chama primeira

o teu dedo indicador
esquerdo
foi a primeira coisa que eu vi
me passando o baseado

é abismal pensar
o que pode um dedo indicador
quando chega ao lado
distraído
quando chega às costas
às coxas
e aponta o caminho

entre o sono e a agilidade
estávamos
como nos ensinou a poeta
alguns meses depois
eu já conhecia esse verso
mas ele tomou sentido
quando eu te conheci

eu lembro de ter chorado o dia inteiro
naquela noite
e de ter o estômago embrulhado
o corpo balançava
no coco
das mulheres

eu lembro de te ver de perfil
tua mão passava de leve
nos cabelos cacheados
o teu sotaque denunciava
semelhanças e dissidências
e o teu ar descompromissado
me pegou
de surpresa

chovia um bocado
naquela noite
e não tinha muito espaço pra fumar
e eu fumo bastante à noite
[acho que tu também]
por isso a gente ficou bem pertinho
e várias coisas podiam ter acontecido
eu podia ter te convidado pra dançar
tu podia ter me oferecido uma cerveja
eu podia ter dito que adorei o teu cabelo
tu podia ter falado que eu fico bem de vermelho
mas a gente tava distraído
e isso foi tudo
naquela noite

eu gosto quando as coisas acontecem
sem a gente ver
é como o pão que cresce
antes de ir pro forno
e de repente
aparece ali
grande
pronto
cheiroso
quente
macio e crocante
ao mesmo tempo
e a gente só disfruta
se lambuza
e deixa os farelos
caírem no chão

a massa que faz o pão
vale a luz do teu suor

cantaríamos algum tempo depois
e eu acho engraçado como surgem as metáforas
e eu gosto da poesia que sai
da tua boca
e chega na minha
vida
e eu apenas
acabo
de chegar.

sal nos pulmões

a poesia não salva
sempre
às vezes
é preciso ancorar
outros mares
sacar coragem
de outros
lugares
às vezes
são precisas as nossas palavras
outras
perdemos poemas
no ônibus
no quarto
na geladeira
por gosto
porque a vida
pulsa

fico pensando se a poesia salvou Ana C
salvar é manter vivo?
salvar é deixar ir?
salvar é poço ou é mar?
um salve a ti
que com uma mão mata o dragão
e com a outra
abre o coração

quando eu era criança
as bandeiras da praia iam do amarelo ao negro
e os moços que as guiavam
eram chamados de salva-vidas

não existem mais bandeiras negras
na areia
a cor do perigo
agora
é vermelha
e os moços viraram guarda-vidas
perceba a diferença
entre salvar e guardar
a previdência é a bola da vez
vejam só a ironia
a previdência no mar
a previdência na terra
na lama

no dia 7 de fevereiro de 2017
eu me afoguei
no mar
foi tudo muito rápido
eu sabia nadar
eu tinha fôlego pra nadar
mas eu só conseguia gritar
o medo faz isso com a gente
nos afoga

os guarda-vidas eram dois
e foram muito eficientes
saí do mar com vida
saí do mar
com medo

eu não sei bem se foi a água salgada no pulmão
ou ainda a estranheza de saber-me viva
fora do mar
mas alguma coisa mudou
nesse dia
dizem que a proximidade com a morte faz isso com a gente
nos afoga
nos salva

a poesia não salga
sempre
porque nem sempre dá pra entrar no mar
nem sempre dá pra escrever
um poema bêbado
que nos traga a dor e a delícia de ser o que é
às vezes
é preciso
cair
cair
cair
e fazer da queda um passo
incontornável
às vezes
é preciso perder tudo
pra achar alguma coisa
é preciso ter consciência
para ter coragem

quando lembro daquele dia
no mar
com sal nos pulmões
penso que guardar é mais bonito que salvar
a gente guarda o que ama
e salva o que pode
a poesia não salva
a poesia
rompe.

