Clarice, novamente… me olha

Parece que já faz muito tempo que tenho pensado em como ver, como poder ver o que se mostra…sem enjoar…e contar, e gritar!!

Eis que as palavras da Lisptector me encontram (aliás sempre tenho a sensação de susto quando sou encontrada, sem fazer nada, pelas estórias escondidas nos livros da biblioteca que me acompanha) assim que, sem poder, nem ter um parco talento para escrever, compartilho um trecho de “Os desastres de Sofia” que diz assim:

“E meu estômago se encheu de uma água de náusea.

Não sei contar.

Eu era uma menina muito curiosa e, para a minha palidez, eu vi. Eriçada, prestes a vomitar, embora até hoje não saiba ao certo o que vi. Mas sei que vi. Vi tão fundo quanto numa boca, de chofre eu via o abismo do mundo. Aquilo que eu via era anônimo como uma barriga aberta para uma operação de intestinos. Vi uma coisa se fazendo na sua cara – o mal-estar já petrificado subia com esforço até a sua pele, vi a careta vagarosamente hesitando e quebrando uma crosta – mas essa coisa que em muda catástrofe se desenraizava, essa coisa ainda se parecia tão pouco com um sorriso como se um fígado ou um pé tentassem sorrir, não sei. O que vi, vi tão de perto que não sei o que vi. Como se meu olho curioso se tivesse colado ao buraco da fechadura e em choque deparasse do outro lado com outo olho colado me olhando, eu vi dentro de um olho. O que era tão incompreensível como um olho. Um olho aberto com sua gelatina móvel. Com suas lagrimas orgânicas. Por si mesmo o olho chora, por si mesmo o olho ri. Até que o esforço do homem foi se completando todo atento, e sem vitória infantil ele mostrou, perola arrancada da briga aberta – que estava sorrindo. Eu vi um homem com entranhas sorrindo. Via sua apreensão extrema em não errar, sua aplicação de aluno lento, a falta de jeito como se de súbito ele se tivesse tornado canhoto. Sem entender, eu sabia que pediam de mim que eu recebesse a entrega dele e de sua barriga aberta, e que eu recebesse o seu peso de homem. Minhas costas forçaram desesperadamente a parede, recuei – era cedo demais para eu ver tanto. Era cedo demais para eu ver como nasce a vida. Vida nascendo era tão mais sangrento do que morrer. Morrer é ininterrupto. Mas ver matéria inerte lentamente tentar se erguer como um grande morto-vivo… Ver a esperança me aterrorizava, ver a vida me embrulhava o estômago. Estavam pedindo demais de minha coragem só porque eu era forte.

(…)

Então ele disse, usando pela primeira vez o sorriso que aprendera:

– Sua composição do tesouro está tão bonita. O tesouro que é só descobrir. Você… ele nada acrescentou por um momento. Perscrutou-me suave, indiscreto, tão meu íntimo como se ele fosse o meu coração. Você é uma menina muito engraçada, disse afinal.”

 

O traço é início e fim

Sei que devia começar pelo início, mas começo pelo fim. Me pego pensando onde o fim começa, onde nos perdemos. Em que esquina, em que avenida. Tendo a pensar que foi numa rua muito larga para os carros e estreita para quem anda a pé. Me pergunto qual pedra deixamos de pegar, qual bolha deixamos de assoprar, qual vento começou a sufocar. Busco minha medida do fim. O maleável que não tem fim nem começo, só mudança. A mudança é presente e acontecimento. Sei que a porta está ali, mas sei também que ela só abre se eu pego o trinco com força, se tomo ele pra mim. Entendo que estou só, mas que o mundo me abraça se eu abraço o mundo. Vejo o fim de perto. Afago suas rugas e manchas. Acolho suas intempéries. Sou folha e falha, fogo e fundo. Faço graça do medo e cubro o tempo com retratos da gente. Do que a gente foi e do que a gente é. Do que eu me tornei sem nós. Um se tornar tornado. Um assombro contínuo que rega e dissolve. Gosto de pensar na vida como um brócolis, com grandes talos firmes e raminhos que se multiplicam para cima e para os lados, em uma lógica singular. Volto pro fim. E percebo que o fim é início. Um início de devir. Uma bola de sorvete que escorre pela minha boca.