sinais do grito

quando prendo o grito no sinal
já não sei o que é voz no mundo
raiva ou descontrole
os pássaros prendem o grito o tempo todo
de manhã

quando prendo o grito no sinal
posso ouvir o asfalto estalando
meu nome não foi dito ou ouvido
presa a boca nada acolhe ou descarrega

quando prendo o grito no sinal
meu corpo é lança-chamas
e as cores das minúsculas pedras que se grudaram no meu pulso
na última vez em que vi o mar
aparecem com nitidez
sobre o espelho retrovisor
pedra sobre vidro
o grito prendido é sobre isso

mas que voz é essa que prende o grito?
tenho uma voz que nunca se descola de mim?
quantas vozes é preciso para fazer do grito justiça?
vozes de vozinhas se avizinham
onde dói, a gente não duvida
ela queria ser dançarina
mas não podia
a única bailarina da casa seria a da caixinha de música
que ela amava

o grito no sinal é a voz que sai e aquela que quer sair
a diferença entre nós desaparece no grito
a diferença entre nós grita
quando a gente só queria gozar
de um sinal
sem a memória do grito prendido

é preciso voltar ao momento do grito prendido
uma e outra e outra e outra vez
até o dia em que a ambiguidade da presa se desfaça
como um desenrolar de fios altivos.

fluxo

“cada um dá o nome que quer (e que pode) às coisas brutas

entenda-se por coisa bruta tudo aquilo que nos

[abisma-eleva-abisma-eleva de forma tão

[furtiva que perdemos a capacidade de

[intelectualizar por alguns instantes.”

Isadora Krieger

transmutar não mutar

a pele é encontro

os abraços

o desejo e aquilo que

não se pode conter

nós aqui tão contidas

eu me pergunto e às vezes

não consigo realizar a tarefa

a pele e o fogo

eu fico me perguntando

muito alto

latir

não existe outra forma

de estar no mundo

o que se desloca em nós

o tempo das coisas

filha, infância, cabeça

asas, caixa, corpo

não trocar

voltar para a casa da pele

história da foca para as crianças

a pele e a mulher selvagem

eu sou uma mulher-foca

eu reproduzi e me assustei

pensar é estar doente dos olhos

ritual com o fogo

comunhão

potência criativa

o que vejo e como

vejo?

como olhar de perto?

desejo, convergênci, percepção

renovar hábitos

ressignificar

o olhar

trocar de pele

conversa

IMG_1254– acho que vai chover
– então vou sair de bicicleta
– você não ouviu o que eu disse? acho que vai chover
– ótimo
– você quer se molhar?
– sim, acho que é um bom dia para se molhar
– você não tem medo?
– de me molhar?
– não, de sair na rua
– um pouco, mas o medo de envelhecer dentro de casa às vezes é maior
– já faz tempo, né?
– é
– eu fiz essa máscara pra você
– ela tem bichinhos!
– sim, achei que você ia gostar
– obrigada
(silêncio)
– será que algum dia isso tudo vai acabar?
– não sei
– as coisas sempre são diferentes do que a gente pensou que seriam né?
– quase sempre
– fico pensando que esse é um bom momento para a gente dizer a verdade sobre tudo, sabe?
– como assim?
– sei lá, dizer o que a gente sente, o que a gente pensa, manifestar o desejo
– hmmmm
– eu te amo
(silêncio)
– eu não sei o que te dizer
– tudo bem
– acho que tá todo mundo muito mexido com tudo, nesse momento. fico em dúvida se esse tempo de isolamento faz aflorar as verdades ou nos confunde sobre o que sentimos de fato
– talvez você tenha razão
(pega a mochila, a máscara e o capacete)
– você quer alguma coisa da rua?
– justiça

cardume

cardumea imagem do peixe fora d’Água
não me sai da cabeça
e já ocupa a pele, as vísceras
o pulmão

a lateral inchando
do peixe
num vai e vem angustiante
o olho parado
o pulo que estala
a barbatana que brilha
e reflete o tempo
que não vem

convém contar
até três
antes de abrir a boca
para qualquer coisa que seja
mais
do que respiro

chega o ar ao coração
antes da água?
como inundar o peito
sem afogar as mágoas?

