ela do sul

“Mulher deitada” Flávio Scholles

Depois do amor
a mulher do sul
escolhe o feijão pro almoço
de amanhã.
Depois de gozar
ela só pode dormir
quando os detalhes todos
forem revisados:
as louças lavadas,
a roupa recolhida,
as portas trancadas,
janelas fechadas.
Depois do amor
de se abrir toda,
de se entregar em profundidade
ao seu homem,
a mulher do sul
volta a ser aquela
infalível
impassível
mola propulsora
das gerações adiante.
Depois de mostrar o
fim e o início do mundo
ao seu homem
ela cala e se recolhe
à sua secular solidão.

cicatriz

“In the garden” (1963), de Margaret Keane

Na noite do trauma matriz
Beatriz se perguntava
como sua mãe
conseguia pegar no sono
na mesma cama junto
daquele que tinha
tentado matá-las

que sua mãe
tomava remédios psi
trabalhava mais de 40h
era a responsável pela grana mensal
e talvez tivesse medo
Beatriz compreendia

o que ela não compreendia
é que ela quisesse
que Beatriz ficasse ali
mesmo com o segundo marido
uma versão piorada
de seu pai

anos depois
em conversa com amiga
psicanalista feminista
ouviu histórias sobre
mulheres quererem submeter
outras
à vida semelhante a que tiveram

Beatriz lembrou de uma carta
de Jung a Joyce
cujo recado ao escritor
sobre sua filha foi:
“onde você nada, ela se afoga”

Beatriz respeita as escolhas
de sua mãe
mas não quis o mesmo para si.

Juízo

Deve ter sido um pesadelo
É comum que seja assim nos sonhos
Eu assisto uma outra mulher
E a outra mulher também sou eu

Deve ter sido um pesadelo
Assistir meu próprio julgamento
O nome da mulher era o meu
Mais o nome da minha mãe

Deve ter sido um pesadelo
Porque muitas palavras ali
Tinham endereço certo no meu corpo
Mal curadas cicatrizes na pele nos poros

Deve ter sido um pesadelo
Eu aparecia mais jovem mais bela
Mais recatada e mais doce
E as feridas eram mais fundas

Deve ter sido um pesadelo
Afinal ensaiei tantas vezes
Suportar punições pela roupa curta
Humilhações por existir em público

Deve ter sido um pesadelo
Ainda não consegui contar que sempre
Que ia dar uma aula imaginava ofensas
Aos meus seios livres sob a blusa leve

Deve ter sido um pesadelo
Também retorna feito cinema aquela vez
Vestido branco no apartamento
Eu sem achar o caminho da porta

Deve ter sido um pesadelo
A camiseta fina do uniforme
A adolescência teimando em exibir-se
O homem na calçada negociando o colo

Deve ter sido um pesadelo
Rumores ouvidos nos corredores
Enquanto gastava meu latim:
As pernas os pelos mau gosto meu gosto

Deve ter sido um pesadelo
Troquei tantas vezes de roupa
De namorado de profissão
Troquei de amigos e de cidade

Deve ter sido um pesadelo
Troquei até de família
Tentando escapar do julgamento
Ensaiei todos os gestos perfeitos

Deve ter sido um pesadelo
Não pode a vítima tornar-se ré
O algoz não devém vítima
As fotos já tinham sido apagadas

Deve ter sido um pesadelo
O homem disse algo sobre estar apagada
A mulher ou a luz estava apagada?
O estuprador foi comparado a um menino

Deve ter sido um pesadelo
Criminoso algum evoca crianças
Sobretudo um homem de tanto valor
Em dólares e status social

Deve ter sido um pesadelo
Falava-se de uma festa
Nós nem tínhamos o dinheiro pra entrar no clube
Nem nos lembrávamos como escapar do labirinto

Deve ter sido um pesadelo
Um sem número de rostos vagamente conhecidos
Alternava-se na tela da videoconferência
Entre o silêncio e o descalabro

Deve ter sido um pesadelo
Porque dias se passaram e ainda sinto
Um gosto amargo constante na boca um zumbido
Da expressão “pose ginecológica” no ouvido esquerdo

Eu queria que fosse só um pesadelo
Também para você, Mariana
Mas aconteceu pela segunda vez
E te abusaram em nome da justiça

mãe, a mãe trabalhou na roça?

mãe, a mãe trabalhou na roça?
a gente pintava o cabelo
eu nunca tinha feito
essa pergunta
não, na roça não

a gente pintava o cabelo
da mãe
quis saber o porquê
das lacunas
quis preenchê-las todas
de uma vez
penso nas coisas que herdei
da mãe
dentre elas essa fome

acho que a mãe
não percebeu isso
não vou conseguir dizer
desse abismo
na roça não
a mãe trabalhava
no mercadinho ali bem na curva da rua que vira pra casa da vó
lembra desse mercadinho?

