Pow! Poema iconoclasta

Colagem de Lu Tiscoski

É urgente desaprender
o cotidiano, praticar
a desobediência metódica
ainda que sob a pena
de queimar
na fogueira do
nexo

Façamos dos clássicos
monumentais elementos
explosivos
é preciso recriar a queda
do muro
de Berlim
de Edward Colston e Colombo
do Coronel Bertaso e
seus consortes
reencenar uma iconoclastia sistemática
substituir a vontade de
perdurar pela ardência
erótica
dos corpos

Liberdade irrestrita sem
concessões
helenas fugidias
por uma arquitetura
vivente
o que mais nos toca
destruir?

Fomos devoradas pela História
mas agora
muros serão
lousas para a renovada poesia.

Juízo

Deve ter sido um pesadelo
É comum que seja assim nos sonhos
Eu assisto uma outra mulher
E a outra mulher também sou eu

Deve ter sido um pesadelo
Assistir meu próprio julgamento
O nome da mulher era o meu
Mais o nome da minha mãe

Deve ter sido um pesadelo
Porque muitas palavras ali
Tinham endereço certo no meu corpo
Mal curadas cicatrizes na pele nos poros

Deve ter sido um pesadelo
Eu aparecia mais jovem mais bela
Mais recatada e mais doce
E as feridas eram mais fundas

Deve ter sido um pesadelo
Afinal ensaiei tantas vezes
Suportar punições pela roupa curta
Humilhações por existir em público

Deve ter sido um pesadelo
Ainda não consegui contar que sempre
Que ia dar uma aula imaginava ofensas
Aos meus seios livres sob a blusa leve

Deve ter sido um pesadelo
Também retorna feito cinema aquela vez
Vestido branco no apartamento
Eu sem achar o caminho da porta

Deve ter sido um pesadelo
A camiseta fina do uniforme
A adolescência teimando em exibir-se
O homem na calçada negociando o colo

Deve ter sido um pesadelo
Rumores ouvidos nos corredores
Enquanto gastava meu latim:
As pernas os pelos mau gosto meu gosto

Deve ter sido um pesadelo
Troquei tantas vezes de roupa
De namorado de profissão
Troquei de amigos e de cidade

Deve ter sido um pesadelo
Troquei até de família
Tentando escapar do julgamento
Ensaiei todos os gestos perfeitos

Deve ter sido um pesadelo
Não pode a vítima tornar-se ré
O algoz não devém vítima
As fotos já tinham sido apagadas

Deve ter sido um pesadelo
O homem disse algo sobre estar apagada
A mulher ou a luz estava apagada?
O estuprador foi comparado a um menino

Deve ter sido um pesadelo
Criminoso algum evoca crianças
Sobretudo um homem de tanto valor
Em dólares e status social

Deve ter sido um pesadelo
Falava-se de uma festa
Nós nem tínhamos o dinheiro pra entrar no clube
Nem nos lembrávamos como escapar do labirinto

Deve ter sido um pesadelo
Um sem número de rostos vagamente conhecidos
Alternava-se na tela da videoconferência
Entre o silêncio e o descalabro

Deve ter sido um pesadelo
Porque dias se passaram e ainda sinto
Um gosto amargo constante na boca um zumbido
Da expressão “pose ginecológica” no ouvido esquerdo

Eu queria que fosse só um pesadelo
Também para você, Mariana
Mas aconteceu pela segunda vez
E te abusaram em nome da justiça

Floresta antes do nada

foto e tatoo de Juliana Bauer

O mato não mata
a mata não bala
semente
a mata sim
Ave Terra
cheia de Marias
é hora de louvá-la

A mata não mata
o homem que calça
pés de terra
a mulher mãos de
terra
a criança terracota

O pequeno cresce com
a mata
e dentro dele só há
Futuro
ele quer ser do tamanho
da mata
ele quer ser

Escute, animal!
Olhe com atenção!
Sinta!
Tenho que te falar
assim, animal
com a força das
palavras que já
esquecestes
Tu, animal sem memória
sem camadas no olhar
animal que só sabe
aproximar com zoom
palavra estrangeira
cujo significado já
esquecestes
Memória diluída
gasta
de um corpo flácido
fala ácida
consciência miúda

Decai, animal…
desmonta
o que era homem
ficou só a ruindade
e uma sociedade disciplinar
radicalmente
imune
irremediavelmente
isolada
mata o mato todo

A gente não toca
não tem boca
tem máscara
a casa
é cárcere
escola
teletrabalho
o corpo estéril
histérico

Para, animal!
a mata não mata
mas no mato
só os fortes sobrevivem
os livres e fortes
vivem
só quem quer ser
Floresta