eu escrevi sobre um afogamento
uma vez
sobre ter o sal nos pulmões
mas hoje eu quero escrever sobre a magia
de respirar
sem aparelhos
sem água no pulmão
eu quero falar dessa maldita
necessidade de espelho
e de oposição
dois lados de um mesmo mundo
quebrado

convém contar
a vocês
um segredo
muito simples
o mar não tá pra peixe
nem pra sereia

eu sei
é difícil de aceitar
principalmente pra você
que é peixe grande
e gosta de poluir
seu próprio habitat

o convívio dos peixes
além mar
ainda é uma incógnita
criarão eles novas formas de respiro e vida?
fingirão estar vivos na sobrevivência?
aprenderão com a morte de seus semelhantes?

gosto de pensar que o peixe é um animal
de bando
que antes de aquático
é coletivo
antes de pular
ele nada
e sempre chega a algum lugar
comum

nós
peixes
imensidão
encharco
correnteza
o que faremos para lidar com a dor?

o peixe que há em mim
saúda o cardume que há de vir
coletivo que é
força
matéria
presença
união

chama primeira

o teu dedo indicador
esquerdo
foi a primeira coisa que eu vi
me passando o baseado

é abismal pensar
o que pode um dedo indicador
quando chega ao lado
distraído
quando chega às costas
às coxas
e aponta o caminho

entre o sono e a agilidade
estávamos
como nos ensinou a poeta
alguns meses depois
eu já conhecia esse verso
mas ele tomou sentido
quando eu te conheci

eu lembro de ter chorado o dia inteiro
naquela noite
e de ter o estômago embrulhado
o corpo balançava
no coco
das mulheres

eu lembro de te ver de perfil
tua mão passava de leve
nos cabelos cacheados
o teu sotaque denunciava
semelhanças e dissidências
e o teu ar descompromissado
me pegou
de surpresa

chovia um bocado
naquela noite
e não tinha muito espaço pra fumar
e eu fumo bastante à noite
[acho que tu também]
por isso a gente ficou bem pertinho
e várias coisas podiam ter acontecido
eu podia ter te convidado pra dançar
tu podia ter me oferecido uma cerveja
eu podia ter dito que adorei o teu cabelo
tu podia ter falado que eu fico bem de vermelho
mas a gente tava distraído
e isso foi tudo
naquela noite

eu gosto quando as coisas acontecem
sem a gente ver
é como o pão que cresce
antes de ir pro forno
e de repente
aparece ali
grande
pronto
cheiroso
quente
macio e crocante
ao mesmo tempo
e a gente só disfruta
se lambuza
e deixa os farelos
caírem no chão

a massa que faz o pão
vale a luz do teu suor

cantaríamos algum tempo depois
e eu acho engraçado como surgem as metáforas
e eu gosto da poesia que sai
da tua boca
e chega na minha
vida
e eu apenas
acabo
de chegar.

sal nos pulmões

a poesia não salva
sempre
às vezes
é preciso ancorar
outros mares
sacar coragem
de outros
lugares
às vezes
são precisas as nossas palavras
outras
perdemos poemas
no ônibus
no quarto
na geladeira
por gosto
porque a vida
pulsa

fico pensando se a poesia salvou Ana C
salvar é manter vivo?
salvar é deixar ir?
salvar é poço ou é mar?
um salve a ti
que com uma mão mata o dragão
e com a outra
abre o coração

quando eu era criança
as bandeiras da praia iam do amarelo ao negro
e os moços que as guiavam
eram chamados de salva-vidas

não existem mais bandeiras negras
na areia
a cor do perigo
agora
é vermelha
e os moços viraram guarda-vidas
perceba a diferença
entre salvar e guardar
a previdência é a bola da vez
vejam só a ironia
a previdência no mar
a previdência na terra
na lama

