negação às fronteiras de gênero e às concepções de seu próprio fazer artístico estabelecidos de antemão, ao mesmo tempo que propõe uma prática escrita cuja função é dar a ver lugares e paisagens criados a partir de cenas (re)tomadas de sua mitologia textual. Se estabeleceria nessa escrita uma relação entre voz (querer dizer) e linguagem (ser obrigado a dizer) que implica o enfrentamento de uma das formulações mais radicais da poesia moderna, a saber, reelaborar a relação entre a escrita da poesia – do verso – e a produção do pensamento que se mantenha ético

mas eu não vim aqui
pra falar de crítica literária
eu falei tudo isso pra dizer
que a poesia a arte
quando despertas do sono de uma fundação
passam a ser formas de contato
formas de vigilância das armadilhas do nosso tempo
um corte uma pausa uma insistência
uma coletiva abertura
que nos permita
como a luciana di leone falou
“colocar o dedo na ferida da nossa época”
para poder, a partir daí
abrir brecha
assim
o poema
nas suas palavras
passa a “ser menos uma obra fechada, ou ter uma identidade, uma ontologia, e ser mais algum tipo de relação, marcada pelo endereçamento, o ir ao encontro de um Outro, um encontro que implicaria o poder de afetar e ser afetado”

mas
a partir de qual perspectiva política nós sonhamos, olhamos, criamos e agimos?
pergunta a bell hooks em “olhares negros: raça e representação”

é sobre o despertar em busca de novas imagens
que a bell hooks vai escrever
um despertar que só se torna possível
se nos dermos conta de quem controla as imagens com as quais sonhamos
ela nos lembra
como quem diz:
despertem!
de que “da escravidão em diante, os supremacistas brancos reconheceram que controlar as imagens é central para a manutenção de qualquer sistema de dominação racial”
ela alerta
como quem diz:
acordem!
que consideremos a perspectiva a partir da qual olhamos, questionando de modo vigilante com quem nos identificamos, quais imagens amamos. Se nós, pessoas negras, aprendemos a apreciar imagens odiosas de nós mesmos, então que processo de olhar nos permitirá reagir à sedução das imagens que ameaçam desumanizar e colonizar? É evidente que esse é o jeito de ver que possibilita uma integridade existencial que consegue subverter o poder da imagem colonizadora. Apenas mudando coletivamente o modo como olhamos para nós mesmos e para o mundo é que podemos mudar como somos vistos. Neste processo, buscamos criar um mundo onde todos possam olhar para a negritude e para as pessoas negras com novos olhos.

para que essas imagens se reconstruam
a compreensão de que esse sonho deve ser
de todos
é essencial

mas a bell hooks
acrescenta
que se muitas das pessoas não negras que produzem imagens ou narrativas críticas a respeito da negritude e das pessoas negras não questionarem suas perspectivas, elas podem simplesmente recriar a perspectiva imperialista – o olhar que procura dominar, subjugar, colonizar.

os jogos de dominação
sempre têm seus recursos
pra nos manter
dormindo

há casos em que a única possibilidade de sonhar
é a de permanecer
em vigília

por isso é muito difícil fazer esse poema
e por isso eu queria que ele fosse sobre a escuta

é que preciso pausar
pensar
sonhar não se pode
pronunciar sem perigos
quando não nos perguntamos
sobre o que está no seu horizonte

parece que o esforço de despertar
será desproporcionalmente maior?
talvez seja
como remar contra a maré

o despertar do verso
então
é como uma atenção
à respiração
minha
e sua
para que continuemos
nadando

talvez encontremos
ilhas

eu só fico
impressionada com uma coisa:
diz a adelaide ivánova em “desobediência do estado civil”
tudo se ajeita a vida segue
com golpe ou sem golpe
com ou sem sete de setembro
jajá estaremos acostumadíssimos
que horror
já saber se a vida segue
sem você isso eu
não sei
mas hoje não vou protestar
vou dormir

