“Não se embarca tirania Nesse batel divinal”

Bosch_detalhe

Os Querubins vestidos de uniformes
Presos as margens violentas do rio
São pajens de Lúcifer
Que já foi luz, mas caiu
Porque todos, todos caem

Dante viu Malafaia no quarto círculo do inferno
Em eterna danação
Cuspindo e engolindo insultos
De grão em grão
Dante viu Messias no quinto círculo plúmbeo
Afogando-se na bolha de petróleo
Vociferando o ódio rúbeo
Porque todos, todos caem

O barqueiro de Hades
Que as almas perdidas recolhe
Leva Orfeu ao encontro de Eurídice
“Para onde levais a gente?
Para aquele fogo ardente” – responde Ele
Porque todos, todos caem

Um Sátiro alongando o instante
Seduz as Ninfas alucinadas
E os Querubins de uniforme
Antes mesmo que possam dizer não
Porque todos, todos caem

Eis que numa revoada de
Nuvens mordidas aparece
Penélope a esposa fidelíssima
(Pronta para seu fim celeste)
Mas Belzebu
Como um deux ex machina
A confunde com
Medeia a mãe assassina
E a leva para as profundezas
Porque todos, todos caem

O riso enlouquecido do palhaço
Inunda a sala escura
Para o espanto dos Querubins uniformizados
Para o entorpecimento completo dos Serafins
Enquanto os Arcanjos suam dentro de suas
Armaduras
O palhaço canta com Baudelaire
“Tem piedade, ó Satã, de minha atroz miséria”

E então
“Beatriz inteira se volveu
Ela estava tão forte a brilhar
Que de início a visão nos obscureceu
De centelhas de amor tão incendido
Os olhos abaixamos, quase perdidos”

De nada adianta pois
Morrer de beleza
Ou de verdade
Inevitavelmente
Teremos nossos nomes
Cobertos pelo musgo do tempo

Dante viu Malafaia no quarto círculo
Do inferno
Viu Messias no quinto círculo
Porque todos, todos caem

coração doentio

O Êxtase de Santa Teresa, Bernini, 1645-52, Capela Cornaro[8]

Ah coração doentio!
coração negro, imantado
É sempre beira
borda de queda

Eros violento
metal rutilante
palavras reais corroendo
o íntimo silêncio
É sempre beira
borda de queda

Sangue violento
flechas incandescentes
a pele é tudo que resta
da consciência

Olhos abrasados
no desejo manifesto
Esfinge, devora-me aos poucos
teu enigma é insolúvel e
a distância não é melhor
É sempre beira
borda de queda

Durar ou arder?

IMG_1454.JPGtalvez eu não tenha entendido a pergunta
isso acontece bastante comigo
às vezes
talvez
eu tenha tantas respostas
entaladas
entre o esôfago e a garganta
tantas ardencinhas
mal resolvidas
emboladas
assim
bem grudentinhas
que não sai

daí eu me lembro do marcelo
não, não
eu me lembro do martelo
[nosso instrumento de trabalho]
e me vem uma luz
[uma ardência
que dura
o suficiente
para seguir
ardendo]
eu prefiro
a enxada
é
definitivamente
eu prefiro
a enxada
lembra enxurrada
estalada
cocada
bananada
termina com A
A de buceta

um dia me disseram
inclusive
que tenho cara de A
foi numa oficina da Telma Scherer
sabe a Telma Scherer?
conhece a Telma Scherer?
pois é
cara de A
A de enxada

será que cabe uma enxada embaixo do travesseiro?
será que arde?
quanto dura um sono sob a ardência de uma enxada?

a enxada é um instrumento produtivo
ela cava
ela lavra
ela assenta
ela cobre

enxada é vida

ok, eu sei que ela é pesada
pouco prática, assim,
para sair, carregar na bolsa
ir na balada
levar pra casa do boy

eu sei
mas acompanha a potência de uma enxada
a presença de uma enxada
com uma enxada
a gente vai longe.

volátil

duro no tempo que arde
ardo sem medida
do tempo
que não dura eu vivo
de ardência
ar respiro me falta
espaço nas narinas derrama
ar logo por outras vias entra
segue (talvez tímido transforme
no ouvido)
pelo estômago engasga
improvável úmido
delírio nevoento anuviado voo
sem pouso permanente vapor
se vai na temperatura ambiente
se derrete nas curvas o ponto
de vista é outro
gira facilmente se enrola
nos caules segura
nos espinhos pinga gota
(diz-se volátil de animal
que voa) eu nunca
voo sonho me enrolo
perco a parada os poemas caio
dou voltas reviro cavo saio com a fuça cheia
de terra deixo
cair os vestígios são muitos
cato tudo na bolsa grande
da minha barriga repetidas vezes
no mesmo buraco insisto as vísceras
roncam falam falam falam digo
ao contrário tudo
no instante seguinte
agora arde dura
no tempo da ardência
te convido
pra brincar de vir
ar

