Juízo

Deve ter sido um pesadelo
É comum que seja assim nos sonhos
Eu assisto uma outra mulher
E a outra mulher também sou eu

Deve ter sido um pesadelo
Assistir meu próprio julgamento
O nome da mulher era o meu
Mais o nome da minha mãe

Deve ter sido um pesadelo
Porque muitas palavras ali
Tinham endereço certo no meu corpo
Mal curadas cicatrizes na pele nos poros

Deve ter sido um pesadelo
Eu aparecia mais jovem mais bela
Mais recatada e mais doce
E as feridas eram mais fundas

Deve ter sido um pesadelo
Afinal ensaiei tantas vezes
Suportar punições pela roupa curta
Humilhações por existir em público

Deve ter sido um pesadelo
Ainda não consegui contar que sempre
Que ia dar uma aula imaginava ofensas
Aos meus seios livres sob a blusa leve

Deve ter sido um pesadelo
Também retorna feito cinema aquela vez
Vestido branco no apartamento
Eu sem achar o caminho da porta

Deve ter sido um pesadelo
A camiseta fina do uniforme
A adolescência teimando em exibir-se
O homem na calçada negociando o colo

Deve ter sido um pesadelo
Rumores ouvidos nos corredores
Enquanto gastava meu latim:
As pernas os pelos mau gosto meu gosto

Deve ter sido um pesadelo
Troquei tantas vezes de roupa
De namorado de profissão
Troquei de amigos e de cidade

Deve ter sido um pesadelo
Troquei até de família
Tentando escapar do julgamento
Ensaiei todos os gestos perfeitos

Deve ter sido um pesadelo
Não pode a vítima tornar-se ré
O algoz não devém vítima
As fotos já tinham sido apagadas

Deve ter sido um pesadelo
O homem disse algo sobre estar apagada
A mulher ou a luz estava apagada?
O estuprador foi comparado a um menino

Deve ter sido um pesadelo
Criminoso algum evoca crianças
Sobretudo um homem de tanto valor
Em dólares e status social

Deve ter sido um pesadelo
Falava-se de uma festa
Nós nem tínhamos o dinheiro pra entrar no clube
Nem nos lembrávamos como escapar do labirinto

Deve ter sido um pesadelo
Um sem número de rostos vagamente conhecidos
Alternava-se na tela da videoconferência
Entre o silêncio e o descalabro

Deve ter sido um pesadelo
Porque dias se passaram e ainda sinto
Um gosto amargo constante na boca um zumbido
Da expressão “pose ginecológica” no ouvido esquerdo

Eu queria que fosse só um pesadelo
Também para você, Mariana
Mas aconteceu pela segunda vez
E te abusaram em nome da justiça

Dependência e morte

bandeira nacional

Escutem todos! Ao fundo o toque
do hino nacional
ritmado a estridentes motosserras
a tilintantes ígneos alegros.

Escutem ao fundo! O cantar do
belo hino nacional
harmonizado a lágrimas
a desesperados pios e chilros
a agonizantes gorjeios e grasnos
ao rosnar incessante da morte.

Aos que não escutam vejam! Enquanto
ainda há palmeiras e sabiás
e os “risonhos, lindos campos têm (…) flores”
Contemplemos! Que ainda há
garotas de Ipanema que
despem seu corpo ao
sol de raios fúlgidos
contra o temor
Bravas mulheres brasileiras!

Aos que não veem o nítido
céu risonho e límpido
e no lábaro estampado
desordem e regresso
saibam que o
Povo heroico, povo marginal
não foge à luta cotidiana

Porque sentem-se
filhos da pátria
filhas da pátria
brancos da pátria
negros da pátria
ruivos da pátria
indígenas da pátria
caboclos, mulatos, cafusos
mamelucos…

Há mais cores além do
verde-louro e do azul-anil
cores que não se querem unas!
Reivindicam todas seu
espaço de direito na paleta
do grande artista nacional.