no dia 7 de fevereiro de 2017
eu me afoguei
no mar
foi tudo muito rápido
eu sabia nadar
eu tinha fôlego pra nadar
mas eu só conseguia gritar
o medo faz isso com a gente
nos afoga

os guarda-vidas eram dois
e foram muito eficientes
saí do mar com vida
saí do mar
com medo

eu não sei bem se foi a água salgada no pulmão
ou ainda a estranheza de saber-me viva
fora do mar
mas alguma coisa mudou
nesse dia
dizem que a proximidade com a morte faz isso com a gente
nos afoga
nos salva

a poesia não salga
sempre
porque nem sempre dá pra entrar no mar
nem sempre dá pra escrever
um poema bêbado
que nos traga a dor e a delícia de ser o que é
às vezes
é preciso
cair
cair
cair
e fazer da queda um passo
incontornável
às vezes
é preciso perder tudo
pra achar alguma coisa
é preciso ter consciência
para ter coragem

quando lembro daquele dia
no mar
com sal nos pulmões
penso que guardar é mais bonito que salvar
a gente guarda o que ama
e salva o que pode
a poesia não salva
a poesia
rompe.

o amor é planta

a minha amiga disse que o amor caminha, assim,
como uma planta
e eu pensei ser esta
a metáfora perfeita
para explicar tudo
que cresce na gente
e que a gente não explica
e embrulha o estômago
porque uma coisa que cresce
precisa de espaço
e pra abrir espaço
é precisa limpar a sujeira
de dentro
que é sempre mais difícil
de limpar

se o amor é planta
nasce bem em solo fértil
mas também nasce in vitro
pode ser manipulado
controlado
com a promessa de ficar mais forte
melhor
geneticamente falando
menos propenso a pragas
ou a outros danos
imprevistos

há quem queira prever tudo
até o amor
como se ele fosse via de mão única
como se o outro
fosse eu

há também
quem diga que o amor nasce da distração
da perdição
da correnteza
e que não há como escapar
deleitar-se
é o que resta
lidar com as quedas e com o poço
buscar o fundo
a poção de amor

uma fenda nos separa, meu bem
eu disse
enquanto deitava na pedra salgada
e me banhava de sol
e minha perna esquerda atravessava a fenda
chegando meu pé ao teu lado
de olhos fechados
imaginei a fenda sumindo
imaginei-me apagando a vela
e sentando ao teu lado
para uma farta refeição
se o amor é planta
o preparo do alimento é como o preparo da terra
de onde tudo brota

se o amor é planta
então ele é estrutura
é o primeiro andar do prédio
a porta de entrada
o acesso a todos os cômodos
o elevador que nos leva ao ponto mais alto da torre
onde basta estar
para sentir
vertigem

eu sempre tive medo de altura
mas queria estar no alto
mesmo assim
a vertigem
nunca me impediu de subir na torre

acontece que a torre
de repente
ficou alta demais
e por mais que eu suba
parece que nunca chego lá
e quando olho para baixo
vejo a planta
vejo o amor
me sussurrando palavras que eu não consigo ouvir
porque eu subi demais

acorda, amor
a terra chama
o amor é planta
desce
enquanto eu preparo o nosso alimento
você pode me amar

acorda, amor

eu queria escrever um poema sobre amor
mas acontece que ele anda escasso
o amor
como objeto
como sujeito
como nós
sem amor

não tenho um Jacob ou um Lukás na minha vida
talvez Adelaide também não
mas ela escreveu sobre eles
para eles
e daí eu fiquei pensando que o último poema de amor que eu escrevi já faz tanto tempo
e que todos os poemas de amor que eu escrevi foram
para ……..
talvez eu nunca mais tenha me apaixonado depois
de ………
– embora eu me apaixone o tempo todo