a gente percebe que ela é irônica
mas que ela encena
justamente
a nossa capacidade
de continuar
mesmo desumanizados
ela diz de uma contradição
com a qual temos de conviver
para a qual temos
de despertar

expor essa contradição
no texto
é uma forma de não propor
soluções míticas
que não passariam de uma forma
ao fim
de enaltecer a poeta
para que voltemos
a dormir
sem que nos demos conta
de que é um sonho coletivo

talvez eu não tenha palavras
mas me lembrei
do que o Walter Benjamin falou
sobre os filmes do Mickey Mouse:
aqui aparece pela primeira vez que alguém pode ser roubado de seu próprio braço, sim, de seu próprio corpo. O percurso de um documento em uma repartição tem mais semelhança com um dos que Mickey Mouse percorre do que com o dos maratonistas. Nestes filmes a humanidade prepara-se para sobreviver à civilização. Mickey Mouse demonstra que a criatura ainda pode subsistir mesmo quando toda semelhança com o homem lhe foi retirada. Ele rompe com a hierarquia das criaturas concebida com fundamento no humano. Estes filmes desautorizam, da maneira mais radical, a experiência. Não é compensador em um tal mundo ter experiências.
Semelhança com os contos de fada. Nunca desde esses contos os fenômenos mais vitais e importantes foram vividos de forma tão não simbólica e sem atmosfera. O incomensurável contraste com Maeterlink e com Mary Wigman. Todos os filmes de Mickey Mouse têm como motivo sair para aprender o medo. Portanto, não a “mecanização”, não a “fórmula”, não um “mal-entendido” são a base do tremendo sucesso destes filmes, e sim o fato de que o público neles reconhece sua própria vida.”
“O cinema introduziu uma brecha na velha verdade de Heráclito segundo a qual o mundo dos homens acordados é comum, o dos que dormem é privado. E o fez menos pela descrição do mundo onírico que pela criação de personagens do sonho coletivo, como o camondongo Mickey, que hoje percorre o mundo inteiro. Se levarmos em conta as perigosas tensões que a tecnização, com todas as suas conseqüências, engendrou nas massas – tensões que em estágios críticos assumem um caráter psicótico -, perceberemos que essa mesma tecnização abriu a possibilidade de uma imunização contra tais psicoses de massa através de certos filmes, capazes de impedir, pelo desenvolvimento artificial de fantasias sadomasoquistas, seu amadurecimento natural e perigoso. A hilaridade coletiva representa a eclosão precoce e saudável dessa psicose de massa. A enorme quantidade de episódios grotescos atualmente consumidos no cinema constituem um índice impressionante dos perigos que ameaçam a humanidade, resultantes das repressões que a civilização traz consigo. Os filmes grotescos, dos Estados Unidos, e os filmes de Disney, produzem uma explosão terapêutica do inconsciente. Seu precursor foi o excêntrico. Nos novos espaços de liberdade abertos pelo filme, ele foi o primeiro a sentir-se em casa. E aqui que se situa Chaplin, como figura histórica.

estamos trabalhando
para dormir
em qual sonho coletivo?
com quais imagens estamos sonhando
sem saber
que impedimos
o despertar
do ser ao lado?
nenhuma resposta simples
pode nos fazer
acordar

talvez uma forma de escapar
nem sempre tão óbvia
seja uma abertura
às contrações
de que a susana scramim fala
e assim sonhar e despertar
não podem ser palavras soltas
a partir das quais podemos ampliar
a abstração
mas palavras-corpos
marcadas
pela história
pela vida
palavras com sangue nas veias

a gente lembra que tinha um tempo
(e talvez com esse tempo alguns
ainda sonhem)
em que a arte era entendida como a exaltação
da beleza
uma forma de sonhar
acordado

não dá
pra fazer poesia com isso

em uma entrevista
a psicanalista francesa anne ganivet
quando interrogada
sobre se a arte está ao lado do sonho
ou do despertar
diz que sempre esteve ao lado do corte
da surpresa do rechaço ou do escândalo
ela diz ainda que o que a impressiona é que
quando “a obra” emerge
o artista segue servindo-a
até se cansar
e se pergunta se
os artistas cujas aspirações não são mais a sublimação
encontraram uma linguagem própria
pra continuar cavando
o buraco
que é a linguagem
para que ele não se feche

pode ser que eu esteja sonhando
mas o que eu pensei foi que
hoje
há uma urgência
de uma espécie
de cavar-junto?

