sabe, amiga
eu também pensei um dia
que só os homens podiam
falar de Amor
que para uma mulher
o desejo de amar
era coisa romântica
e eu nunca fui romântica
detestava até mesmo beethoven
e lia na história da sua surdez
a dificuldade de ouvir
que eu mesma sentia às vezes
porque as palavras tinham arestas agudas
e feriam dentro
do que eu não sabia se eram os ouvidos
a garganta, a vagina, o coração, o útero
sabe, amiga
eu também pensei um dia
que só os homens podiam
falar de Amor
que na voz de uma mulher
qualquer história parecia aquela
da princesa raptada por um cavalo
precisando achar divino o sujeito
que esporeava o cavalo
porque afinal era a única maneira
de deixar a torre
sabe, amiga,
eu muitas vezes pensava
ter que me acostumar a viver na torre
para todo o sempre
eu que não desejava o príncipe
conviveria com o claustro e suas paredes
tingidas de cal
eu pálida freira
e as grades que eu amava
porque eram a entrada de ar e luz
sabe, amiga
cheguei a ensaiar também
montar eu mesma no cavalo
tornar-me aquela que desce o chicote
na cavalgadura com brutalidade
e foge e se exila na floresta
claustro mais verde e mais habitado
eu eremita
mas de novo eu ouvia a história da princesa
porque sempre aparecia ali uma bruxa
eu bruxa, fabricando venenos
para enfim matar a mocinha
sabe, amiga
também arrisquei jogar da janela
os cabelos todos em trança
até a beira da estrada
e receber cada cavaleiro andarilho sacerdote
barbeiro caixeiro-viajante cientista
deputado doutor boticário
até ter o mundo dentro de mim
mas o mundo em mim
não era espelho de mim no mundo
e o que restava era a dor
de infinitos natimortos
que sugavam as tetas da bela adormecida
até que ela acordasse aos gritos
pois não convinha à bela
gritar de Amor
sabe, amiga
por muito tempo pensei
que só os homens podiam falar de Amor
e achava intolerável
ouvir os homens falarem de amor
e ter que responder qualquer coisa
da ordem do romance
os romances que eu gostava
eram os da clarice lispector
e não dava pra ser a lóri
as bolas de ulisses me davam náusea
mas sabe, amiga
aconteceu um dia
de eu arriscar umas palavras
sobre o desejo
primeiro o desejo que eu gostava que ardesse
e se consumisse em uma duas três noites
e sempre que me ardia em desejo
ressurgia uma fênix ávida por outro alimento
que eu não sabia nomear
então aconteceu outra vez
de arriscar dizer eu te amo
pra um desejo que eu gostava que durasse
que já ia durando
eu ainda não sabia que o Amor era feito de brasa
uma brasa que se acendia com o vento
e podia queimar se não se cuidasse
uma brasa que quase se apagava
e era preciso passar noites inteiras soprando
o fogo cansa-se, amiga
e também se cansa quem porventura
precisa manter sozinha a brasa acesa
e deve ter acontecido daquela vez
o Amor feito cinza
encontrei algumas vezes o Amor
enquanto andava pelo mundo sem saber bem
o nome do que estava procurando.
mas os homens podiam falar de Amor
e eles sabiam bem o nome daquilo de que fugiam
eles diziam alto no primeiro encontro
palavras que eu não compreendia
para explicar que estavam fugindo do Amor
que não estavam fugindo de mim
que me queriam bem mas o Amor não queriam
e eu assistia aquilo sem compreender bem
porque ainda não sentia nada
sequer parecido com amor
sabe, amiga,
acho que os homens contam entre si
histórias terríveis sobre o Amor
histórias tão terríveis
como as histórias que eles costumam nos contar
sobre uma princesa que espera
e um pobre coitado que precisa correr mundo
pagar sete prendas
trabalhar sete anos
ficar provando que ama
enquanto cala o desejo
de ser a princesa da vez
e só ansiar receber passivo
a notícia de saber-se amado
sabe, amiga
eu vou escrever um poema de Amor
o poema começa com alguém que diz
eu te amo
mas eu acho que o poema não tem fim
porque o Amor é coisa que se derrama
como uma erva cobre chão e sobe no tronco das árvores
o Amor caminha assim, como uma planta
e como uma planta ele precisa de quem o habite
e pra habitar o Amor
é precisa alguma coragem
a persistência de quem lavra
são precisas as nossas palavras
dizendo os Amores
onde a gente deseja viver