A fúria

O livro data de 1959. A tradução brasileira, de Lívia Deorsola, só saiu em 2019. Que bom que saiu a tradução brasileira! Afinal, há tantos anos já podemos ler Borges e Bioy Casares em nossa própria língua, e Silvina permanece estrangeira.

É sobre esse sentimento minha leitura do livro, aliás: Silvina é tanto mais estrangeira quando a leio na minha língua. A língua estrangeira de Silvina é a minha língua, e vivo naquele mesmo país onde a perversidade é cometida pelas almas puras, pelas crianças, tanto quanto contra as almas puras e contra as crianças. No país em que somos estrangeiras, eu e Silvina, este país onde crescemos as meninas (os meninos também, suponho, porque li Três Porcos, do Marcelo Labes), neste país não há justiça, e as divindades, bem como as pessoas, não guardam qualquer tipo de coerência em seus atos. Neste país estranho e familiar, a crueldade e o amor habitam os mesmos corpos, e tornar-se humano é bestial, e tornar-se bestial faz parte do que é humano.

As imagens derivam em composições surrealistas, composições como as que vemos claramente nas madrugadas insones e manhãs sonolentas, que se apresentam nas tardes infernalmente abafadas à beira do Rio da Prata, ou do Letes, ou mesmo do mar. Os animais estão presentes em desenhos que a autora, ela própria artista visual, desenha em palavras. São humanos os animais, somos animais os humanos. A Fúria, entidade mítica, eventualmente toma de assalto uns e outros, fundindo-se em horror às expressões humanas de amor.

(OCAMPO, Silvina. A fúria. Trad. Lívia Deorsola. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.)

Objeto

O tempo, o tempo, o tempo e suas águas inflamáveis, esse rio largo que não cansa de correr, lento e sinuoso, ele próprio conhecendo seus caminhos, recolhendo e filtrando de vária direção o caldo turvo dos afluentes e o sangue ruivo de outros canais para com eles construir a razão mística da história, (Raduan Nassar)

Fera
A minha pele
Tem tristezas
Eu confio
Naquilo que vejo:

A mulher
Se pudesse
Só latir
A ponto
De interagir
com a minha
pele tem tristezas
tem um livro
que não existe
ainda medo
e direção

foca
a pele está longe
de mim
acho
preciso trocar
a pele
trocar a pele
por asas
sinto
a pele está
longe de mim
a casa da pele
onde é
aqui?
medo e direção

carnívora
sempre fico
me perguntando
o pasmo essencial
estou onde
é aqui?
sentir o tempo
se ao nascer reparasse que nascera deveras
contida aqui
a gente se torna
mais infeliz
quando retorna

fera carnívora
os deslocamentos
dos abraços
dados
não dados
os olhos nos
velam
foca
gostei bastante
desaprender
o tempo das coisas
o medo
direção

Juízo

Deve ter sido um pesadelo
É comum que seja assim nos sonhos
Eu assisto uma outra mulher
E a outra mulher também sou eu

Deve ter sido um pesadelo
Assistir meu próprio julgamento
O nome da mulher era o meu
Mais o nome da minha mãe

Deve ter sido um pesadelo
Porque muitas palavras ali
Tinham endereço certo no meu corpo
Mal curadas cicatrizes na pele nos poros

Deve ter sido um pesadelo
Eu aparecia mais jovem mais bela
Mais recatada e mais doce
E as feridas eram mais fundas

Deve ter sido um pesadelo
Afinal ensaiei tantas vezes
Suportar punições pela roupa curta
Humilhações por existir em público

Deve ter sido um pesadelo
Ainda não consegui contar que sempre
Que ia dar uma aula imaginava ofensas
Aos meus seios livres sob a blusa leve

Deve ter sido um pesadelo
Também retorna feito cinema aquela vez
Vestido branco no apartamento
Eu sem achar o caminho da porta

Deve ter sido um pesadelo
A camiseta fina do uniforme
A adolescência teimando em exibir-se
O homem na calçada negociando o colo

Deve ter sido um pesadelo
Rumores ouvidos nos corredores
Enquanto gastava meu latim:
As pernas os pelos mau gosto meu gosto

Deve ter sido um pesadelo
Troquei tantas vezes de roupa
De namorado de profissão
Troquei de amigos e de cidade

Deve ter sido um pesadelo
Troquei até de família
Tentando escapar do julgamento
Ensaiei todos os gestos perfeitos

Deve ter sido um pesadelo
Não pode a vítima tornar-se ré
O algoz não devém vítima
As fotos já tinham sido apagadas

Deve ter sido um pesadelo
O homem disse algo sobre estar apagada
A mulher ou a luz estava apagada?
O estuprador foi comparado a um menino

Deve ter sido um pesadelo
Criminoso algum evoca crianças
Sobretudo um homem de tanto valor
Em dólares e status social

Deve ter sido um pesadelo
Falava-se de uma festa
Nós nem tínhamos o dinheiro pra entrar no clube
Nem nos lembrávamos como escapar do labirinto

