A língua das abóboras

Visto minha saia de outono pra falar da língua nova que aprendi.
Aqui na roça e, em todas as roças, o idioma é outro.
A vida é impiedosa.
A peste imperativa
e os xingamentos que escuto baixinho vindos da comunidade dos inços falam de resistir.
Dentro da ação de cada semente há sempre um tanto de dúvida e outro tanto de esperança.
Não é sobre a espera, mas sobre a ação da forma – trans-mutada – trans form ação.
Sabe aquelas sementes plantadas com uma gota de desejo em cada cova?
Vizinhas leguminosas, as abóboras morangas e cabotiás, essas que moram juntas, ensinam de sua forma e de sua doçura uma para a outra; egocêntricas entreolham-se para ver quem corre mais longe pelo chão ao se esparramarem sobre o território.
Aprender a linguagem da trans form ação, implica em territorializar.
Fincar estacas.
Colher abóboras.
Cortá-las em breves pedaços.
Cozê-las no tempo da lenha.
Abrir covas.
Adubar.
Sentir-se deus ao poder matar
as pragas e arrancar a peste.
Enquanto as abóboras, entregues à sua própria suculência dentro da panela, passam pela glória de correr para dentro de si mesmas.
Derretido todo o sumo, a polpa espessa aceita quente a dominação de quem transforma.
Fazer chimia é dominar um território 
alquimia secular.
Substância ouro que em borbulhas, açúcar, cravo, canela e gengibre surge no tempo arrastado da transfiguração.
É luxo, prazer e alegria.
Uma alegria assim, meio envergonhada como a gente da roça.
Envergonhada é a palavra abstrata que fala flecha direta ao tambor do coração,
certeira no rubor da face e enviesada no olhar.
A língua química atravessa todos os corpos da gente que é Terra.

de olhos abertos

(este é um poema-ensaio apresentado em conversação sobre arte e psicanálise na jornada “Tempos de sonhar, instantes de despertar”, da Escola Brasileira de Psicanálise em Florianópolis, outubro de 2019.)

eu queria fazer um poema
sobre a escuta
falar sobre escutar
desde sempre
uma contradição?

o que é preciso ouvir
pra se acordar?
enquanto estou falando
quem dorme?
quem desperta, não pra si
mas porque o alarme tocou
é hora de ir
pegar o ônibus
deixar pronto
o conforto
do caminho pros outros
acordarem?

tem casos em que dormir
e acordar
não passam de dormir
e acordar

então estamos em uma distopia?

perguntas clichês?
imagens clichês?
todos os dias vistas
histórias pra serem ouvidas
sobre as quais sequer
sonhamos

em que estágio do sono deixamos
todas aquelas que não somos
todas aquelas que não estão mais aqui
e as que estão
de olhos forçadamente abertos
pra que a gente durma em paz?
eu deveria aqui trazer fatos? alguns exemplos concretos do que estou querendo dizer?

como é que a gente vai pensar em despertar
quando o sonho for o único lugar
em que a invenção parece possível?

eu sei, são muitas perguntas
mas talvez seja a interrogação
algo que nos possa fazer estirar
o olhar
desapertando
a língua
que se joga
em instantes de um certo
despertar que sonha
se mantém carne
viva
muito real
porque pulsante

assim, isso não seria um poema
mas o verso
tentando
acordar?

o que me garante que
acordado
o verso
desperte?

eu gosto muito
de algo que a susana scramim escreveu
em “literaturas do presente: história e anacronismos dos textos”
sobre a poesia
contemporânea
ter abandonado
o que ela chama de
fazer arte
(poderíamos dizer deixado
de sonhar?)

ela fala isso pra discutir
algumas posturas da crítica literária
ela diz:

quando a crítica contemporânea acusa a arte e a poesia de produzirem formas “fraquinhas de negatividade”, aquilo que é cobrado nesse julgamento não são formas “fortes” da negatividade e sim a origem da forma não como geradora de mais e mais questionamentos, mas antes, tomada em seus mitos, como doadora de soluções apaziguadoras em sua sistematização.

