Arquivo do autor:Mãiara
demência do leite (em resposta à pergunta “sobre as manchas: como ler essas palavras agora”)
vivo todos os dias como se eu tivesse que ler um caderno encharcado
letras borradas nomes apagados estrutura precária manuseio difícil
– não lembro quem me falou não lembro exatamente o quê já não sei bem quando
sobra só o afeto sem cara e sem dobra
ah! lembrei que foi a Angélica que me disse que existe um nome pra essa condição
é um nome em alemão que eu não lembro não
lembro que saber da existência de uma palavra que diz que as mulheres que amamentam vivem molhadas
viver como quem esquece me abraçou tão profundamente
ai que bom que tem um nome em alemão que eu lembro não!
às vezes a gente tenta ler no borrão uma anterior caligrafia perfeita
(ainda mais quando se faz letras)
eita, essa memóriaésquecimento!
quando a mancha é antes tinta água e papel
não me esqueço, não me identifico não
ah! sou o júbilo da surpresa da beleza
ser nenem sem nem saber
matéria empapada pela presença das coisas
I got your letter…
Dear,
você me pergunta:
como vão as coisas?
escrevo como vão
as coisas:
de ar
são feitos meus sonhos
de novo, nada de novo debaixo do sol
de novo, nado, de novo debaixo da lua
agora
parto
agora mesmo, vou ficando tonta, vou perdendo
equilíbrio e sentido
maravilhoso escândalo: nasço!
com olhos fechados
procuro cegamente o peito
o leite grosso
de ar
que entra e sai
no pulmão-palavra
é feita
(às vezes sopro às vezes tranco a respiração até não aguentar mais daí respiro instintivamente chorando como quem respira pela primeira vez encho o oco do corpo de coro finjo que nasço nesse ato finjo que posso)
nessa rotina, ritual sagrado
escuto a ciranda que me cantas
sinto o embalo dos teus braços
canção de ninar, afago, contorno
não de todo retorno
ao útero
basta abrir os olhos
já forja o desafio da língua
as letras estrangeiras
e vice-versa.
sempre vice versa
de novo vício verso
vice verse
faz de conta que as letras fossem minhas
faz de conta que quando corto o cabelo
corto o cordão umbilical com a minha progenitora
sim, toda vez que cantas
o corpo dança
como quem pega uma lâmina e corta
se corta o próprio cabelo
na porta do pátio
uma porca no pátio
de pé com a mão
como quem prepara uma mala
se apronta pra viagem
não de todo retorno
à terra
homecoming
levar ou não levar
essa sujeita que guincha
com cascos sujos?
essa sujeira da língua
baba, resíduo de leite,
layers of dust, hair, skin
bactérias, pelos, ácaros?
(a voz da minha mãe me manda tirar o pó e varrer o chão – língua materna?)
lavar ou não lavar
essa sujeira que enche
a casa e o casco?
melhor a casca
melhor o cúmulo
perambular a poeira
como quem escreve uma carta
com o dedão do pé
perambular a poeira:
os contadores de histórias não imaginaram que a Bela Adormecida despertaria coberta por uma espessa camada de poeira?
eu contadora da história lembro que a bela adormecida acordou coberta de poeira.
e nesse dia recuperou no bolso do vestido um poema que tinha escrito há milhões milhões de anos atrás e dizia assim:
“me chamaste
porca?
…”
as traças roeram o resto
eu contadora de história poderia inventar um novo fim
mas faz de conta que essa é uma história sem fim
que fala do retorno
não de todo
ao
a
r
“só a desordem nos une: ceticamente, barbaramente, sexualmente” (Piva trollando Osvaldo)
maré
as imagens ardem
mais uma operação no complexo
encontro com objetos voadores não identificados
as imagens pedem
deslizamento de barreiras legais
as imagens fodem
transformação do vivo em podre
as imagens fedem
execução da progressiva ordem
as imagens podem
check-point
aqui
ali
é
n’ação
que separa
sequestro relâmpago
tomar o poder
em duas goladas
transplante
se descolar da imagem total
se abrir um corte preciso
se operar fora-de-si
se perguntar se
na ruína do corpo
é possível operar a arte sem litros de sangue?
Augusto de Campos, “CAVE MIDiA$.”In: http://bahia.ba/entretenimento/veja-dois-poemas-ineditos-de-augusto-de-campos/
CAVE CANEM SUM
latido ladino
cachorrada
roubo do osso do mundo
significantes
me alio
com obediência canina
com força animal
ladrando a busca de um lugar no desejo
do outro cão
que eu chamo babando
R.
isso aqui não é uma resposta. várias. da ponta do dedo ao nó na garganta, escrevo não só para você. eu mesma. é do amor mesmo que quero te falar, da ardência e da duração. modos de usar, modos de atuar a ausência. sinto tanto, mais tanto a falta de Clarice e é só por isso que choro agora, porque sinto a sua falta. Eu consinto a sua falta.