o amor é planta

a minha amiga disse que o amor caminha, assim,
como uma planta
e eu pensei ser esta
a metáfora perfeita
para explicar tudo
que cresce na gente
e que a gente não explica
e embrulha o estômago
porque uma coisa que cresce
precisa de espaço
e pra abrir espaço
é precisa limpar a sujeira
de dentro
que é sempre mais difícil
de limpar

se o amor é planta
nasce bem em solo fértil
mas também nasce in vitro
pode ser manipulado
controlado
com a promessa de ficar mais forte
melhor
geneticamente falando
menos propenso a pragas
ou a outros danos
imprevistos

há quem queira prever tudo
até o amor
como se ele fosse via de mão única
como se o outro
fosse eu

há também
quem diga que o amor nasce da distração
da perdição
da correnteza
e que não há como escapar
deleitar-se
é o que resta
lidar com as quedas e com o poço
buscar o fundo
a poção de amor

uma fenda nos separa, meu bem
eu disse
enquanto deitava na pedra salgada
e me banhava de sol
e minha perna esquerda atravessava a fenda
chegando meu pé ao teu lado
de olhos fechados
imaginei a fenda sumindo
imaginei-me apagando a vela
e sentando ao teu lado
para uma farta refeição
se o amor é planta
o preparo do alimento é como o preparo da terra
de onde tudo brota

se o amor é planta
então ele é estrutura
é o primeiro andar do prédio
a porta de entrada
o acesso a todos os cômodos
o elevador que nos leva ao ponto mais alto da torre
onde basta estar
para sentir
vertigem

eu sempre tive medo de altura
mas queria estar no alto
mesmo assim
a vertigem
nunca me impediu de subir na torre

acontece que a torre
de repente
ficou alta demais
e por mais que eu suba
parece que nunca chego lá
e quando olho para baixo
vejo a planta
vejo o amor
me sussurrando palavras que eu não consigo ouvir
porque eu subi demais

acorda, amor
a terra chama
o amor é planta
desce
enquanto eu preparo o nosso alimento
você pode me amar

Cantiga de amiga

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sabe, amiga
eu também pensei um dia
que só os homens podiam
falar de Amor
que para uma mulher
o desejo de amar
era coisa romântica
e eu nunca fui romântica
detestava até mesmo beethoven
e lia na história da sua surdez
a dificuldade de ouvir
que eu mesma sentia às vezes
porque as palavras tinham arestas agudas
e feriam dentro
do que eu não sabia se eram os ouvidos
a garganta, a vagina, o coração, o útero

sabe, amiga
eu também pensei um dia
que só os homens podiam
falar de Amor
que na voz de uma mulher
qualquer história parecia aquela
da princesa raptada por um cavalo
precisando achar divino o sujeito
que esporeava o cavalo
porque afinal era a única maneira
de deixar a torre

sabe, amiga,
eu muitas vezes pensava
ter que me acostumar a viver na torre
para todo o sempre
eu que não desejava o príncipe
conviveria com o claustro e suas paredes
tingidas de cal
eu pálida freira
e as grades que eu amava
porque eram a entrada de ar e luz

sabe, amiga
cheguei a ensaiar também
montar eu mesma no cavalo
tornar-me aquela que desce o chicote
na cavalgadura com brutalidade
e foge e se exila na floresta
claustro mais verde e mais habitado
eu eremita
mas de novo eu ouvia a história da princesa
porque sempre aparecia ali uma bruxa
eu bruxa, fabricando venenos
para enfim matar a mocinha

sabe, amiga
também arrisquei jogar da janela
os cabelos todos em trança
até a beira da estrada
e receber cada cavaleiro andarilho sacerdote
barbeiro caixeiro-viajante cientista
deputado doutor boticário
até ter o mundo dentro de mim
mas o mundo em mim
não era espelho de mim no mundo
e o que restava era a dor
de infinitos natimortos
que sugavam as tetas da bela adormecida
até que ela acordasse aos gritos
pois não convinha à bela
gritar de Amor

sabe, amiga
por muito tempo pensei
que só os homens podiam falar de Amor
e achava intolerável
ouvir os homens falarem de amor
e ter que responder qualquer coisa
da ordem do romance
os romances que eu gostava
eram os da clarice lispector
e não dava pra ser a lóri
as bolas de ulisses me davam náusea