ela tá se referindo aí
a um texto específico
da iumna maria simon e vinicius dantas sobre o poeta carlito azevedo
que têm uma postura
muito próxima à dos modernistas
que não conseguem incluir a si mesmos
no gesto crítico que colocam no mundo
em resumo
a poesia que essa crítica
muitas vezes considera “fraca” ou “repetitiva” ou “infrutífera”
na verdade
diz de uma incapacidade
dessa crítica
de olhar
de escutar
essa poesia
que estaria
de algum modo
devolvendo
esse olhar
como quem sinaliza:

acorde!

a susana scramim diz
ainda
sobre essa poesia:
mesmo abandonando a prática de um “fazer” artístico, a poesia contemporânea marca de modo bastante intenso seu “desejo” de produzir arte. Negando os princípios que organizam o pensamento e ações modernas que operam pela teoria e prática da conquista, da divisão e da dominação, busca evidenciar a distância da arte de seu mais precioso desejo. Quer seja, o de anular a relação dicotômica moderna entre arte e vida. Esse desejo se moveria por encenações da mitologia mesma da literatura. Encenações essas que colocam em evidência os limiares das formulações construídas com base em contradições. Deixa, com isso, de tratá-los como limes/fronteiras, e os expõe em carne viva, ou seja, como contrações – que são – não resolvidas. A escrita que resulta desse modo de compreender a si mesma apresenta-se como teatral, uma vez que já não representa nada, não está no lugar de nada, apenas é, sem se preocupar com elemento contraditório, seja ele o referente, seja ele o pensamento abstrato. Com uma escrita bastante marcada por um desejo de produzir experiências sensíveis e inteligíveis em meio a processos de formulação escrita, a poesia contemporânea responderia à exigência de sua tarefa com uma atitude que pode ser interpretada como uma negação às fronteiras de gênero e às concepções de seu próprio fazer artístico estabelecidos de antemão, ao mesmo tempo que propõe uma prática escrita cuja função é dar a ver lugares e paisagens criados a partir de cenas (re)tomadas de sua mitologia textual. Se estabeleceria nessa escrita uma relação entre voz (querer dizer) e linguagem (ser obrigado a dizer) que implica o enfrentamento de uma das formulações mais radicais da poesia moderna, a saber, reelaborar a relação entre a escrita da poesia – do verso – e a produção do pensamento que se mantenha ético

mas eu não vim aqui
pra falar de crítica literária
eu falei tudo isso pra dizer
que a poesia a arte
quando despertas do sono de uma fundação
passam a ser formas de contato
formas de vigilância das armadilhas do nosso tempo
um corte uma pausa uma insistência
uma coletiva abertura
que nos permita
como a luciana di leone falou
“colocar o dedo na ferida da nossa época”
para poder, a partir daí
abrir brecha
assim
o poema
nas suas palavras
passa a “ser menos uma obra fechada, ou ter uma identidade, uma ontologia, e ser mais algum tipo de relação, marcada pelo endereçamento, o ir ao encontro de um Outro, um encontro que implicaria o poder de afetar e ser afetado”

mas
a partir de qual perspectiva política nós sonhamos, olhamos, criamos e agimos?
pergunta a bell hooks em “olhares negros: raça e representação”

é sobre o despertar em busca de novas imagens
que a bell hooks vai escrever
um despertar que só se torna possível
se nos dermos conta de quem controla as imagens com as quais sonhamos
ela nos lembra
como quem diz:
despertem!
de que “da escravidão em diante, os supremacistas brancos reconheceram que controlar as imagens é central para a manutenção de qualquer sistema de dominação racial”
ela alerta
como quem diz:
acordem!
que consideremos a perspectiva a partir da qual olhamos, questionando de modo vigilante com quem nos identificamos, quais imagens amamos. Se nós, pessoas negras, aprendemos a apreciar imagens odiosas de nós mesmos, então que processo de olhar nos permitirá reagir à sedução das imagens que ameaçam desumanizar e colonizar? É evidente que esse é o jeito de ver que possibilita uma integridade existencial que consegue subverter o poder da imagem colonizadora. Apenas mudando coletivamente o modo como olhamos para nós mesmos e para o mundo é que podemos mudar como somos vistos. Neste processo, buscamos criar um mundo onde todos possam olhar para a negritude e para as pessoas negras com novos olhos.