um chinês se suicidou na cidade pacata. o suicídio do chinês que trabalhava no restaurante chinês da cidadezinha fez todos nós sabermos que ele era tibetano e que sofria. um tibetano que eu não sei o nome se suicidou no restaurante chinês da cidade, ele não falava a língua, ele não tinha casa, nem documentos. ninguém sabe falar o seu nome.
na terra das grandes oportunidades muitos conseguem chegar. a chegada tem sempre algo do fracasso do ter de abandonar a própria língua.
essas coisas. essas coisas são como pontos finais, interrompem algo. eu estava arrumando as malas e tinha e-mails importantes e compromissos inadiáveis para responder. decidi desabitar a urgência e tomar a minha língua, meu amor. abandono com alegria as metas, as listas, os compromissos e assumo a falha da não obrigação. talvez resida aí a coisa toda. quando abandonamos a expectativa que atribuímos aos outros e assumimos o querer. é disso que você falava ao assumir a mulher que erra? desse lugar errado no certo do mundo? ás vezes é difícil não esquecer que o certo do mundo é a governança dos corpos, a apropriação do que há de mais vivo na gente. resistir ao homem de bem. carregar o dano. trazer o dom. as línguas do desterro são sertão que podem vir a virar mar. vir a amar. te escuto, entre a perda e apropriação, nesses fragmentos do espelho que somos. mas hoje, quero te dizer, meu amor, que declaro guerra aos homens cordiais em nome de um coração transtornado. o meu coração transtornado perturba a ordem, aproxima o medo e a coragem, a hospitalidade e hostilidade. o coração transtornado deseja. o desejo é. no amor, erre.
brincar com fogo
ɐuɐ!
Amiga Ana Archista, brincar com
fogo, subverter o jogo
do lugar-conforto pro lugar-perigo
da língua do consumo
ao consumo da língua
o risco do comum
esse do não entender
e forjar um lado
quero dizer Amiga Ana Artista
que teu malabarismo circense
mais uma vez, vem ao meu encontro
em contraponto
não têm lados nesse circo
esse é o círculo circo
não o cerco do milionário contra o miserável
o corpo fino fio entre o furo e a fé.
perita em extrair faísca da brita
perita em extrair faísca da brita
leite de pedra
lasca da letra
casca da história
casco da história do naufrágio
e fazer com os gravetos
uma picada
cacofônica
piada
escrevo endereçando à senhora P, pavoa de passagem e à toda multiviva zoosfera
incluindo a sereia que serena canta, nos silêncios dos ultrassônicos prantos, um canto que meu ouvido semi-humano não escuta
(o diabo de escrever sola endereçando à tela é a imagem que retorna instantânea
uma capiau cósmica insiste em atravessar o meu casco-pele)
como ia dizendo, endereço à carta farta de recHeio
pra dizer algo muito objetivo e específico:
risca a pedra
risco a perda
cuidado com o voo – diz o capitão cabeçudo
cuidado com o ir – ouve meu ouvido entupido
quem se lança ao voo pode perder a cabeça
mas já dizia minha mãe, quem não arrisca não petisca
cria arreio, espera a morte
quem não lança o dado, lança o dardo
crê no alvo, se dói com o erro.
logo o erro
condição do lance!
Erro, logro, existo.
Bem aí recordo o ciclo
remonto o óvulo, o pólen, a semente
não só o começo, o fim, também, sobretudo, o meio
cada poro o vir a ser ovo
diferentemesmo
o pólen contém virtualmente a floresta
desse virtualmente contido somos
como os bichos
máquinas do mundo
devolvemos olhares enigmáticos
como os bichos
possíveis
Versões possíveis de tanta coisa
que repete
que repele
que recolhe
ser lucíola, borboleta, larva, leoa,loba,
ser-casulo, ser-casa, ser-casada, ser-fêmea
ser-sem-teto, ser-só, ser-zelosa ou engenheira
ser uma metáfora, várias.
poder vir a ser uma e outra
entre o risco e a ruína não há distância
um par de letras
um sujeito sem complemento fixo
intransitiva sentença
predicar
uma mulher
não é
uma mulher que é
my world
what is a woman?
a womb?
no.
a VVord.
Hativism
você acredita em bem e mal.
essas coisas não existem.
eu acredito em amor.
te odeio.
O que é uma mulher?
Em teoria, estamos relativamente acostumadas a ler e a lançar ao mundo uma compreensão a partir de – pelo menos – duas posições. Essas posições recebem vários nomes. Essas posições dizem respeito ao modo como se lida com a identidade, com a imagem, com o significante.
A primeira posição, também compreendida pela lógica da exclusão, é correspondente à ideia do apolíneo nietzschiano, traduzida na equação isso ou aquilo, diz de um aspecto racional da identificação. É como se o significante tivesse um único sentido, como se a matemática se resumisse à lógica aristotélica dos princípios de identidade e da contradição. Ou é ou não é. De alguma maneira, assumir essa posição nos possibilita crer na comunicação, porque identificamos a coisa, as coisas, nós mesmas, existimos na linguagem. Eu sou Maiara.
