confesso

Vi-a de longe.

Passo lento como de quem sofre

olhos cravados no chão

atravessam as lentes escuras

escondidas no peito, de quem sofre.

 

Decido não me anunciar.

Escolho abafar minha presença

daquele olhar que olha o nada

no andar que anda para o não

de quem sofre.

 

Ela sabe, eu sei.

Ela espera, mas sigo

na sombra daqueles passos

que sabem só

o caminho de sempre, de quem sofre.

 

Espera uma surpresa, eu sei.

Espera branca uma visita

um pálido sorriso de quem sofre

um olhar anoitecido, de quem dói

naquela vida incolor, uma parca vida.

 

Confesso

(e toda confissão está

embebida de vergonha).

Digo assim, com

tremor nos lápis que fugi.

De seu reconhecimento

branco, fugi

de seu abraço e

da saudade, fugi

de sua vida pouca

acorrentada, mas não fugi

de mim.

pérolas

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Lygia Clark, 1968. Máscara abismo com tapa-olhos.

 

É com amor que desejo
lançar pérolas aos porcos
É amor
o que sinto pela sujeira
pela fome, pelo ruidoso protesto
dos porcos.

 

 

 

 

Amável Unicórnio,
um único ornamento
não deve pesar.

Mas as pérolas
esse plural vitalício
que se multiplica
com sal e tempo
suportar esse brilho plural
será peso demais.

Sensível Unicórnio,
perdoa-me se me desfaço
das pérolas.
Carregá-las
dói no lombo
e lombo é coisa
de porco
saborosa carne
de porco.

A carne de porco
é a que mais se parece
com a carne humana.

Um homem talvez encontre
uma pérola esquecida
quando vier limpar o chiqueiro.

Mas provavelmente a Porca
não enfeitará o rabo
torcido com uma pérola
a Porca
não comparará pérolas e dentes
a Porca mastigará as pérolas
ou nem mastigará
e se mastigar,
alcançará o oco.
As pérolas são ocas, sabe?
E se não mastigar,
se encherá de ocos, oquinhos,
e talvez vomite, a Porca.

Perdoa-me.
Se para fazer colares
seria preciso furar
cada
uma das pérolas
e não posso suportar
o barulho contínuo de
vazio vazando
por capilaridade em um fio
de ouro.

O que vaza do oco
é merda
e no íntimo
um grão de milho vale muito
mais
que oca pérola.

Essa a sapiência da Porca.

“Tudo acontece ao mesmo tempo agora”

Penso em acidentes.

Quando olho para a direita

aquela Scania vem

vem trepidando o asfalto

quente atravessando a

miragem

estraçalha minha ideia

de existir.

Penso em acidentes.

São voos sobre barrancos

voltas e reviravoltas

vidros, ferros, postes

em poeira

se desvanecem

de repente.

De repente, acidente.

E a crueza do momento

agora não deixa

brechas na dúvida

de que ainda vivo

vivo e pulso

pulso, soluço, palpito.

Aquele astrólogo amigo da minha amiga estava errado, eu não tenho uma linguagem que fala para o mundo… ela, a linguagem – corpo de voz que sai de mim desconhecido, degredado e trôpego -, até tenta, mas não chega aos ouvidos, deve chegar aos ouvidos sim, mas então não chega além do órgão que recebe o som. Não chega no oceano interno de quase ninguém, sim ‘quase’ ninguém, porque às vezes toca algumas águas, devo admitir. O corpo de minha voz e as palavras que carrega de mãos atadas mergulha nas águas do caracol, as ondas se propagam no ambiente líquido de alguns outros corpos desavisados, insuspeitos, minha voz palavra parda não vai além, não alcança as células receptoras… fica boiando no oceano interno. E o que ouço depois, do meio do caminho, o que me chega quando encosto meu ouvido nesse caracol nessa concha é apenas o murmúrio ainda vivo e quente do meu sangue lodoso serpenteando os vasos.

O mar em mim linguagem para o mundo

escuta

esse sal na língua que só aumenta a sede.

 

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