Aos que não falam
aos que não querem falar
simpáticos ao silêncio de
Bertleby o escrivão – “eu prefiro não”
aos de voz quebrada, para quem
o hino nacional encerra esperança
no peito
brademos todos!
pois isso tudo não é apenas
um simulacro de emergência
atendamos aos pedidos de
socorro.

acordei suja de sangue

mataram uma mulher
não a conhecia
pessoalmente
ela não era amiga
minha
nem era amiga
deles

eu a vi pela tela
apenas
vi que corria
perigo
senti
que corria
do medo
porque senti
sua coragem
escutei seu pedido
de socorro
compartilhei seu pedido
de socorro
apenas
como costumamos fazer
no conforto do lar
ignorando o sangue
que respinga
em nossas mãos
que nada
seguram

Sabrina, Dorothy, Marielle, Joana, Maria, Claudia, Priscila, Daniele, Raquel, Paula, Anastácia, Dandara, Jaqueline, Letícia
são tantas
mulheres
que não cabem em um poema
não cabem
em nenhuma igreja
em nenhum cemitério
em nenhuma clínica psiquiátrica
em nenhuma casa
e sabe por que não cabem?
porque não tem cabimento
tanta mulher morrer
por ser quem é
por ser mulher

mataram uma mulher
de novo
e sempre
continuam matando
porque é isso que eles sabem fazer
explorar e matar
aqueles que denunciam
a lama e o caos

mataram uma mulher
e eu já não sei mais
o que importa
pra essas pessoas que fecham os olhos à noite
e dormem
que pensam que a luta por igualdade de gênero
é coisa de um país atrasado

pois, afinal, somos todos humanos, não é mesmo?
não somos homens, nem mulheres, somos pessoas

eu queria acordar e dormir todos os dias me sentindo uma pessoa
mas é difícil, sabe?
porque você me lembra
a todo momento
que eu sou uma mulher
você me come com os olhos
me violenta com suas palavras nojentas
me tira o lugar de fala
me fere com seu descaso
com seu machismo
me mata aos poucos
quando não me mata
de verdade

mas eu não tenho medo não
e sabe por que?
porque a gente chegou num ponto
em que a morte virou coisa banal
e isso é horrendo
eu sei
mas traz uma vantagem:
não temos mais nada a perder
e cada vitória
por menor que ela seja
nos leva ao êxtase
se por um lado, sentimos as dores de todas as mulheres
por outro, vibramos o sucesso de cada uma e de todas
e a nossa luta
não existe arma no mundo
que possa matar

a revolta é querer dizer

a minha amiga disse
que roubaram nossas palavras
de quais palavras estamos falando
aqui?
a revolta talvez seja
palavra que se agita
aqui
quero dizer…
também não desejo confetes, sabe?
se a gente está falando
de revolta
de novo
quero tentar tirar
do conforto
os fascistinhas internos
como minha amiga disse
porque é sempre urgente
repetir
pra encontrar
as palavras
outro dia eu escrevi
sobre a angústia
de não conseguir ler as palavras num caderno molhado
fiquei tão triste, pensei, depois, agora, no museu
em tanta história queimada
pensei que a angústia
do que fazer com aquelas letras molhadas
era justamente esta: saber que ali
no caderno molhado, o que era acidente
no museu, era premeditado
fogo que tem alvo certo
que deixa a história
sem palavras
eu não quero roubar a palavra de ninguém
e acho importante dizer isso
porque a história que se diz
oficial
é feita do roubo das palavras
a revolta é a busca por elas

a luta pela palavra
eu quero tentar falar sobre isso
quantas palavras

sobre as chamas?
quem pode contar
das palavras
que são cinzas?
a palavra
passagem
a revolta
é ver que talvez você esteja passando
mais livre
do que a pessoa ao lado
e que há outra pessoa ao lado
ainda mais livre do que você e a primeira pessoa
juntas
e que todos estão falando
de coletivo
como se fosse uma palavra
sem ruído
a gente não conhece
a revolta do outro
a gente sente o furacão
no máximo
a gente sente o mar agitar
mas às vezes nem isso
como falar da passagem livre
quando a liberdade é pra quem dominou
as palavras
maiúsculas?
a revolta
é de quem?
a revolta é
da mulher ao lado
que derrama leite
a revolta é
sede
do leite que não vem
alguém falou que a gente já tinha
feito essa pergunta antes
que a gente já tinha falado
sobre isso
a revolta
o que é?
coletivo
o que é?
a gente já tinha falado sobre isso
antes
a gente já tinha falado sobre isso
antes?
coletivo
é de quem?
quais palavras
são coletivas?
marcaram na pele de uma mulher
o símbolo da suástica
e não há palavras
roubaram-nas
disseram que o símbolo
era budista
a revolta é ver a violência poder passar
invisível
mesmo marcada ali
na pele
a revolta é a luta
pela superfície da pele
pelo corpo
sim