para que essas imagens se reconstruam
a compreensão de que esse sonho deve ser
de todos
é essencial

mas a bell hooks
acrescenta
que se muitas das pessoas não negras que produzem imagens ou narrativas críticas a respeito da negritude e das pessoas negras não questionarem suas perspectivas, elas podem simplesmente recriar a perspectiva imperialista – o olhar que procura dominar, subjugar, colonizar.

os jogos de dominação
sempre têm seus recursos
pra nos manter
dormindo

há casos em que a única possibilidade de sonhar
é a de permanecer
em vigília

por isso é muito difícil fazer esse poema
e por isso eu queria que ele fosse sobre a escuta

é que preciso pausar
pensar
sonhar não se pode
pronunciar sem perigos
quando não nos perguntamos
sobre o que está no seu horizonte

parece que o esforço de despertar
será desproporcionalmente maior?
talvez seja
como remar contra a maré

o despertar do verso
então
é como uma atenção
à respiração
minha
e sua
para que continuemos
nadando

talvez encontremos
ilhas

eu só fico
impressionada com uma coisa:
diz a adelaide ivánova em “desobediência do estado civil”
tudo se ajeita a vida segue
com golpe ou sem golpe
com ou sem sete de setembro
jajá estaremos acostumadíssimos
que horror
já saber se a vida segue
sem você isso eu
não sei
mas hoje não vou protestar
vou dormir

a gente percebe que ela é irônica
mas que ela encena
justamente
a nossa capacidade
de continuar
mesmo desumanizados
ela diz de uma contradição
com a qual temos de conviver
para a qual temos
de despertar

expor essa contradição
no texto
é uma forma de não propor
soluções míticas
que não passariam de uma forma
ao fim
de enaltecer a poeta
para que voltemos
a dormir
sem que nos demos conta
de que é um sonho coletivo

talvez eu não tenha palavras
mas me lembrei
do que o Walter Benjamin falou
sobre os filmes do Mickey Mouse:
aqui aparece pela primeira vez que alguém pode ser roubado de seu próprio braço, sim, de seu próprio corpo. O percurso de um documento em uma repartição tem mais semelhança com um dos que Mickey Mouse percorre do que com o dos maratonistas. Nestes filmes a humanidade prepara-se para sobreviver à civilização. Mickey Mouse demonstra que a criatura ainda pode subsistir mesmo quando toda semelhança com o homem lhe foi retirada. Ele rompe com a hierarquia das criaturas concebida com fundamento no humano. Estes filmes desautorizam, da maneira mais radical, a experiência. Não é compensador em um tal mundo ter experiências.
Semelhança com os contos de fada. Nunca desde esses contos os fenômenos mais vitais e importantes foram vividos de forma tão não simbólica e sem atmosfera. O incomensurável contraste com Maeterlink e com Mary Wigman. Todos os filmes de Mickey Mouse têm como motivo sair para aprender o medo. Portanto, não a “mecanização”, não a “fórmula”, não um “mal-entendido” são a base do tremendo sucesso destes filmes, e sim o fato de que o público neles reconhece sua própria vida.”
“O cinema introduziu uma brecha na velha verdade de Heráclito segundo a qual o mundo dos homens acordados é comum, o dos que dormem é privado. E o fez menos pela descrição do mundo onírico que pela criação de personagens do sonho coletivo, como o camondongo Mickey, que hoje percorre o mundo inteiro. Se levarmos em conta as perigosas tensões que a tecnização, com todas as suas conseqüências, engendrou nas massas – tensões que em estágios críticos assumem um caráter psicótico -, perceberemos que essa mesma tecnização abriu a possibilidade de uma imunização contra tais psicoses de massa através de certos filmes, capazes de impedir, pelo desenvolvimento artificial de fantasias sadomasoquistas, seu amadurecimento natural e perigoso. A hilaridade coletiva representa a eclosão precoce e saudável dessa psicose de massa. A enorme quantidade de episódios grotescos atualmente consumidos no cinema constituem um índice impressionante dos perigos que ameaçam a humanidade, resultantes das repressões que a civilização traz consigo. Os filmes grotescos, dos Estados Unidos, e os filmes de Disney, produzem uma explosão terapêutica do inconsciente. Seu precursor foi o excêntrico. Nos novos espaços de liberdade abertos pelo filme, ele foi o primeiro a sentir-se em casa. E aqui que se situa Chaplin, como figura histórica.