eu pergunto
com as vísceras
aqui expostas

pra mim
hoje
pensar fazer discutir seja o que for
isso que chamamos de poesia de poético de arte?
por favor, eu gostaria de não romantizar
não pode ser dissociado
de uma experiência coletiva
talvez a nossa história
não nos deixe outra alternativa
e tenhamos que assumir
a nossa tarefa

a experiência coletiva
não é um bloco monolítico
e somente dessa perspectiva
essa afirmação se desperta

mas eu não pensei nada disso sozinha
desperto e sonho
junto

talvez eu não tenha palavras
e eu gostaria de ter o cuidado
com os perigos
do enaltecimento
porque já sabemos
a que caminho isso nos leva

mas esse poema que eu não sei escrever
sobre a escuta
é sobre
o despertar de uma palavra que se quer
nessa
abertura
de um convívio
em que o contato
é contração
uma possibilidade de um
si em contradição
nós
e por isso uma abertura do olhar para aquilo que não se vê

eu tenho sonhado
nas últimas semanas
talvez isso não seja de interesse de ninguém
mas afinal eu vim
pra falar a partir disso
eu tenho sonhado
com situações de ameaça
das quais eu quase não escapo
e quando desperto
algo de mim permanece lá
preso

quando eu acordo
eu preciso beber água
enquanto descem os goles
macios
pela garganta
eu penso que
eu queria ter sonhado
com a versa

sal nos pulmões

a poesia não salva
sempre
às vezes
é preciso ancorar
outros mares
sacar coragem
de outros
lugares
às vezes
são precisas as nossas palavras
outras
perdemos poemas
no ônibus
no quarto
na geladeira
por gosto
porque a vida
pulsa

fico pensando se a poesia salvou Ana C
salvar é manter vivo?
salvar é deixar ir?
salvar é poço ou é mar?
um salve a ti
que com uma mão mata o dragão
e com a outra
abre o coração

quando eu era criança
as bandeiras da praia iam do amarelo ao negro
e os moços que as guiavam
eram chamados de salva-vidas

não existem mais bandeiras negras
na areia
a cor do perigo
agora
é vermelha
e os moços viraram guarda-vidas
perceba a diferença
entre salvar e guardar
a previdência é a bola da vez
vejam só a ironia
a previdência no mar
a previdência na terra
na lama

no dia 7 de fevereiro de 2017
eu me afoguei
no mar
foi tudo muito rápido
eu sabia nadar
eu tinha fôlego pra nadar
mas eu só conseguia gritar
o medo faz isso com a gente
nos afoga

os guarda-vidas eram dois
e foram muito eficientes
saí do mar com vida
saí do mar
com medo

eu não sei bem se foi a água salgada no pulmão
ou ainda a estranheza de saber-me viva
fora do mar
mas alguma coisa mudou
nesse dia
dizem que a proximidade com a morte faz isso com a gente
nos afoga
nos salva

a poesia não salga
sempre
porque nem sempre dá pra entrar no mar
nem sempre dá pra escrever
um poema bêbado
que nos traga a dor e a delícia de ser o que é
às vezes
é preciso
cair
cair
cair
e fazer da queda um passo
incontornável
às vezes
é preciso perder tudo
pra achar alguma coisa
é preciso ter consciência
para ter coragem

quando lembro daquele dia
no mar
com sal nos pulmões
penso que guardar é mais bonito que salvar
a gente guarda o que ama
e salva o que pode
a poesia não salva
a poesia
rompe.