a revolta é
palavra
que chega

revoltografia

cacos_blekotraka

Blekotraka

I

as perguntas recebidas são dádivas
ou maldições
como aqueles insetos, zumbindo no ouvido
e dessa vez precisava mesmo alguém enunciar aquilo que mal conseguíamos

a volta é encarar o espelho outra vez
e de novo
velha eu
velho o desejo de quebrar o espelho
essa é minha revolta
extraviar a imagem como quem nega a fixidez
da superfície plana
não ser isso
mais

dividida e compartilhada
uma parte de mim em cada caco
multidão irreconciliável
(já falamos disso aqui)
todos os espelhos da minha casa
micropartículas espalhadas
eus multidão

a revolta dói no estômago
a cada notícia falsa faca punhal adaga
os cortes são muitos
mas não impedem o combate

II
permanecer boquiaberta diante do impensável de todo dia
não as sutis e imprevisíveis riquezas
mas as vilanias de quem exerce o poder
ah conheço vocês pelo cheiro, diz o poeta

a revolta é isso que se contrai em cada membro
do corpo e faz das vísceras minhas inimigas

penso nos pedaços de louça que se garimpa nas cidades fantasmas
nas camadas profundas da terra que engoliu o tempo
resquícios
a vida fértil, proliferante, que já não há mais
só penso em pedaços e fragmentos
a revolta de algum jeito me isola?
porque não consigo, com ela, me unir a vocês?
Então escrevo, penso se essas letras de palavras conhecidas previsíveis banais
poderiam ser esses caquinhos, essas partículas, esse resto…
e que talvez assim a revolta fale de sua potência
o contato precário e imprevisto da escrita com a leitura
nossa vida inteira jogada em alguns lances
a mão aberta no teclado estende e alcança
a mão fechada e o punho em riste acompanha gritos e tambores
não estamos sós
e isso já não é mais sobre nós
é sobre o que virá
nossa capacidade de sonhar e resistir
porque revolta há

III
revolta é quando eu vejo o mofo fazendo desenho nas paredes
cicatrizes de um longo inverno úmido na ilha
ao sul
e depois fungos e mínimos insetos surgem e devoram um bom tanto do mofo
rasurando parte dos desenhos

ou revolta é quando a gota de kiboa cai na toalha
fazendo um desenho indelével

ou quando uma fibra de fruta ou carne se aloja no espaço entre os dentes
e eu não consigo tirar
com os contorcionismos da língua
nem com o canto da unha

mas nada disso é ainda a revolta
desastres do cotidiano
grafia dos dias
e a maior inaptidão ao desenho

o incêndio no museu
as deformas
a extinção dos ministérios
o projeto de derrocada devastação
a ameaça constante
a censura auto-imposta
a terra arrasada que eles desenham
no nosso corpo
isso sim revolta
enquanto penso em comida, escrevo poema, cuido do gato, corrijo textos
como se atravessam esses dois planos na minha carne que não é a mais barata do mercado, eu sei, a minha existência classe média hétero cis branca envergonhada
não quero aplauso nem confete
mas construir algo desse lugar inevitável
minha história é só mais uma
o que eu tenho pra contar

e eu interrompo tudo
a escrita do poema pra espiar na janela do inferno
escada abaixo é isso
o tombo no abismo
mas eu já sabia sim
só não sabia que quem se levanta é outra pessoa
mulher que anda lento e engraçado
não acho o fio da meada
o passo da dança descompassada
mas de algum modo presente
vagarosa e nítida
assumo quem estou