não lembro mas pergunto
e depois?
fui morar com a tia dete
que era casada
tinha um colchão assim na sala pra mim
ela faz o gesto do colchão ela parecia ter
carinho ela disse
era legal
era melhor
do que morar com a vó
eu queria saber
e se saía a noite, se fazia alguma coisa
além de trabalhar
não fazia nada, só trabalhava
eu queria saber
por quê
ah quando mais nova a gente até ia na discoteca
todo domingo a vó dava um dinheirinho como se fosse 10 reais assim
e a gente ia, dançava

eu queria saber
do que a mãe gostava
se era bom ir na discoteca
ô se era! anos 80, né filha. a gente dançava bee gees, abba, essas coisa
dançava um monte

a mãe gostava de dançar

a gente pintava o cabelo
e os aniversários, mãe?
eu queria saber
se ela comemorava
não fazia festa, filha
eu queria saber
por quê
não fazia nada não tinha muita gente não tinha dinheiro

a mãe gostava de dançar

lembro
(não digo desse abismo)
da dor que ela contava
nas costas
que era chato trabalhar
de caixa
eu queria saber
quando foi que a mãe decidiu
que queria ser professora
a vó que queria que eu fosse 
e se ela gostava
mas eu não gostava muito

a mãe gostava de dançar

e essa foto aqui na moto, mãe?
continuo querendo preencher
as lacunas
é de quando eu era solteira
um amigo da mãe que tirou
ele me ensinava a andar de moto
a mãe não me diz
se ela gostava
de andar de moto

eu não disse
mas foi a mãe
a minha primeira referência
feminista
na época nem ela nem eu
sabíamos disso
hoje também
não digo
desse abismo

O que pode o amor em tempos pós românticos?

Hoje, porque me sinto mais livre do que sempre, resolvi escrever sobre amor. Mas não sob a perspectiva de um ideal de amor romântico, invasivo e devastador, falo de outra coisa. E falo pela fala de quem não tem falo. Do lugar da ausência e do excesso. De onde nos colocaram por tanto tempo. Pensar o amor em termos pós-românticos é como navegar no espaço, parece que falta o chão, o mar. Viver o amor em tempos pós-românticos é ainda mais estranho. Às vezes acho que estamos perdidos. Às vezes acho que estamos nos encontrando. Quase sempre acho que nós estamos nos encontrando e que eles estão perdidos. Mas há que se transpor o nós e eles, e tenho sérias dúvidas se estamos caminhando pra isso. Queremos ser iguais ou queremos ser diferentes? O tema é complexo.

A busca por liberdade talvez seja o que nos une na desconstrução do amor romântico. Mas liberdade é uma palavra polissêmica e ainda que seja um conceito, uma ideia, ela se realiza enquanto um sentimento, uma busca, um estado de espírito. Ser livre pode significar coisas diferentes para diferentes sujeitos, mas o sentimento de ser ou estar livre é desejado por todos e todas. Acho que a liberdade é como a felicidade: não é um lugar ou estado fixo, mas antes uma sensação, um desejo realizado, uma saciedade transitória.

Voltemos para o amor. Ultimamente, tenho ampliado minha ideia de amor. Na teoria, sempre soube que as várias formas de amor – amor materno, amor fraterno, amor sexo-afetivo, amor próprio – são diferentes lados do mesmo cubo mágico, mas como sou uma mulher numa sociedade patriarcal, aprendi a buscar um “grande amor”. Aprendi a cuidar do outro, a buscar um parceiro e entregar o que tenho de mais valioso nas mãos dele. Eu buscava essa entrega, essa fusão, essa experiência de me jogar de cabeça e de olhos fechados. E sempre me frustrei, por várias razões. Uma delas é que essa entrega não era recíproca, nunca foi. Os homens aprendem a amar as mulheres de uma forma bem diferente. Pra começar, fusão é uma palavra que não existe no dicionário amoroso deles. Que homem seria louco ao ponto de se fundir numa mulher? Isso não faz sentido pra eles. O homem aprende a se bastar. Aprende a manter sua liberdade em todos os tipos de relacionamentos, sejam eles sexo-afetivos ou não. Aprende a seguir seu caminho, haja o que houver. Porque sua masculinidade é boa e superior demais para se fundir em femininos obscuros. Porque seu poder de agência e de dominação precisa se impor. Afinal, alguém tem mandar nessa porra, né?