úberes & uróboros

Diego de los Campos, desenho em nanquim

inconfessáveis singularidades
há quem se importe aqui
com as comunidades de
eus espatifadas
em plenilúnio?

olvida-me

e não me culpe ou me acuse pela sequência barata do olvido logo após a escuta depois de K no embaraço de um processo o ovo o ovídio da metamorfose faz-se loba e conserva algo da antiga norma porca o ovário a labuta sujeita atingida pela linguagem eu evito enquanto a amiga convida ao toque aos tropeços caio aceito evito?

comunidades inconfessáveis
afinidades eletivas
que falam
afetos

infinitamente fodidas pela linguagem
eu cortada pelo quase coito
abestalhada com o
outro

cismo lírica pseudo heroína trágica
degenerada
no delírio

há alguém aí que se importe
com o que ardelira em mim?

uma coitada aparvalhada perdida em pobres adjetivos substantiva o ressentimento com a linguagem sonha o lúpulus melífluo também proibido o excesso no esôfago queime gelada a parte sensível da carne da palavra corpo úberes & uróboros vacas profanadas rompem porteiras adentram o lado de lá de outras singularidades e sujeitos mudos pétreos nos ferem fundidos em  politicagens rasas de sentidos línguas machas esfolam sutilezas desusam estupram deusas

perdi a experiência
restou o poema
mas isso não é
um poema
é floema fétido
chafurdada a porca
na linguagem

vou passar agora a ferro quente as folhas palavras de um caderno páginas recicladas macias ásperas porque é bom deslizar a caneta esferográfica e perceber a medíocre tentativa de escrever o rastro logo após  fazer a lista de compras da mercearia no bairro que se esconde no barro da saia que passo a ferro quente agora ainda que a saia me leve além do bairro e do barro ao mar porque nas rendas e ondas dos babados da barra dessa saia tecidas umas barcas enredadas cingem águas cálidas stultiferas feras esquecem o leme e dançam caladas deixam na minha cara respingos de leite bom passagens fêmeas por ilhas cultivadoras de vacinas anti-poiesis singulares contágios onde não existiam outras antes comunidades sem comunidades

atravessamentos céu acima terra abaixo

Francesca-Woodman_32.jpg

Francesca Woodman

“A duração é um estado em que obstáculos não conseguem esgotar o movimento. Não é uma condição de repouso, pois a mera imobilidade significa na verdade um retrocesso. A duração é o movimento de uma totalidade organizada e completa em si mesma. Esse movimento está sempre se renovando. Ele se realiza segundo leis imutáveis e cada término dá lugar a um novo começo. O objetivo é atingido por um movimento na direção interna: a inspiração, a sístole, a contração. Esse movimento se transforma num novo começo tomando a direção externa: a expiração, a diástole, a expansão.”

I ching

 

 Era de tarde e eu precisava escolher os poemas que ia dizer… escolher os poemas pra fazer dessa uma noite especial, pra de algum modo fazer aquela noite durar… e eu fazia com muita felicidade minha seleção amorosa… mas enquanto lia versos, lia pedaços de notícias e de posts e frutas fora da geladeira e tantas coisas e minhas mãos inquietas subindo e descendo abas e janelas e as crianças gritando lá fora, enquanto fugiam de um monstro assustador em verdade bem amigável. Era ah aaaahhhh aaaahhh e muitos risos, na minha vizinhança. E os minutos, as horas passando e eu respondendo e-mails e mensagens, o coração apertado porque precisava achar aquele poema, exatamente aquele, não sei bem qual ou onde, mas é um que me toca, marcou minha vida e meu corpo tantas vezes, e eu acredito que pode definir muito e me ajudar a dizer o que eu desejo dizer, é uma coisa grande, grandiosa, ardente, muito embora eu não me lembre de um verso sequer nem de uma palavra… procuro no arquivo do computador, na caixa de papéis dobrados, rabiscados, nenhum daqueles se parece com ele… e então penso que talvez eu tenha que escrever esse negócio… mas eu sou tão absurdamente incapaz de aproximar palavras de modo minimamente interessante… eu queria mesmo emprestar a minha voz, meus olhos, dedos, pulmões e lábios pra esse poema, sabe?! Eu queria ser a porta-voz, a porta-bandeira, a porta-passagem, a travessia que te dá acesso à imensidão, que te leva ao ponto firme e rijo da duração no meio dessa vertigem ininterrupta… talvez pra isso eu precise colocar os pés e as mãos na terra, cavar, plantar, regar com o meu sangue outra e outra e outra vez. Talvez eu devesse aproveitar os desejos, os despejos e usar as palavras pra falar que minha barriga foi cortada. Tinha esse verso no poema? Um poema sobre o ventre e o vazio, não o que falta, mas o que move e impulsiona, o sangue passando pelo corpo todo e descendo terra abaixo… fazendo raízes, rizomas, linhas de força pulsantes, versos-vórtices do poema que procuro, curo.