IV
a revolta me escapa
tento recuperar aquela sensação
a carne em frangalhos
e xícaras e talvez também pratos jogados com força contra aquele muro

meu amigo falaria que isso é autoficção? Autofricção?
massagem no ego e outras perversidades sórdidas talvez
um caminho para os holofotes
queimados de um inferninho qualquer

tem quem diga que lugar de poema é no banheiro
provavelmente também esteja certo
na vida privada
e outra vez
a revolta me escapa

penso em formar grupo, coletivo, casa, casal, cartel
qualquer coisa de força compartilhada
ler e discutir os textos a vida inteira já me moveu por aí
contatos e contágios
o afeto do meu peito juvenil
enquanto roubo as palavras na sequência
fica feio
ou fica bom?
lembra nome de picolé

o gelado me revolta
palavras gélidas, silêncios perversos de quem trama
parece que não era pra ser assim o texto
tão cru, tão literal, tão besta

V
é preciso também quebrar as telas
não cultivar likes
não fornecer dados
embaralhar o perfil
a construção da identidade aqui foi algo que aprendemos com o tempo de uso dos [dispositivos
ninguém sabia tirar selfie tão bem no começo
era uma arte construir um bom perfil, as imagens exuberantes correspondendo exatamente à ideia que queremos dar do que somos, sentimos, pensamos
aquela luz, aquela roupa, o batom, mas principalmente o ângulo certo
e agora queremos desconstruir padrões e embaralhar o algoritmo
o que as pessoas andam dizendo me define porque sou a favor ou sou contra
ou sou indiferente também

existam aí bem distantes do meu quadrado retângulo santa tela de jesus maria
eu espio meus inimigos porque ser contra me define
mas cansa jogar esse combate inócuo
a revolta encenada é paralisante
já nos levou às ruas também
corpo a corpo
olho no olho
e o sol na cabeça
andamos juntas, eu sei e isso me conforta
tua companhia na revolta me sinaliza o caminho

abandono os pudores pouco a pouco
conforme sobe a barra da camisa
te
quero
aqui
sim

e todas as meses a gente cultiva
um corpo lúteo
só não quando está prenha
falamos em cacos
em metas-segredo a serem cumpridas
aos 35, esse número esquisito
mas falamos também no descaso público
e todas essas coisas se misturam
no meu corpo
na nossa conversa
são coisas urgentes
a possibilidade de pensar a vida
de viver a vida
de gozar a vida
e de questionar essa vida quadrada dos homens de bem
o etnocídio nosso de cada dia
me revolta

VI
salgar o pensamento é técnica
não resfria a cabeça
talvez os pés
amacia os ligamentos que precisam se reconstruir
converso com todas as células dizendo “ei, eu acredito em vocês”
e mando cartas com meu coração inteiro dentro
escancaro o peito
escancaro os dentes
sem tirar a blusa, dessa vez
e você sabe que assim é bem mais sério

as coisas ficam sérias
eu me lembro da jornalista que foi atingida no olho
e daquele que foi atingido por um rojão
preciso relembrar essa história, pesquisar
foi quando eles mudaram a narrativa
foi bem quando eles cooptaram a potência informe daquilo que era muitas coisas
pra fazer delas muitas uma única coisa só
um erro

a gente não sabia para onde estava indo
mas a gente, alguns de nós, já sabíamos onde queríamos chegar
dizer não foi importante
mas roubaram nossas palavras
com patos e panelas
eu ainda quero livre passe

uma das mulheres presas e perseguidas tinha o meu nome
terrorista, acusaram
é bom saber a quem odiar, demonizar, denunciar, caluniar, violentar, descartar
eu li uma entrevista depois e ela disse que tinha crises de pânico

quando a gente escreve demais tipo vômito depois não sabe por onde começar a limpar a [sujeira
mas vem tudo como num jorro
das entranhas
isso é revolta
revoluções excretam o imprestável
o intragável
pelo cheiro e pelo seu amor ao dinheiro
fora de mim fica melhor
esse asco eu revolto
a revolta é uma devolução
penso nisso de volver e revolver a terra
fazer do lixo adubo para a vida
semear e ver germinar
e depois comer o que a terra dá
e penso nas linhas do arado
nos sulcos da terra
e nas linhas e vincos que surgem no meu corpo
a sobrancelha crispada, o cenho cerrado
isso é a revolta
o tempo que passa e marca
não há imunidade
a carne que armazena as memórias da dor e da violência
se nutre no amor que ainda há
e volta
isso sim
um cultivo dedicado
minucioso
é tudo o que nos resta aprender
cultivar o alimento
esperar
saber a hora de colher
celebrar o preparo e a nutrição