Os relacionamentos sexo-afetivos são terrenos de disputas, mesmo quando não aparentam ser. Eles seguem a lógica da competição e da dominação, própria da sociedade capitalista ocidental. É claro que há diferenças se considerarmos as questões regionais, nacionais, geracionais e os diferentes modelos de relações hetero e homoafetivas. Mas todos os relacionamentos estão inscritos nessa mesma sociedade, logo, todos sofrem a  inegável influência, em maior ou menor grau, do modo operandis patriarcal.

Mas parece que o momento é propício para desconstruções. As pautas feministas se impõe e a crescente projeção das mulheres nos espaços públicos e privados parece um caminho só de ida. A desconstrução da casa é tão ou mais difícil do que a desconstrução da rua e elas precisam andar juntas. A desconstrução de si se torna urgente e um convite à desconstrução do outro [pelo outro]. Destruir o outro é possível, desconstruí-lo, não. Só ele pode fazê-lo. E é por isso que o privado também é político, logo, público. É por isso que o amor também é político.

Desconstruir a ideia de amor romântico não é um processo fácil, ainda que urgente. Nem sempre é bonito – não tem que ser. Nem sempre é amoroso – às vezes, não pode ser. Nem sempre é prazeroso, embora muitas vezes seja, mas é sempre libertador, é sempre potente e é sempre feminista.

Nas sociedades contemporâneas, não existe mais espaço para UMA forma de ser mulher, UMA forma de ser homem e NENHUMA forma de ser qualquer outra coisa que se queira ser, ainda que forças conservadoras tentem nos convencer do contrário. As possibilidades são muitas, os desejos são muitos, os sujeitos são múltiplos.  A sede por mudança transborda. E se tem algo que segue constante é a busca pelo amor, mas o amor, assim como a liberdade, é polissêmico. É volátil,  pesado, corrente. É doce, amargo, ácido e adstringente. É encontro, aceno e despedida. Pode nos matar, pode nos salvar. E no meio do caminho, pode muito mais.

reverbera a pergunta
mulher
o que é
ser
mulher

leio em néon
no meu sonho colorido

Acesso restrito

a pergunta me segue
e o censor em vigília
esconde as tentativas
de resposta

a pergunta desdobra-se
para onde vão os trens?
para
“Tu não te moves de ti”

Acesso restrito

há perigo na esquina
e o sinal está fechado
para nós
que somos velhos

a pergunta sonha
censor em alerta

há uma chave que verte
sangue nas mãos
de uma criança velha

a criança grita
cava!
desenterre os ossos
recolha as palavras
ainda não comidas
pelos vermes do tempo
faça bom uso delas!
responda à pergunta!

caio num solavanco
de novo no corpo

não respondo

sorrio
agarrada ao milagre
de ser
mulher

O gozo da mulher que limpa

ontem, eu resolvi limpar a sujeira
a sujeira de todos aqueles
que em mim restaram

quis tirar o pó de um móvel que não é de madeira
não é de aço
não é de pedra
não é de nada
que costuma ser
um móvel

às vezes o móvel é a gente
a gente que fica
quando quer ir embora
a gente que não grita
“vai embora”
a gente que devia gritar mais
chorar mais
gozar mais

porque a gente até grita, chora e goza
mas comedidamente
afinal,
medida é uma coisa importante
para uma mulher
a medida para a mistura do bolo
a medida do sabão em pó na máquina
a medida do silêncio na cama
a medida do peso que a gente tem medo
de colocar nas coisas
porque peso
não é coisa de mulher

a gente tem muito medo
vocês não fazem a mínima ideia
do que é
ser
uma mulher

Lacan disse que a mulher não existe
e as psicanalistas francesas da época ficaram putas
porque na vida real
há que ser mulher
há que ser puta,
vadia,
vagabunda,
piranha,
caso você não queira
ser
a santa-mãe-dona-do-lar

e o que se faz quando se quer
mais?

hoje resolvi continuar limpando a sujeira
porque quando encrosta assim,
é preciso mais do que alguns anos
pra alvejar
é preciso mãos dispostas
de preferência,
mais do que duas
porque sozinha
eu ando bem
mas com todas vocês
eu ando melhor

 

quando conseguir ou não

Ser mulher, ou não,

esta para mim

não é que questão

 

Ter o corpo todo 

que envelhece…

o homem também

padece

 

me foi dito que a palavra que mais uso é “minha”.

Um eufemismo para não dizer “ego”.

 

Estou farta de mim. Desta coisa “eu”.

Dos cabelos que insisto em arrancar todos os meses

das unhas que preciso cortar todos os meses

de tudo que perco todos os meses.

De tudo que perco, só não perco esse “ego”

que me mata

emudece

apodrece

 

Quando conseguir enfim me livrar das amarras desta coisa “ego”

talvez as palavras também se libertem e sejam somente

palavras.