eu queria escrever um poema que falasse da cumplicidade de um amor
do desejo de seguir juntos
de juntar os cacos a quatro mãos
de cuidar dos cortes
de respirar fundo
e recomeçar
mas eu não quero cair no clichê
e eu nem sei mais falar de amor
– embora eu fale de amor o tempo inteiro

eu não sei porque eu tô chorando
eu só queria escrever um poema sobre amor
mas eu perdi a mão
nestes tempos de revolta
feminismo não rima com romantismo

eu só queria voltar a acreditar no amor
sem perder a linha
que tece a minha história
sem emaranhar-me nos fios
de outros

eu não quero mais recolher os cacos
sozinha
no escuro
chorando
baixinho
para ninguém mais
ouvir

eu não quero mais
masculinidades hegemônicas
apatias, alopatias
ausências cotidianas
e eu nem sei exatamente o que eu quero
mas saber o que não se quer
já é bastante
para hoje

eu só queria escrever um poema sobre amor
mas acontece que o amor anda escondido
em múltiplos casulos anelados
à espera de mãos e corações febris
à espera de um convite aberto
o amor
hiberna

manual para descolar

IMG_1825a mãe era descolada
dos cabelos que insistia em mudar
a cada estação
das roupas que seguiam
a moda
da maquiagem
que ela não usava
dos sapatos comuns
dos quais ela não gostava

descolada
do corpo
e das ideias
que envelhecem
ela também
era
descolada
dos vínculos obrigatórios
do medo de afrontar
de costurar

durante muito tempo
achei que ela
não tinha medo
de nada
que os cacos
não a cortavam
que os fios
não a prendiam

aprendi com ela
a juntar os cacos
e ignorar
os pequenos cortes
a refazer o tecido
de dentro
no escuro
a olhar para frente
e para cima
a decidir

ela me deixava decidir
sobre quase tudo
e eu gostava disso
ela conta que, certa vez,
precisava me arrumar para sair com minha tia
acho que iríamos ao teatro
eu devia ter cinco, ou seis anos
ela, minha mãe,
deixou eu me vestir sozinha
porque eu disse que não precisava de ajuda
quando eu cheguei na sala
ela conta que eu estava com a maior combinação
de tecidos e cores que ela já tinha visto
e que por um momento pensou:
“será que a deixo sair vestida assim?”
mas eu estava tão feliz, de acordo com ela
que me deixou sair vestida assim
do jeito que eu queria

ela gostava de me ver
sempre
feliz
me trazia chocolates
na volta do trabalho
me fazia cosquinhas
até minha barriga doer tanto
que eu quase não conseguia respirar

a mãe era descolada
do serviço público
tanto que o largou
e foi fazer teatro
eu não sabia
o que isso significava
para ela
mas sabia
que estava feliz
pela decisão
pela mudança
a mãe não tinha medo
de mudar

o que eu não sabia
na época
durante muito tempo
eu não soube
é que ela sentia dor
e que a dor que ela sentia
eu também sentia

eu soube
que ela sentia medo
porque todo mundo sente medo
em algum momento
e tá tudo bem sentir dor e medo, às vezes, mãe
tá tudo bem chorar muitas vezes, mãe
a gente não precisa chorar sozinha no escuro, mãe
não
sempre

a mãe descolada
torna-se
deslocada
pois não se espera
uma mãe descolada
mesmo quando a filha
é descolada
mesmo quando a vó
é descolada
se você é mãe
você não se desloca
só se você for louca
daí você se desloca
e vira
mãe
descolada

a mãe é descolada
ainda
cada vez mais
talvez
esses dias fez uma tatuagem no braço inteiro
e me mandou uma foto com a seguinte legenda:
olha o que a tua mãe tá fazendo à beira dos 60 anos!
achei o máximo
ser descolada
aos 60

aos 36
ainda tenho algumas amarras
que aos poucos
vou descosturando
aprendendo a desaprender
descolando aquelas partes
que carrego
por descuido
tecendo
o que posso
e o que não posso
eu descolo
e fico bem descolada
como minha mãe