Por outro lado, a lógica da inclusão, portanto aquela que incorpora também o dionisíaco ao apolínio (a “lógica” da tragédia), é um modo de pensar aditivo: isso e aquilo. Essa lógica, ao menos na teoria, parece trazer à tona o além da razão. O significante, bem como a identidade, assume tantos sentidos quanto possíveis, não só a literatura, também a vida do ser falante tornam-se um jogo de possibilidades infinitas. A matemática subjacente a essa posição talvez seja o paradoxo de Russel, o paradoxo de modo geral, é e não é. Essa posição, muito comumente atrelada ao caos, ao não sentido, ao fora, à música, ao corpo, não existe sem a outra, evidentemente, mas é uma espécie de trazer à vida, a lembrança daquilo que fazemos questão de esquecer: as generalizações, a totalidade, o todo não existem, são imaginados. Apesar de dizermos eu, e de sermos capazes de predicar esse eu, isto é, de termos uma identidade, há sempre algo que escapa.
Durante os movimentos estudantis da década de 60 na Europa, que culminam no maio de 68 na França, no qual se pautavam – entre outras coisas – a igualdade para a mulher – Lacan, que estava pensando na teoria psicanalítica e também nos acontecimentos daquele momento, propõe o que ficou conhecido como “fórmulas da sexuação”. É um desenho enigmático que em última instância faz uso da lógica formal para falar, na minha leitura, das duas posições que mencionei anteriormente. O desenho é enigmático porque o equívoco e o mal-entendido sempre foram o horizonte de Lacan. O desenho me agrada não tanto pela matemática contida nele, mas pelo nome que ele dá as duas partes. Ao lado esquerdo da fórmula, Lacan chama Homem (também conhecido como posição masculina), ao lado direito, chama Mulher (também conhecida como posição feminina):
(Fonte da imagem e texto das fórmulas da sexuação: http://blog-psique.blogspot.com/2012_05_01_archive.html)
A mulher e o homem aí não dizem respeito ao sexo, tampouco ao gênero. São duas palavras que fazem referência a duas posições. A palavra-posição vem acompanhada de frases extremamente provocativas que são marcas no ensino do Lacan, entre elas, “A mulher não existe” ou “A relação sexual não existe.” Ele poderia ter escolhido afirmar o homem (todo/não castrado) não existe, não poderia? Essa foi a saída dos intelectuais franceses à época que tentavam desconstruir toda sorte de padrão, de universal, afirmando a sua inexistência. Lacan, atento às inversões que permanecem na mesma lógica decorrentes dessas reivindicações, opta por tomar o feminino, opta por ir além das possíveis inversões.
Ao trazer a posição feminina, mulher, como uma posição, me parece, Lacan percebe uma questão que poderia ser colocada da seguinte maneira: “Por que o Outro barrado mulher condensa o mistério da feminilidade da qual falavam os poetas e filósofos muito antes de Freud e dos psicanalistas?”. Stella Jimenez cria uma hipótese: “Ela representa a falta do significante no universo da linguagem.” (JIMENEZ, 2014, p.119) Quer dizer, não é à toa que a mulher identificada estruturalmente com esse lugar em falta tem um lugar privilegiado na literatura. Ora, Lacan aproveita-se desse lugar tomado como marginal, conceituado na negação (não tem o falo), para reivindicá-lo. Assim, o lugar da mulher, na interpretação lacaniana, não passaria de marginal para central, nem de excluído para universal, o lugar da mulher, assim como das culturas de margem, seria o entre-lugar no qual ao invés de focar naquilo que não tem igual ao centro – o igual o falo (e aqui o falo é a palavra que tem um sentido inteiro, completo, todo) – foca naquilo que não tem em relação ao centro – a diferença. A posição feminina é em alguma medida a posição que incorpora o sentido, mas não deixa apagar a diferença, nem crê contundentemente nas generalizações, totalizações, pois sabe não fazer parte de toda dessa categoria abstrata universal que não existe. A posição feminina não é faluda, é falha, portanto criativa, também ética.
Toda essa teorização não me soa feminina, aqui, agora, quem fala a vocês é também um homem.
o con-vida
Mulheres da vida, da minha vida
hoje acordei me sentindo ridícula, fui logo arquitetando um modo de rir.
Envio esse vídeo que também é fruto da articulação com Ana e Elisa, um desejo de encontro que aqui se materializa na forma de pergunta-resposta.
Nem fogo, nem cinzas, uma brasa que alimente direta ou indiretamente o abrasabarca.
Envio em breve minha primeira tentativa de resposta. Minha sugestão é que encerremos o ciclo no fim de março. Abril abriria-se outra rodada, se for o caso. Ainda que a palavra mulher seja potente o suficiente para um projeto de anos, de vida, é interessante colocar outras palavras na roda. Outras palavras não deixarão de funcionar como metáforas de mulher, acho.
Um beijo,
Iara