estamos trabalhando
para dormir
em qual sonho coletivo?
com quais imagens estamos sonhando
sem saber
que impedimos
o despertar
do ser ao lado?
nenhuma resposta simples
pode nos fazer
acordar

talvez uma forma de escapar
nem sempre tão óbvia
seja uma abertura
às contrações
de que a susana scramim fala
e assim sonhar e despertar
não podem ser palavras soltas
a partir das quais podemos ampliar
a abstração
mas palavras-corpos
marcadas
pela história
pela vida
palavras com sangue nas veias

a gente lembra que tinha um tempo
(e talvez com esse tempo alguns
ainda sonhem)
em que a arte era entendida como a exaltação
da beleza
uma forma de sonhar
acordado

não dá
pra fazer poesia com isso

em uma entrevista
a psicanalista francesa anne ganivet
quando interrogada
sobre se a arte está ao lado do sonho
ou do despertar
diz que sempre esteve ao lado do corte
da surpresa do rechaço ou do escândalo
ela diz ainda que o que a impressiona é que
quando “a obra” emerge
o artista segue servindo-a
até se cansar
e se pergunta se
os artistas cujas aspirações não são mais a sublimação
encontraram uma linguagem própria
pra continuar cavando
o buraco
que é a linguagem
para que ele não se feche

pode ser que eu esteja sonhando
mas o que eu pensei foi que
hoje
há uma urgência
de uma espécie
de cavar-junto?

eu pergunto
com as vísceras
aqui expostas

pra mim
hoje
pensar fazer discutir seja o que for
isso que chamamos de poesia de poético de arte?
por favor, eu gostaria de não romantizar
não pode ser dissociado
de uma experiência coletiva
talvez a nossa história
não nos deixe outra alternativa
e tenhamos que assumir
a nossa tarefa

a experiência coletiva
não é um bloco monolítico
e somente dessa perspectiva
essa afirmação se desperta

mas eu não pensei nada disso sozinha
desperto e sonho
junto

talvez eu não tenha palavras
e eu gostaria de ter o cuidado
com os perigos
do enaltecimento
porque já sabemos
a que caminho isso nos leva

mas esse poema que eu não sei escrever
sobre a escuta
é sobre
o despertar de uma palavra que se quer
nessa
abertura
de um convívio
em que o contato
é contração
uma possibilidade de um
si em contradição
nós
e por isso uma abertura do olhar para aquilo que não se vê

eu tenho sonhado
nas últimas semanas
talvez isso não seja de interesse de ninguém
mas afinal eu vim
pra falar a partir disso
eu tenho sonhado
com situações de ameaça
das quais eu quase não escapo
e quando desperto
algo de mim permanece lá
preso

quando eu acordo
eu preciso beber água
enquanto descem os goles
macios
pela garganta
eu penso que
eu queria ter sonhado
com a versa

confesso

Vi-a de longe.

Passo lento como de quem sofre

olhos cravados no chão

atravessam as lentes escuras

escondidas no peito, de quem sofre.

 

Decido não me anunciar.

Escolho abafar minha presença

daquele olhar que olha o nada

no andar que anda para o não

de quem sofre.

 

Ela sabe, eu sei.

Ela espera, mas sigo

na sombra daqueles passos

que sabem só

o caminho de sempre, de quem sofre.

 

Espera uma surpresa, eu sei.

Espera branca uma visita

um pálido sorriso de quem sofre

um olhar anoitecido, de quem dói

naquela vida incolor, uma parca vida.

 

Confesso

(e toda confissão está

embebida de vergonha).

Digo assim, com

tremor nos lápis que fugi.

