O livro do preenchimento

ALVES, Ana Amália. O livro do preenchimento. São Paulo, Editora Patuá, 2020.

Ana Amália,


a combinação de elegância, intensidade, sensibilidade e força na tua escrita me impressiona e inspira. Nesse caderno que “é vermelho porque vem com sangue”, falas da experiência de um corpo que tem dentro do seu outro corpo, de gestar, parir, nutrir e na tua voz eu ouço ecos ancestrais. Teus versos mostram que (re)produzir a vida é experiência do corpo feminino que nos irmana à terra, morada da vida e da morte, o ventre: nossa terra natal.


É generosa a possibilidade oferecida às leitoras de compartilhar um pouco de tuas mortes e renascimentos com a perda, com o parto e com o que sucede a esses eventos extremos. A imagem da fênix, os aniversários, a idade de Cristo que parece anunciar a ressureição por vir falam da fragilidade e da força de existir num corpo que é sempre em transformação e, por isso, teus versos ecoam os sussurros, os lamentos, as risadas, as cantigas e os uivos de tantas outras.


Há, nesse conjunto de poemas, o assinalamento da solidão imensa que implica o trabalho de gestar, parir e nutrir em uma sociedade patriarcal. “[…] E a contemplar como nunca/ se satisfazem/ em nos sugar./ Dias e noites e dias e noites/ meses ou anos amamentando-os/ precisamos então parar e/ viver ao lado/ deles na eterna crise/ de abstinência cegueira coletiva […]”


Ao mesmo tempo, há uma forte presença das amigas, da mãe, das avós… mulheres passadas, presentes e futuras, a quem se pode indagar sobre os mistérios de gerar vida, sobre um costume ou traço que se recebeu vindo de outro corpo, de outro tempo. Com elas se tece uma conversa que não é busca por respostas definitivas, mas a tentativa de preencher algumas lacunas e a necessidade de lembrar que assim como não sangramos sozinhas, a construção dos sentidos e da vida não é tarefa que se possa realizar só. Nos contatos, nos elos, fazemos os nós e sustentamos a vida em seu devir. Esse é um dos recados preciosos que recebo de ti: qualquer preenchimento é sempre provisório, é anunciação do que vem:

“Um ventre é um/ventre é um ventre/ é um vem”.

Cariño,

Elisa

[“O livro do preenchimento”, da Ana Amália Alves, foi publicado pela editora Patuá em 2020]

Quando eu era criança já fazia arte

BERTA, Mariana. Sagu. Miríade Edições: Florianópolis, 2018.

A estupenda familiaridade com um tema causa uma mudez tão intensa quanto a falta total de conhecimento sobre ele.

Ao ler pela primeira vez os escritos da Mariana Berta, fiquei entre a mudez e a gagueira porque tudo que li ali me pareceu a mim mesma, ao meu entorno familiar. Não conseguia elaborar nada, como se tivesse que falar de teoria musical ou da matemática dos astros. A diferença é que depois de ruminar, como as vaca de que ela fala no Sagu, depois de decantar, que nem do vinho o seu processo, chego até a escrever como ela, porque foi assim que aprendemos a escrever.

Quando ela fala “quando a mãe faz polenta, ela rebola, rebola”, ela fala da minha mãe também, ela fala da arte das nossas mães.

Quando a mãe fazia polenta no fogão à lenha, dentro de uma panela de bunda funda, na casa antiga de madeira, ela fazia a casa toda tremer. Mariana me lembra que todo esse bole bole, é necessário para fazer uma polenta cremosa, lisinha, sem bolóta. Fazer polenta é uma arte do corpo que só hoje, após voltar para a casa da mãe e do pai e, depois de conhecer o trabalho artístico da Mariana, é que me dou conta dessa importante lição.

É arte também aprender com quem nunca pisou na academia, com quem só tem a “terceira série forte” como dizem aqui na roça.

