terra quando água

no começo da pele
inicia a vida
meu arco corpo inclina-se
sobre a superfície
orifício do papel

pele celulose
parda como eu
sensual e lenta lesma
sempre arrastando-se
sobre a derme do papel

escavando palavras
com analfabetas flechas
atiro
direto no alvo
via crucis do sangue

decidi então
escavar cadernos
emprestar meus olhos
para que a toupeira encontre estrelas
em trilhas subterrâneas
vias escritas

trovadoras surgem
quando pouso
o ouvido na terra
montadas em éguas
com cabeças nuas
por fendas saem
gritando nomes perguntas nas ruas
pernas abertas no lugar de colunas verticais
muralhas movediças nos ventres
saias negras no verão

colho as pétalas com os ouvidos
aparo os poemas dispersos
minha cabeça
versa
sucumbe
pesa no corpo

pânicos colorem as mesas dos bares
e seguro as saias em roda
quase me machuco
quando a queda é inevitável
na dança

acorda amor
diz do meio do escuro
do fundo de  águas
em camas suspensa
em plenilúnios onde éguas bebem
com ancas balouçantes bocas abertas

não saia do foco, lunática!
volta! nas ruas estavas
nas águas eróticas

inventa
versátil
veredas vias
revoltas vivas
a via crucis do corpo

o melhor que pude
no poemar revoluto
foi expor o tonto vazio
o luto a gagueira
de uma vaca lasciva fragmentada
pavoa cobra melíflua reunicórnia

corno sem glamour
fábula falida
escondida na manada
partilho em doses/dores fêmeas
o leite bom do amor

terra, amiga?
a minha é aquela nas unhas da criança velha

Entrelaçadas

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A cantiga da amiga me desperta
e me convida a ensaiar
de novo olhar aquela miragem
sempre outra
tantas e tantas vidas depois

Ouço a música
enquanto penso que todos os meus poemas
são de amor
mesmo o da revolta
não sei se é porque com eles se escreve
a sensação de exposição íntima
do peito que se rasga
da carne à mostra
ou pelas palavras
imagens
que visitam e povoam
os olhos, as palavras, as dores, os movimentos
de um corpo outro
teu

Na escrita há desejo
a relação com as teclas ou a caneta
o ímpeto de expurgar, devorar, desnudar, deixar à mostra
e depois ocultar
endereçar palavras e gestos
sutis
dizer como quem descuidadamente
entrega algo mais
e envolve na trama
delicada, vulgar
contemplo distante
ou apenas suspeito
teu olhar a se mover da esquerda pra direita
de cima para baixo
curioso, voraz
o coração ofegante
intrigado
uma pergunta persegue
– o que quer dizer?
letra lasciva luxúria
ela
quer
esse fogo crepita e estala
você fecha o livro num golpe
o sopro forte alimenta a chama

sonhada sonhante

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De baixo do lençol que te tateia pele fina…
Lula Queiroga

Você me pergunta sobre o sonho
eu não consigo evitar
pensar no inseto que acorda
ou na mulher que desperta no corpo de um inseto
imagino as patinhas finas e curtas se agitando no ar
na mesma velocidade dos pensamentos buscando explicação

um pesadelo
a borboleta e tchaung-tse
sonhada sonhante
as camadas indo vindo
se eu caminho desperto?
escrevo desperta?

buscamos respostas
meu coração bate
o ar entra e sai dos pulmões
agora
um corpo de verdade
dança
fala
chora
cala
escreve
e aí o buraco é mais embaixo

um caminho sonhado
a estrada escura a solidão
o horizonte amplo grande infinito
o desejo me move na direção de tudo que não vejo

o dia inteiro assombrada pelos encontros noturnos
tento desvendar essas visitas
quem eu não sou sempre me chega
mais hora menos hora
pra você também
fechados ou abertos os olhos
esse vazio te encontra?

Eu de mãos dadas com a menina
cinco ou sete anos
um número ímpar
sinto seus dedinhos pequenos e macios abraçando minha mão

Sonhei que escrevia um poema
sem usar as mãos
sem mover muito o corpo
as imagens difusas
se imprimiam na minha pele
pelo lado de dentro
um texto que se toca ao fechar os olhos
uma partitura
sonho ou pesadelo
as ambiguidades dessa relação
a escrita no corpo-mundo
sem forma
então adio, atraso, esqueço e me distraio
começo e não termino
ambiciono projetos
um conjunto de versos acertados
começo, meio e fim
desisto no primeiro lance

A analista me diz
as coisas não precisam acabar
eu ouço que devo
enfrentar meu medo do ridículo
aquele sonho recorrente
chegar na escola de pijamas
de pantufas
a boca sem os dentes
estar seminua no trabalho
é parir no mundo essa cria inacabada
e acreditar que ela pode chegar
a dar alguns passos por si mesma,
a trilhar caminhos imprevistos

O informe
letras trêmulas em linhas tortas
escorrem das minhas mãos
procuro me concentrar no desenho
que formam e esquecer
um pouco do tanto que ocultam

Eu menina
no meio da noite uma imagem no espelho
diante da minha cama
uma mulher
a estranha mais familiar
sua indiferença me amedronta
eu acordo e a imagem continua ali
um espelho móvel
benção ou maldição
a superfície me devolve
sempre ela, ela, ela, ela
em tantas faces
parece indicar a minha ausência
eu pura sombra e reflexo
apenas sonhada
aprisionada do lado de lá
não adianta ser linda, meiga, divertida
o olhar dela não se move
fixo no chão um ponto impreciso
ela parece existir sem meu choro
sem minha fome
sem minha força de crescer crescer crescer

Enfrentar a noite escura
com as sombras que a luz da rua projeta na minha parede infantil
sobreviver aos ruídos da ameaça que se aproxima
e se instala sorrateira debaixo da cama
dentro do guarda roupa
só pra me sentir mais livre, segura e forte ao despertar
um dia novo outra vez