o canto

o_cantoA sereia, pulmão anfíbio
dupla vida
condenada a errar
de tanto ar
pelo atol das almas

Imensa no saara de sua
solidão sem rastros
água
água
seca nos pulmões
em ambos o deserto

Respira profundo que
ainda falta muito
Mulher peixe restará
convivas de
Leviatã, que toda vida
devora
Devir anfíbio

Na urna diminuta
o saara é todo amores
rua deserta
Não há ressurreição

Canto porque ainda não
sou cinzas
Hei de ser aquela de estrelas

Atonal

Screenshot_2020-03-24 Concha Tattoo ( conchatattoo) • Fotos e vídeos do Instagram

(Sereia de cumuru. Davi Gardoni, 2018. Instagram: #conchatattoo)

A sereia adentra a barca
Vem de águas profundas
Perfura o casco
Penetra os porões

Sobre a madeira
Seca e sem brilho
Move a cauda
Move os lábios

Seu lamento
Enigmático
Espalha-se por corredores

A sereia crê
No abandono
E nos lamentos que ouve
Percebe eco
Fantasmagoria
De si

Em paralelo
Andares acima
Cada uma em sua clausura
As insensatas
Ouvem o lamento
Da sereia e veem
As mesmas miragens
Uma vez mais

A arca é muito habitada
Baias separam as filhas da lua
Mas suas almas vagueiam
Por todo o navio
Em combates de água e fogo

Cantam alto as filhas da lua
Cada uma em língua única
De onde tentam sair
Em uivo polifônico

Canta alto a sereia
E todo canto parece
Às filhas da lua
Um lamento de clausura

A sereia, contudo
É livre, e lamenta
Que lhe respondam
Em língua estrangeira
Os seus fantasmas

A sereia parece livre
Frequenta mares e terras
Navega com ou sem nau
Mas não escapa
De ouvir seu próprio canto
Que insiste em abismos

o vírus

Virus

Virus, 3D render

O vírus comeu as sombras na
calçada, um a um dos carros que
passavam;

o vírus comeu a sujeira dos canais
de Veneza, do céu de Hong Kong,
dos pulmões de São Paulo.

O vírus veio e comeu a bolsa de
valores, violentou o dólar, maculou
o mercado financeiro;

o vírus devorou os messias, os
bispos, as crenças e os
terraplanistas.

O vírus implacável, comeu milhares
de viajantes, aviões, aeroportos,
centros de compras;

o vírus comeu voraz aqueles que já
viram muito da crueldade dos
homens.

O vírus comeu a cegueira daqueles
que não queria ver, a mudez de
quem já não falava, o vírus comeu a
falta de tempo;

o vírus comeu as falsidades e as
prepotências;
o vírus comeu as presenças, as
permanências, os encontros.

Então Joaquim, que já não tinha
mais medo da morte, saiu para
caminhar na cidade desolada.