De seu reconhecimento

branco, fugi

de seu abraço e

da saudade, fugi

de sua vida pouca

acorrentada, mas não fugi

de mim.

despoema

ana_sabia

Ana Sabiá

“só derrubando furiosamente poderemos erguer algo válido e palpável: a nossa realidade”
Helio Oiticica

Olho para as estrelas enquanto tenho os pés na lama
falavas daquele filme, de tantas premissas, de constelações vizinhas, de gimnospermas
uma nova mesma história outra vez
eu acompanhava, balançava a cabeça
e a gente ria muito daquilo
desconfio acho que ríamos mais do nosso engano
e do desespero compartilhado
ou do amor?

Olhar adiante
de cima para baixo, da direita pra esquerda
seguir o sentido pré-definido
meus olhos desaprenderam
o tempo todo perseguir as pistas
letras falsas
gestos cínicos
em telas e páginas que reluzem na podridão
custa muito acumular as pedras para contenção
e na verdade não se entregar
por inteiro
a sombra cresce sorrateira no silêncio
há algo que se possa desfazer?

Novo lance, de outro ângulo eu vejo
nada nada nada que seja capaz de descrever
mas contamos mil e uma noites
em paisagens estranhas
com uma caneta eu tentei unir os sinais no teu corpo
ligar os pontos
descobrir no desenho que formaria
teu destino
nada nada nada a desvelar aqui ou além
só esse presente agora passa

interferência

voltou o caminho como quem quer rebobinar a fita
para ver se algo passou
despercebido não visto
pensou que talvez devesse começar dizendo que enxergava mal
sempre teve a sensação de cegueira
aquela sensação de que alguma coisa está
sempre escapando
aquele sonho naquela rua escura só para você
que mesmo de olhos bem abertos não podia
enxergar nada

você também sente
que ao se mover
para fazer qualquer coisa tende
a mudar de direção
e acabar fazendo outra?
em quase todo momento
a mesma pergunta embora o tom
sofresse ligeiras alterações
de vez em quando preciso olhar
para o céu para descansar
as vistas
disse com uma ênfase que a si mesma surpreendeu
desejo poder sentir mais do que vejo
para além 
das previsões
tocar o chão
os limites
são muito reais
e não mais interessa
se é possível chegar às bordas
tudo bem
ver coisa onde não tem
continua
sendo vista de novo
significando sem parar
outra coisa
como quando você muda de direção
sem perceber

talvez o mais difícil seja
olhar
para este lugar
aqui
o que há aqui que eu não vejo?
como olhar para fora sem
se sentir desmembrado?
alguém já perguntou
de que forma manter vivas as diferenças?
agora o que eu faço é tentar
manter viva a diferença
atravessada
no olho
multiplicada pelos cacos
do espelho
interferida

THE-CLOCK-4

metrópole me atropela
multidão e choque
nada de novo
unhas pretas

recebem-me
selvageria e medo
chagas trabalhadas
em dança sabores olhos
de espuma e gozo

é japão itatuapé

sé na boca do abate
metrô praças imagens
e encruzilhadas fêmeas
madalena mariana margarida
judiths se apressam na pisada firme
pressão de muitos afazeres para reivindicar
o simples deleite da vida líquida

galeria do rock
no centro formigão de vasta quente barriga
criaturas distribuem alhures
furos de eternidade

tem teatro todo tempo

ainda

e nos largos queimam-se bruxas

ainda

afobam-se outras criaturas
da desgraça desforra
do discurso de castração

lá e cá uns também se afogam
nas galerias submarinas
e nas superfícies
atravessam acidentes
rochas pontiagudas
esfolam-se nessas passagens
peles

as ilhas se afastam
todas deslizando num mesmo fundo mar
possibilidades abissais

hesitante eu
na travessia

em qual irei repousar
minha pergunta?

na calçada da bela cintra
esculpida uma bunda cinza
com um pedaço de escroto carvão
emoldurava
a lajota fezes nossos pés
que trotavam em busca de

um tempo recuperado

no décimo oitavo andar
cogumelos e uma fala
rosê quase
sanguínea
expele a bílis de

um tempo perdido

melancolia

pulsa tudo

e uma poeta
diz que
o corpo urge

ainda / estamos em alerta

na trincheira contra
o quê?