mas sabe, amiga
aconteceu um dia
de eu arriscar umas palavras
sobre o desejo
primeiro o desejo que eu gostava que ardesse
e se consumisse em uma duas três noites
e sempre que me ardia em desejo
ressurgia uma fênix ávida por outro alimento
que eu não sabia nomear

então aconteceu outra vez
de arriscar dizer eu te amo
pra um desejo que eu gostava que durasse
que já ia durando
eu ainda não sabia que o Amor era feito de brasa
uma brasa que se acendia com o vento
e podia queimar se não se cuidasse
uma brasa que quase se apagava
e era preciso passar noites inteiras soprando
o fogo cansa-se, amiga
e também se cansa quem porventura
precisa manter sozinha a brasa acesa
e deve ter acontecido daquela vez
o Amor feito cinza
encontrei algumas vezes o Amor
enquanto andava pelo mundo sem saber bem
o nome do que estava procurando.
mas os homens podiam falar de Amor
e eles sabiam bem o nome daquilo de que fugiam
eles diziam alto no primeiro encontro
palavras que eu não compreendia
para explicar que estavam fugindo do Amor
que não estavam fugindo de mim
que me queriam bem mas o Amor não queriam
e eu assistia aquilo sem compreender bem
porque ainda não sentia nada
sequer parecido com amor

sabe, amiga,
acho que os homens contam entre si
histórias terríveis sobre o Amor
histórias tão terríveis
como as histórias que eles costumam nos contar
sobre uma princesa que espera
e um pobre coitado que precisa correr mundo
pagar sete prendas
trabalhar sete anos
ficar provando que ama
enquanto cala o desejo
de ser a princesa da vez
e só ansiar receber passivo
a notícia de saber-se amado

sabe, amiga
eu vou escrever um poema de Amor
o poema começa com alguém que diz
eu te amo
mas eu acho que o poema não tem fim
porque o Amor é coisa que se derrama
como uma erva cobre chão e sobe no tronco das árvores
o Amor caminha assim, como uma planta
e como uma planta ele precisa de quem o habite
e pra habitar o Amor
é precisa alguma coragem
a persistência de quem lavra
são precisas as nossas palavras
dizendo os Amores
onde a gente deseja viver

acorda, amor

eu queria escrever um poema sobre amor
mas acontece que ele anda escasso
o amor
como objeto
como sujeito
como nós
sem amor

não tenho um Jacob ou um Lukás na minha vida
talvez Adelaide também não
mas ela escreveu sobre eles
para eles
e daí eu fiquei pensando que o último poema de amor que eu escrevi já faz tanto tempo
e que todos os poemas de amor que eu escrevi foram
para ……..
talvez eu nunca mais tenha me apaixonado depois
de ………
– embora eu me apaixone o tempo todo

eu queria escrever um poema que falasse da cumplicidade de um amor
do desejo de seguir juntos
de juntar os cacos a quatro mãos
de cuidar dos cortes
de respirar fundo
e recomeçar
mas eu não quero cair no clichê
e eu nem sei mais falar de amor
– embora eu fale de amor o tempo inteiro

eu não sei porque eu tô chorando
eu só queria escrever um poema sobre amor
mas eu perdi a mão
nestes tempos de revolta
feminismo não rima com romantismo

eu só queria voltar a acreditar no amor
sem perder a linha
que tece a minha história
sem emaranhar-me nos fios
de outros

eu não quero mais recolher os cacos
sozinha
no escuro
chorando
baixinho
para ninguém mais
ouvir

eu não quero mais
masculinidades hegemônicas
apatias, alopatias
ausências cotidianas
e eu nem sei exatamente o que eu quero
mas saber o que não se quer
já é bastante
para hoje

eu só queria escrever um poema sobre amor
mas acontece que o amor anda escondido
em múltiplos casulos anelados
à espera de mãos e corações febris
à espera de um convite aberto
o amor
hiberna

afetação

20190723_122814

Refundar a existência parece ser o trabalho agora
outras referências
o paideuma dos meus afetos
fêmeas