Deve ter sido um pesadelo
Um sem número de rostos vagamente conhecidos
Alternava-se na tela da videoconferência
Entre o silêncio e o descalabro

Deve ter sido um pesadelo
Porque dias se passaram e ainda sinto
Um gosto amargo constante na boca um zumbido
Da expressão “pose ginecológica” no ouvido esquerdo

Eu queria que fosse só um pesadelo
Também para você, Mariana
Mas aconteceu pela segunda vez
E te abusaram em nome da justiça

da janela

     (Fotografia da autora)

já faz três meses que estou aqui
a casa é confortável
pelo vidro entra a lua cheia
a escuridão lilás das madrugadas
o sol, o ar, alguns insetos
o barulho alentador das panelas
contra os gritos hostis
de alguém capaz de vociferar
fascismos da vizinhança de bem
 
nem todo inseto é inócuo
o ar muitas vezes é frio
e quando chove as paredes
inflam com um bolor cinzento
 
a chuva é breve e passa
 
abro a janela para uma amiga
acontece algo que faz lembrar um encontro
e o coração se alegra um pouco
sua criança colhendo rabanetes bonina
 
a alegria é mais breve que a chuva
 
somos invadidas de tantas formas
exibe-se o rosto do presidente
está a mais de dois metros
mas ainda assim é infecto
 
o enjoo me contamina estômago
e mente, órgão menos palpável,
enquanto os números deixam de contar
e suspeito de enxaqueca
porque proibido mencionar outra síndrome
mais aguda, mais grave, ou que explique
o ar tão pesado pra respirar
e todos os mortos que se acumulam
no chão das casas sem conforto
 
as janelas amanhecem quebradas
e avisto no horizonte precipício
onde está escrito presidente, leio prefeito
confundo a sombra branca do homem que escapa
dissimulado entre as paredes muito limpas
do seu apartamento no nono andar do inferno
 
à sombra da sombra do homem
uma mulher empalidece ao explicar
que aceita ser mantida como incapaz
de manter por cinco minutos a própria vida
e chora, é claro, sua pequena miséria
incapaz de ouvir o luto lancinante
da mulher que a alimentava e ela mutilou
 
a sombra branca pisca outra vez
imperceptível na parede clean
o prefeito decretou essenciais
os serviços domésticos, o transporte público
a polícia e logo mais reabrirá as creches
pois quando chegar do trabalho
cansado do encontro com os ministros
após assinar muitos papéis para que passem
as boiadas todas sobre todos os cadáveres
- os cadáveres de umas mais que os de outras
nem todos os cadáveres têm 32 dentes –
quando chegar ademais da mesa posta
além das fraquezas silenciadas e das crianças
adormecidas vai querer ainda o cão contente e as paredes
imaculadas e ordenará que sua mulher tenha as mãos
finas e a mente vazia e dócil para satisfazê-lo
em cada um dos seus perversos caprichos
 
terá ela aceitado alienar-se de qualquer vida
em troca de alguns capachos que lhe aqueçam os pés
e agora treme com os pés gelados diante do dono
sem conceber que possa ter sido omissa ou atroz
e não cogita pronunciar o nome do cão de família
que lhe propôs doloso o pacto de morte
 
o lar do capitão tem tudo que ele quer
mas suas janelas dão para o abismo

(poema publicado originalmente no Portal Catarinas, na coluna Poéticas da Convivência: https://catarinas.info/colunas/poeticas-da-convivencia-da-janela/ )
 

Atonal

Screenshot_2020-03-24 Concha Tattoo ( conchatattoo) • Fotos e vídeos do Instagram

(Sereia de cumuru. Davi Gardoni, 2018. Instagram: #conchatattoo)

A sereia adentra a barca
Vem de águas profundas
Perfura o casco
Penetra os porões

Sobre a madeira
Seca e sem brilho
Move a cauda
Move os lábios

Seu lamento
Enigmático
Espalha-se por corredores

A sereia crê
No abandono
E nos lamentos que ouve
Percebe eco
Fantasmagoria
De si

Em paralelo
Andares acima
Cada uma em sua clausura
As insensatas
Ouvem o lamento
Da sereia e veem
As mesmas miragens
Uma vez mais

A arca é muito habitada
Baias separam as filhas da lua
Mas suas almas vagueiam
Por todo o navio
Em combates de água e fogo

Cantam alto as filhas da lua
Cada uma em língua única
De onde tentam sair
Em uivo polifônico

Canta alto a sereia
E todo canto parece
Às filhas da lua
Um lamento de clausura

A sereia, contudo
É livre, e lamenta
Que lhe respondam
Em língua estrangeira
Os seus fantasmas

A sereia parece livre
Frequenta mares e terras
Navega com ou sem nau
Mas não escapa
De ouvir seu próprio canto
Que insiste em abismos

