O gozo da mulher que limpa

ontem, eu resolvi limpar a sujeira
a sujeira de todos aqueles
que em mim restaram

quis tirar o pó de um móvel que não é de madeira
não é de aço
não é de pedra
não é de nada
que costuma ser
um móvel

às vezes o móvel é a gente
a gente que fica
quando quer ir embora
a gente que não grita
“vai embora”
a gente que devia gritar mais
chorar mais
gozar mais

porque a gente até grita, chora e goza
mas comedidamente
afinal,
medida é uma coisa importante
para uma mulher
a medida para a mistura do bolo
a medida do sabão em pó na máquina
a medida do silêncio na cama
a medida do peso que a gente tem medo
de colocar nas coisas
porque peso
não é coisa de mulher

a gente tem muito medo
vocês não fazem a mínima ideia
do que é
ser
uma mulher

Lacan disse que a mulher não existe
e as psicanalistas francesas da época ficaram putas
porque na vida real
há que ser mulher
há que ser puta,
vadia,
vagabunda,
piranha,
caso você não queira
ser
a santa-mãe-dona-do-lar

e o que se faz quando se quer
mais?

hoje resolvi continuar limpando a sujeira
porque quando encrosta assim,
é preciso mais do que alguns anos
pra alvejar
é preciso mãos dispostas
de preferência,
mais do que duas
porque sozinha
eu ando bem
mas com todas vocês
eu ando melhor

 

quando conseguir ou não

Ser mulher, ou não,

esta para mim

não é que questão

 

Ter o corpo todo 

que envelhece…

o homem também

padece

 

me foi dito que a palavra que mais uso é “minha”.

Um eufemismo para não dizer “ego”.

 

Estou farta de mim. Desta coisa “eu”.

Dos cabelos que insisto em arrancar todos os meses

das unhas que preciso cortar todos os meses

de tudo que perco todos os meses.

De tudo que perco, só não perco esse “ego”

que me mata

emudece

apodrece

 

Quando conseguir enfim me livrar das amarras desta coisa “ego”

talvez as palavras também se libertem e sejam somente

palavras.

brincar com fogo

ɐuɐ!

 

Amiga Ana Archista, brincar com

fogo, subverter o jogo

do lugar-conforto pro lugar-perigo

da língua do consumo

ao consumo da língua

o risco do comum

esse do não entender

e forjar um lado

quero dizer Amiga Ana Artista

que teu malabarismo circense

mais uma vez, vem ao meu encontro

em contraponto

não têm lados nesse circo

esse é o círculo circo

não o cerco do milionário contra o miserável

o corpo fino fio entre o furo e a fé.

 

 

nas minhas agruras

[Porque é meu o impulso sem pensamento, lanço sem pensar meu grito falho, meu falo, meu corno desastrado de unicórnio inadequado. Mas amo e falho, já sem medo do risco, nem dos risos… amo essas mulheres que amam, (ar)riscam os risos e traçam seus riscos em falas, em falos, e falham e furam e flanam]

 

Abaixaqui, Ana nas

minhas pretensas alturas

nas minhas agruras

de pavoa que voa baixo

Abaixaqui, Ana nas

nossas naves

de vez em vez

de revés

 

Iara também ouvi teu canto

com um todo encanto

aqui no meu canto

no lugar de difícil acesso

onde moro

morro

de quase

pranto

 

agora gargalhadas

nervosas desejosas

mulheresembrasas

embarcas

falo porque não calo

e falho

 

o que nasce do frescor

Querido Malacan,

me seduzes quando a primeira sílaba do teu nome é Pau,

(enrubesço porque digito, num freudeslize, Pai)

e penetro com violento ímpeto o seu belíssimo quebra-cabeças.

 

Ecoa-me um velho desejo, não de todo, confesso, abandonado,

de habitar o lugar do Falo e falar, falar, falar,

o discurso inteiro, a verdade íntegra, o quebranto inquebrantável.

 

E, no entanto, histérica me reconheço,

(e outra vez, num digito, histórica)

entre outras belíssimas clitórides

(não digo de glândulas, das ninfas falo)

excessivamente ornada –

nada.

 

“Nas?” me perguntou um dia meu velho,

espelho meu:

“Ana, nas?”

E eis-me náufraga, refletida abacaxi.

 

A uns deixo que me descasquem,

a outros me dispo doce,

coroa e suculenta polpa,

miolo indeglutível.

 

Vejo-me assim, aos pedaços,

nesses cacos de espelho que encontro

nos mosaicos vossos

em que tento ver delimitada figura.

 

Mas a verdade é que não há limite

“a verdade é que”

(o desejo de inteireza às vezes

se revela vergonhosa e descaradamente)

só quando é impossível dizer “nós”

confortavelmente me enlaço:

nós, mulheres.

 

E existo.

anotações de uma mulher que se torna

uma mulher faz versos
sobre acontecimentos
nada tem a dizer

uma mulher acontece
de estar
em todo lugar

uma mulher caminha
diz em voz alta
eu te vejo!
eu não te vejo!
todos a compreendem

uma mulher pergunta
verborrágica
e paradoxalmente, diriam
sempre com uma sombra
de dúvida atrás
da orelha espreita
o que acontece
se

uma mulher qualquer
arrisca-se
sob o abismo
da questão primeira

uma mulher dorme
é quase encontrada
angustiada
com a coisa
sobre a qual respira
uma mulher acontece
de estar
em lugar algum

uma mulher cai
segura
em cada ponto
cego

mmmmmm…
move-se uma mulher
qualquer
waste woman

is there no sense
in
a wordywoman?

uma mulher grita