Li ano passado, no romance Paraízo Paraguai do Marcelo Labes, que a avó da família, personagem protagonista do romance, guardava um tesouro no baú; a nora passou o romance todo pensando onde poderia estar o baú que escondia o tesouro, porque a velha já estava por morrer. Encontraram, enfim, no sótão da casa, lugar onde a enchente não chegaria. O tesouro eram sementes.

Sim, sementes são tesouros. Sementes crioulas, não aquelas compradas na cooperativa a 800 reais o saco de 20kg. Assim como os porcos pretos e malhados, e as galinhas criadas soltas no pátio. Isso é coisa que estou aprendendo agora, no que chamo de meu pós-doc em roça.

As letras, como sementes, precisam de outras para brotarem em palavra. A monocultura míngua a produção natural da palavra. Se reunidas com esmero e dedicação palavras fazem brotar frases, orações, versos e enfim, poemas.

É como a abóbora cabotiá; ela só vinga se for plantada com uma semente da abóbora moranga junto, se não, ela não vem.

Como o trabalho intelectual, de análise de texto, de leitura intensiva de teoria literária e de poesia, o trabalho braçal na roça requer bastante esforço e atenção, principalmente para iniciantes nessa arte, como eu.

Quando eu era criança, e todos que eram crianças ao mesmo tempo que eu, éramos artistas. Isso porque toda vez que nossas mães nos pegavam fazendo alguma peraltagem diziam que estávamos fazendo arte.

Essa sensação do que seria arte me acompanhou por muito tempo. Confesso que quando entrei em contato com as teorias e crítica literária, com a filosofia, enfim com toda a epistemologia que envolve o conhecimento acadêmico, foi bastante custoso para que eu pudesse me livrar disso que se chama senso comum. Mas a Mariana não trata de senso comum, ela coloca em evidência saberes e costumes que passam ao largo da razão mas são tão fortes que constituem toda uma cultura localizada, que é, a todo momento, celebrada.

Mariana fala em desterrar, do nomadismo que assumimos em algum momento de nossas vidas em busca de uma impossível definição de nós mesmos, longe de nós mesmo, longe do ser colono e perto da academia, das letras e perto do que é hegemonicamente conhecido como arte.

Neste caminho percorrido daqui pra lá longe, para ao redor do mundo e de volta para a terra que me viu nascer, descobri que nem tudo está dito e há muita matéria de poesia guardada neste rincão de mundo onde vivo, o velho jovem oeste catarinense.

A fúria

O livro data de 1959. A tradução brasileira, de Lívia Deorsola, só saiu em 2019. Que bom que saiu a tradução brasileira! Afinal, há tantos anos já podemos ler Borges e Bioy Casares em nossa própria língua, e Silvina permanece estrangeira.

É sobre esse sentimento minha leitura do livro, aliás: Silvina é tanto mais estrangeira quando a leio na minha língua. A língua estrangeira de Silvina é a minha língua, e vivo naquele mesmo país onde a perversidade é cometida pelas almas puras, pelas crianças, tanto quanto contra as almas puras e contra as crianças. No país em que somos estrangeiras, eu e Silvina, este país onde crescemos as meninas (os meninos também, suponho, porque li Três Porcos, do Marcelo Labes), neste país não há justiça, e as divindades, bem como as pessoas, não guardam qualquer tipo de coerência em seus atos. Neste país estranho e familiar, a crueldade e o amor habitam os mesmos corpos, e tornar-se humano é bestial, e tornar-se bestial faz parte do que é humano.

As imagens derivam em composições surrealistas, composições como as que vemos claramente nas madrugadas insones e manhãs sonolentas, que se apresentam nas tardes infernalmente abafadas à beira do Rio da Prata, ou do Letes, ou mesmo do mar. Os animais estão presentes em desenhos que a autora, ela própria artista visual, desenha em palavras. São humanos os animais, somos animais os humanos. A Fúria, entidade mítica, eventualmente toma de assalto uns e outros, fundindo-se em horror às expressões humanas de amor.

(OCAMPO, Silvina. A fúria. Trad. Lívia Deorsola. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.)