Estar de volta
o calor e o silêncio acalmando o peito
quase tudo está bem
eu agradeço
enquanto penso em arrancar os pelos
a expressão da nossa loucura rotineira
chegar e partir
aqui jogo minha âncora
ela desce até as profundezas
e promete
segurança na flutuação
Barco? Iceberg? Prancha? Canoa?
o apito do navio anunciando

é preciso ampliar o tamanho das letras para ver palavras grandes
e tentar enxergar o que tem dentro delas
caminhos inusitados
insólitos enredos
e o que tem dentro do coração?
sístole, diástole
teu nome teu olhar e a memória da dor

Vermelho é o traje das que tem o honrado destino
conceber e parir as crias
que não serão suas
mas deles
bendita seja a fruta
quando olho para a cor desse lenço
lembro do que podemos nos tornar
e que os significados construídos
estão sempre ameaçados
são os horrores da sua imaginação, há quem diga

o fio vermelho escorre e anuncia
prepare-se para a dor
ela chega e eu sinto culpa
comi bebi corri e aloprei demais
mas o nome disso talvez seja vida
líquida
ela pulsa em caminhos
bifurcações raízes ambiguidades
e eu ainda não escolhi virar monja
o sabor do risco
transbordar o copo
santo graal
cabernet carmenére malbec shiraz
com toda devoção
o vermelho da vida
entra e sai do coração
pela boca
tem gosto de sangue
tem gosto de amor
náufraga

e quando o dia se finda
o sol tinge o horizonte
rubro lavanda ouro
as nuances do ciclo
extravagância
amanhã tem mais
eu exagero mesmo
é isso que o vermelho me diz
que tem muito e ainda mais
para as que sabem tocar
o gosto de ferro
o cheiro de carne
a morte e a vida
na semente
maçã
você me diz de suculências, apetites, afetos e venenos
enquanto o trabalho ocupa e consome
meus (res)sentimentos agravados com o vento

Na caverna pude ver e ouvir
os veios da terra, o som que faz
plic plic plic plic
amplificado e contínuo por eras
úmida, escura, escorregadia
acolhe a humana presença assustada
meus olhos pingam
estalactite
plic plic plic plic
dedos inquietos e ardentes
marcam aqui o tempo de uma passagem
breve
longa
na alternância da duração
partitura
o corpo canto a terra dança

O vermelho da vida

vermelho_da_vidaÉ sinal fechado
é ponto morto
é espera
é estar pendente
da ascensão ou
da eterna danação

Caminho com Virgílio
passos felinos no topo
do muro
MONUMENTAL

É procura
é busca
é resgate
é um corpo que para
pela metade
É pavor
que de tão rubro
mal cabe no peito
que o acorrenta

Carmim os caminhos
magenta magnéticas
manhãs
afogueado nos olhos
afogados os gritos

Escarlate os pedidos
de socorro
escondidos na noite
enquanto o fio vermelho
ainda escorre

Dedos de moça mulamba
rubro corpo diminuto
arde no tambor do dia

Malagueta e Cumari
porque a picância da vida
faz a dor
o choque
o apavoramento

Jalapeño e Caiena
em plena cor
da beleza
dançam ao vento

Rodam tules e babados
efeito tufão
tacos tocam tons
no despedaçar
das horas

Dedos de moça espanhola
inventam rojas castanholas
valentes

O vermelho da vida
pinta o espaço
entre a espera e
o próximo movimento
corredor frente ao
tiro da largada
concentração máxima
da força humana
humana, demasiadamente
humana.

 

baía

imagem-internet
Fotografia de Felipe Vernizzi (2018), a qual eu chamo de “vermelho da vida”.

 

eu escrevo
um passo de dança
completo

a sentença

ainda tenho que comentar
sobre a ausência passada
de feministas ao redor da escritora
ainda
preciso escrever a nota
sobre ambiguidade
ter bifurcação
como sinônimo
de ameaça
e de chance
segundo
a criança que corre
em direção ao mar

as luzes na baía
mais ao sul
brilham tão bonitas

é muito melhor
olhar para elas
que para os horrores
de minha imaginação

minha

nossa

“a sua história é a minha história
e a minha história é a sua história”
disse a comediante

acho que vou
pedalar até a Solidão