estamos em pesquisa
diremos no momento certo
o lugar onde chegamos
e talvez já seja então

passado

trafegamos em discursos
dispersos inexatos
há sinais de ameaça
em todo canto
desconfio de toda sombra
de incredulidade
virá sim esse tempo
de novo?

ainda?

o horror sempre aí esteve, ora direis

sem indicação de saída
apenas uma pergunta
agindo no negativo
ninguém vai indicar a saída?
meu corpo irmão burro não sabe
não consigo articular minha língua

negativo é o desejo

não é isso?

o lacan que disse

não sei se foi isso o que li que ele disse

negativo?

extrapola a falta
estupra a fala
porque nunca
esteve o desejo?
nem no outro?
narciso é isso?
gozo do caldo caótico
obtido das contaminações
de desejos não amortecidos
nunca

ainda?

tudo me confunde
porque uns preferem
príncipes e princesas
às bruxas

ainda

feiticeiras na guerrilha
revisitam clandestinas
nossas delícias fronteiriças e livres
por momentos apenas

dionísios continuam sangrando
do alto de um mundaréu de sacos de lixo
lima barreto lamureia o destino
tanta desdita

solitário ainda

o poeta no lixo
no palco
multidão às avessas

mas as lâmpadas
continuam acesas
no décimo oitavo andar

e há refletores
que projetam luz
sobre as covas

femininas vozes
me cantam do mar
e tudo pode não passar
de uma ilusão
fugidia

sugando
minha vontade
de poder

porque o luto em mim
é silêncio e boicote

o céu está todo azul
há mar em torno
e todos os outros líquidos
tentáculos de polvos libidinosos
luas aguadas em lagoas

na tela entre morro e cidade
alguém apesar da fome
diz que o carboidrato é o veneno da vez
e câncer é apenas falta de oxigênio nas células
regule seu ph
é simples

refugiados palestinos
servem homus e falafel
e na bexiga da calçada
um rizoma móvel
acolhe possíveis garoas
fadas coroas que fingem
circunavegar
ruas tristezas

as armas em punhos
femininos ou masculinos

o (e) é grande motivo
de conflito

sem nenhum acréscimo
a humanidade quer
continuar destroçada
com falo em riste

mesmo assim

eu só queria dizer
bem no início
que alguma coisa aconteceu
no meu coração
quando cruzei a ipiranga
e a avenida são joão

e alguma coisa acontece agora
porque o sol
me agarra por trás
e minhas células
parecem celebrar

um coletivo de éguas
menos caos

nas águas intrauterinas
pausas ardores tumores amores

do meu ladinho
um beija-flor purpurina
fabula um voo cores
e beija brincos de princesas
que adoram seu beijo
e se deixam viver
apenas

nem se importam
ou sabem
do seu nome de princesa
ou de flor
brincos tampouco usam

habito entremundos
um pé em cada ilha
doloridos saltos altos
já sinto o esgaço
a fenda vai separar

meu corpo/ilhas

recomponho em seguida
os pedaços
misturam-se outros
mas nas suturas
ajustam-se as veias
depois é a bênção do iodo
baba de Iemanjá

ainda não sei em qual ilha
depositar meus destroços

entrecoletivos carrego-me
vacinas campanhas de afeto
sem garantias
e letras mínimas ilegíveis
indicam prazos de validade

que ignoramos

implacável

ela quase caiu da escada, disseram. devolvi com um sorriso falso, fraco, em resposta. ninguém sabe que fui eu quem tropeçou e rolou, escada abaixo do nível do mar. um calendário em meu corpo, acompanho a metamorfose nas manchas pretas, roxas, azuis, amarelas…. desenhos uniformes, totais, se diluindo em pontilhados, sombras cada vez mais tênues. debaixo da carne, os ossos. coração de galinha no espeto. quando olhei o primeiro degrau, foi uma vertigem que senti, tremor de terra, vento forte. o desequilíbrio e a queda permanente ensinam: meu umbigo está no centro. agora nós aqui reunidas, um arquipélago, todos os umbiguinhos. se o estômago ronca, canta seu solo que nos envergonha ouvir, teria sido melhor não esquecer das vísceras? ali onde se digere, os restos fermentam, algo se excreve pra lembrar que tanta pompa não nos poupa do antigo fato: além da testa, além da teta, o dedão do pé na beira do abismo dança.