Caatinga (cantiga de eito)

 

A gente já tinha escrito

Sobre a revolta uma vez

 

Tinha partido a palavra em duas

E ela morreu ali

Dissecada etimologicamente.

 

Descobrimos que era irmã

Da revolução

volução significava volta

ímpar de volição, desejo

 

A gente já tinha escrito

Sobre a revolta uma vez

 

Mas re

Não significava exatamente repetição

Porque algo até torna a acontecer

Mas repetir-se

não

 

A gente já tinha escrito

Sobre a revolta uma vez

 

A revolução dos planetas

Não lembrava se em redor do sol

Transla

Se em roda do próprio eixo

Rota

 

O eixo de rotação da Terra

Camba pra um lado

Como um peão que perde velocidade

E a trajetória é uma curva sem nome

Irrecognoscível

 

A gente já tinha escrito

Sobre a revolta uma vez

 

Dissecada ela perdeu os sentidos

 

Os sentimentos ficaram mais simples

Raiva, medo, tristeza

As ações mais cotidianas

Velar, enterrar, brotar, crescer

Dar sombra, ou frutos

Ou resistir mesmo como espinheiro

Na aridez.

 

 

 

 

A revolta é hoje

IMG_1600no dia em que eu morrer
no dia em que eu levar um tiro na cabeça
no dia em que minhas entranhas estiverem saindo pela boca
eu serei
mais uma
mais uma feminista assassinada pelo fascismo
mais uma “putinha que acha que pode”
contra o capital financeiro
que acha que pode contra o falocentrismo
que acha que pode com todo e qualquer tipo de fascista

no dia em que eu morrer
asfixiada com um saco na cabeça
serei aquela
que não dedurou suas amigas
que não pediu desculpas por ser socialista
que não pediu desculpas por ser artista
que não pediu desculpas por ser
mulher

no dia em que eu morrer
empedrada
emparedada
contraturada
não poderei mais
pedir desculpas
não poderei mais
pedir ajuda
não poderei mais
nada

mas
antes
de eu
morrer
eu vou
lutar
eu vou
gritar
eu vou
gozar
eu vou
amar
eu vou
escrever
eu vou
denunciar
eu vou
votar
e
vou
estar

pode me prender
pode me matar
pode me torturar
pode até
me enganar
mas a minha luta
essa
você não pode
tocar

sal grosso


porcelana de Jessica Harrison

salgar o pensamento mórbido com muito mar
e todas ou quase todas

solitárias armadilhas faróis distantes da literatura

que coisa essa
de insistir
em experiências
poesia mar
e se ilhar

revoltosa dentro de mim
uma cobra d’agua se retorce

por dentro da cabeça as aranhas seguem
tecendo redes com meus cabelos brancos

o coração
ainda exposto
os dentes também

deslumbrada e trôpega

porque por dentro
uma cobra revolta-se
bem no estômago

e me sobe pela goela
esgaçando os caminhos

não consegue sair
porque há muito perigo lá fora

violência em cada fala de retrocesso ordem cinismo
deixa meu coração de feridas batendo mais fraco
pesado

mancando em saltos altos sustento a pose
quase me esvaindo pela goela com a cobra

sal grosso para os maus pensamentos
cansada demais dessa humanidade toda em nós

só piora
tudo deteriora

vira ruína
nossos dias nossas vidas

só piora
diz a velha que fala pra dentro

ego sum, ego existo

e acha
que fez um poema

enquanto navega em chuvas
da ilha ao continente
dentro de besouros poluentes

e do continente pela ponte
irrompem floemas
mar de chuvas

e de novo o desejo
a experiência

pra dentro do umbigo revolve a cobra
d’água bem inocente

o veneno
a velha acha
que vem de fora