melodia

tenhoquebrado

as palavras desejam
não se combinam harmoniosamente
aqui penso em qualquer composição
o arranjo não soa bem
faz ruído som bruto monstro
exclamo em seguida vem a pergunta
gesto de se dirigir se interroga dança
o corpo da palavra dita em voz alta
falta por extensão de sentido
sentido figurado coisa imaginada que se
dá como verdadeira invencionice fantasia
sensibilidade e irritação a pior maneira de lidar
com esta influência mas é a que você mais provavelmente
vai adotar é a de identificar com seu próprio ego tudo
que pensa e faz, isso a fará agir como se sua própria vida
estivesse ameaçada, o que certamente não é o caso
se tiver de brigar por suas convicções, este trânsito pode ser o gatilho
mas não crie bicho-de-sete-cabeças
onde não existem
súbita e sentada na cadeira esqueço
o drama da melodia
me ocorre na cozinha penso
na cena da tarde na repetição
no morango no chão com leite condensado
a xícara partida ao meio as separações
como o copo quebrado daquela vez
parece que todas essas histórias se conectam
mas não sei em qual ponto
esqueço
o que pensei quando fui ao banheiro e tive uma
ideia genial ponho um som
penso em todas vocês que invento e me chamam por muitos
nomes anoto: foi um dia de transborde sentimentalismo
na geladeira um bilhete: devo pedir água
amanhã toco um violão só pra mim você
nem sabe que fui e voltei do mundo no tempo
de uma quadra com você pareço de aço
de canto meu olho lacrimeja você
nem vê acho que de longe me assisto
pergunto terá ossatura ossícono pequeno
osso ossinho cada uma das peças
calcárias anoto: ossar roçar cortar gastar
em função de atrito fazer fricção deslizar
com brandura resvalar(-se) arrastar(-se) pelo chão
rentear carpir carpinteira
do universo inteiro perita em extrair faísca da brita 
eufórica coloco outra música dessa vez canto alto
as palavras que perco tenho algumas pra você
anoto: amanhã te conto

ardências com nomes

                                                                           Camila Soato

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

E me pego ardendo

em cada centímetro

do dia

 

uma ardência que dura

 

pra saber da dor

basta medir a delícia

 

duradouro é o desejo

das coisas sem nomes

e das coisas com nomes

o Beckett por exemplo

é uma delícia com nome

 

o retrato em colagem do Beckett

acaba de cair da parede

precisava citá-lo

penso que talvez sua queda

foi em parte causada pela

minha demência em arder

em parte causada pela

permanência dele na parede

 

prefiro não

 

o fato é que a queda

me tirou do prumo do texto

me tirou o fluxo

já não sei para onde

oscila

agora

o pêndulo

se para ardência

ou para permanência

 

e se ao menos fosse a durée

do Benjamin

outra delícia com nome

melhor parar

nunca recuperarei o fluxo

 

mentira

 

paúra dessa vertigem

diária cotidiana

inflamada sempre a vontade

 

mentira

não arde por qualquer

pouca comida

não queira proferir

sacramentos vaticínios

 

isso deve ser durar

pensar em delícias

e surgirem imagens

palavras nomes coisas

 

inflamada nada

acovardada

mente

 

inflamada nada

porque há pedras

inamovíveis no caminho

dos dias das tardes longas

 

as pedras

concursos censura quimeras ganância burrice (não os burros jumentos asnos aqueles que nomeamos e apelidamos e rebatizamos e mitificamos e significamos, nomeio agora como epíteto ao homem/mulher do poder e mesmo ao homem/mulher que não está no poder mas exerce vassalagem ainda ainda ainda)

há pedras hipocrisias pontiagudas mortais

vaidades (das nocivas, grife-se, podem ser também letais)

e mais as crises e hecatombes

nucleares naturais químicas fatais

muitos desastres com nomes e sem nomes

mas entre as delícias também

 

as perdas

nomeadas

tantas

 

E me pego nomeando

para possuir

novamente ardendo

porque desejo

que minhas palavras ardam

em você

em ti?

qual língua ou ajuste de língua

devo usar?