na feira

arrepio
abracei todos os olhares
que identifiquei
por um segundo
vi tudo cair
tomates, cebolas
roxas
cenouras meio verdes
demais

ainda que prevendo
possíveis desastres
lembro
só estou aqui
de passagem

isso é um consenso

imagino que seja capaz
de escolher um abacate que não
amadureça rápido demais
bananas
são tão saborosas mas
costumam trapacear

entre um vão
e outro
dos corredores
encontro           deixo cair uma laranja
uma questão inconfessável
desconfio?
lembrei de lau que me disse
agora compreendo ana c.
fiquei curiosa com
a afirmação
pensei que queria ser menos
séria

sem tropeçar sou
vista
escolho
com cuidado as cebolas
não choro
não é a hora
(a janta ficou para às 19h)

você tende a ver o que você quer
ver nos outros

e quando você fala
com os outros você ouve
o que você quer ouvir
é provável
que você tenha conflitos
com as outras pessoas
por conta de mágoas
imaginárias

acho que não
é comigo
saio satisfeita
com as maçãs
e as batatas
(assadas depois
com alecrim)

Clarice, novamente… me olha

Parece que já faz muito tempo que tenho pensado em como ver, como poder ver o que se mostra…sem enjoar…e contar, e gritar!!

Eis que as palavras da Lisptector me encontram (aliás sempre tenho a sensação de susto quando sou encontrada, sem fazer nada, pelas estórias escondidas nos livros da biblioteca que me acompanha) assim que, sem poder, nem ter um parco talento para escrever, compartilho um trecho de “Os desastres de Sofia” que diz assim:

“E meu estômago se encheu de uma água de náusea.

Não sei contar.

Eu era uma menina muito curiosa e, para a minha palidez, eu vi. Eriçada, prestes a vomitar, embora até hoje não saiba ao certo o que vi. Mas sei que vi. Vi tão fundo quanto numa boca, de chofre eu via o abismo do mundo. Aquilo que eu via era anônimo como uma barriga aberta para uma operação de intestinos. Vi uma coisa se fazendo na sua cara – o mal-estar já petrificado subia com esforço até a sua pele, vi a careta vagarosamente hesitando e quebrando uma crosta – mas essa coisa que em muda catástrofe se desenraizava, essa coisa ainda se parecia tão pouco com um sorriso como se um fígado ou um pé tentassem sorrir, não sei. O que vi, vi tão de perto que não sei o que vi. Como se meu olho curioso se tivesse colado ao buraco da fechadura e em choque deparasse do outro lado com outo olho colado me olhando, eu vi dentro de um olho. O que era tão incompreensível como um olho. Um olho aberto com sua gelatina móvel. Com suas lagrimas orgânicas. Por si mesmo o olho chora, por si mesmo o olho ri. Até que o esforço do homem foi se completando todo atento, e sem vitória infantil ele mostrou, perola arrancada da briga aberta – que estava sorrindo. Eu vi um homem com entranhas sorrindo. Via sua apreensão extrema em não errar, sua aplicação de aluno lento, a falta de jeito como se de súbito ele se tivesse tornado canhoto. Sem entender, eu sabia que pediam de mim que eu recebesse a entrega dele e de sua barriga aberta, e que eu recebesse o seu peso de homem. Minhas costas forçaram desesperadamente a parede, recuei – era cedo demais para eu ver tanto. Era cedo demais para eu ver como nasce a vida. Vida nascendo era tão mais sangrento do que morrer. Morrer é ininterrupto. Mas ver matéria inerte lentamente tentar se erguer como um grande morto-vivo… Ver a esperança me aterrorizava, ver a vida me embrulhava o estômago. Estavam pedindo demais de minha coragem só porque eu era forte.

(…)

Então ele disse, usando pela primeira vez o sorriso que aprendera:

– Sua composição do tesouro está tão bonita. O tesouro que é só descobrir. Você… ele nada acrescentou por um momento. Perscrutou-me suave, indiscreto, tão meu íntimo como se ele fosse o meu coração. Você é uma menina muito engraçada, disse afinal.”