é preciso saber ajustar a

concordância

verbal

nominal

voluntária

 

esse olhar que dói no meio do dia

no meio da tarde

 

o teu olhar dói?

olhas pra dor?

e nesse momento

supões durar ou arder?

 

duras as sombras do dia

gelinhos oásis escuros

abraçados por um deserto

de areia quente

sob a ardência do sol

 

durar ou arder?

 

o inferno pode ser

gelado ou fervente

 

o paraíso também

 

 

 

mariposa

o barulho da angústia
em meus ouvidos
é como o bater de asas
de uma mariposa

mari posa
nua
a esposa

então, hoje pensei,
talvez seja assim mesmo
a vida.
talvez haja aquela coisa
insistente
em querer felicidade,
mas, como diz o texto cheio de
pés e cabeças,
ou não bem assim,
talvez, penso eu,
esse querer felicidade o tempo todo
seja até fascista.
talvez a vida seja angústia,
assim,
o tempo todo,
e é isso.

(o tempo todo é exagero)

não sentir angústia
é diferente
de tentar por cabresto nela.

 

perco poemas.
no ônibus
no chuveiro
na cama
perco poemas.
estarão eles
onde foi
minha alegria?

perco poemas.
o mapa astral
diz
pra eu canalizar
minhas paixões na arte.
peco (peco?)
perco
perco poemas.

perco poemas
como perco alegrias
como se esvai a vida
pareço uma parnasiana?

a mari
a mariana?
cidade?
mulher?
imagem?

os poemas felizes
eram invenção
de máquina
querendo fazer vida

não, dante não me conhece
carlito me conhece.
ao menos naqueles versos
em que dante diz que
assim que o amor ele nota
ele escreve como ele dita.
não, quem me conhece
é carlito.
aquele para quem
o que resta não é
o amor
mas a imaginação.

a imaginação
de um presente
livrinho
livro das clavículas sorridentes

canalhas sorridentes.
(tá vendo só?
não consigo
manter o amor.
ele foi embora.
ele ficou.)

há dias
perco poemas.

também não gostaria
de esquecer
(assim como não gostaria
de esquecer
a alegria)
o canto da musa overtone.
o canto da musa overtone.
mais lover que hater
porque explora outros sons
(no corpo)
que não aqueles
sempre ouvidos
explora o “escuro da contemporaneidade”
ouve-se e canta-se
o escuro da contemporaneidade.
eu gostaria
de continuar
me sentindo
naquele escuro
de minha contemporaneidade
do meu século.
combatendo
“meus fascistinhas internos”.
estremecendo
geologicamente
em riso de alegria
depois.

estremecendo
geologicamente
de amor.

junto dos overtones
ainda ouço um álbum
que me relembra
que, antes,
preciso de mim.

perco poemas.
perdi um há dois dias
que queria publicar
junto com
um trecho de agamben
e uma foto
de uma porta fechada.
agamben sobre kafka
sobre joseph k.
k.
agrimensor
k.
dobradiça
k. cardio.
mas,
perdi o poema.

juro
juro
que tentarei não mais os perder
para poder
lê-los depois
pra poder ouvi-los
como aquele álbum
como os overtones
porque
preciso de mim.

e melhor ainda
se um desses poemas
fizer parte
do livro das clavículas sorridentes.

 

ilustrações: “atravessar os dias” (2017), lese pierre lima

atravessar os dias - lese pierre lima 2017

passagem de temperatura

na duração mínima
pequeníssima
de um tropeço sentimental
no cheiro líquido do gozo
desborde

ali
se descobre
na brasa do gole
tardio
um vazio assombroso
eu penso
há quem more nesses segundos
pra onde podemos voltar?
esse tempo que dura escorre
pelas mãos
eu levo os dedos à boca
como você fez certa vez

acho que quase sinto um agora
diferente quente
como quando a gente fica com a barriga no sol
e dá uma agonia do pensamento dialético preciso
te dizer
tenho medo de estar presa

mas só quero dizer sim
a tudo que for mais simples
como a cena de você
voltando
sem jeito
com mais uma
promessa
de um café bem
passado

você não escorrega mas
sou surpreendida
obscena

não sei o que se moldura
no tempo desse quase retrato
estremeci