Cantiga de amiga

IMG_20161023_142729142_HDR.jpg

sabe, amiga
eu também pensei um dia
que só os homens podiam
falar de Amor
que para uma mulher
o desejo de amar
era coisa romântica
e eu nunca fui romântica
detestava até mesmo beethoven
e lia na história da sua surdez
a dificuldade de ouvir
que eu mesma sentia às vezes
porque as palavras tinham arestas agudas
e feriam dentro
do que eu não sabia se eram os ouvidos
a garganta, a vagina, o coração, o útero

sabe, amiga
eu também pensei um dia
que só os homens podiam
falar de Amor
que na voz de uma mulher
qualquer história parecia aquela
da princesa raptada por um cavalo
precisando achar divino o sujeito
que esporeava o cavalo
porque afinal era a única maneira
de deixar a torre

sabe, amiga,
eu muitas vezes pensava
ter que me acostumar a viver na torre
para todo o sempre
eu que não desejava o príncipe
conviveria com o claustro e suas paredes
tingidas de cal
eu pálida freira
e as grades que eu amava
porque eram a entrada de ar e luz

sabe, amiga
cheguei a ensaiar também
montar eu mesma no cavalo
tornar-me aquela que desce o chicote
na cavalgadura com brutalidade
e foge e se exila na floresta
claustro mais verde e mais habitado
eu eremita
mas de novo eu ouvia a história da princesa
porque sempre aparecia ali uma bruxa
eu bruxa, fabricando venenos
para enfim matar a mocinha

sabe, amiga
também arrisquei jogar da janela
os cabelos todos em trança
até a beira da estrada
e receber cada cavaleiro andarilho sacerdote
barbeiro caixeiro-viajante cientista
deputado doutor boticário
até ter o mundo dentro de mim
mas o mundo em mim
não era espelho de mim no mundo
e o que restava era a dor
de infinitos natimortos
que sugavam as tetas da bela adormecida
até que ela acordasse aos gritos
pois não convinha à bela
gritar de Amor

sabe, amiga
por muito tempo pensei
que só os homens podiam falar de Amor
e achava intolerável
ouvir os homens falarem de amor
e ter que responder qualquer coisa
da ordem do romance
os romances que eu gostava
eram os da clarice lispector
e não dava pra ser a lóri
as bolas de ulisses me davam náusea

mas sabe, amiga
aconteceu um dia
de eu arriscar umas palavras
sobre o desejo
primeiro o desejo que eu gostava que ardesse
e se consumisse em uma duas três noites
e sempre que me ardia em desejo
ressurgia uma fênix ávida por outro alimento
que eu não sabia nomear

então aconteceu outra vez
de arriscar dizer eu te amo
pra um desejo que eu gostava que durasse
que já ia durando
eu ainda não sabia que o Amor era feito de brasa
uma brasa que se acendia com o vento
e podia queimar se não se cuidasse
uma brasa que quase se apagava
e era preciso passar noites inteiras soprando
o fogo cansa-se, amiga
e também se cansa quem porventura
precisa manter sozinha a brasa acesa
e deve ter acontecido daquela vez
o Amor feito cinza
encontrei algumas vezes o Amor
enquanto andava pelo mundo sem saber bem
o nome do que estava procurando.
mas os homens podiam falar de Amor
e eles sabiam bem o nome daquilo de que fugiam
eles diziam alto no primeiro encontro
palavras que eu não compreendia
para explicar que estavam fugindo do Amor
que não estavam fugindo de mim
que me queriam bem mas o Amor não queriam
e eu assistia aquilo sem compreender bem
porque ainda não sentia nada
sequer parecido com amor

sabe, amiga,
acho que os homens contam entre si
histórias terríveis sobre o Amor
histórias tão terríveis
como as histórias que eles costumam nos contar
sobre uma princesa que espera
e um pobre coitado que precisa correr mundo
pagar sete prendas
trabalhar sete anos
ficar provando que ama
enquanto cala o desejo
de ser a princesa da vez
e só ansiar receber passivo
a notícia de saber-se amado

sabe, amiga
eu vou escrever um poema de Amor
o poema começa com alguém que diz
eu te amo
mas eu acho que o poema não tem fim
porque o Amor é coisa que se derrama
como uma erva cobre chão e sobe no tronco das árvores
o Amor caminha assim, como uma planta
e como uma planta ele precisa de quem o habite
e pra habitar o Amor
é precisa alguma coragem
a persistência de quem lavra
são precisas as nossas palavras
dizendo os Amores
onde a gente deseja viver

Máquina

 

Cable Telefónico Quipu (2006)

Cecilia Vicuña, Quipus.

Disseram que era sobre
menstruação. E ponto.
Acusaram as Índias:
lá, a menstruação
é um tabu.

Oh!
na Índia
um tabu.

Nas Américas não:
as mulheres trabalham
igualmente mesmo
que sangrem
mesmo que tomem
lícitas injeções
pílulas milionárias
para que coagulem
tudo que flui pelo cérebro
pelo útero pelo coração
e não sangrem.

Nas Américas
as melhores
mulheres
não
menstruam
não
parem
trabalhem
sem
cansaço
sem descanso.

Na Índia
usam velhos tecidos
de cores e estampas
mas um homem
sim, um senhor
muito higiênico
que não menstrua
inventou uma máquina
muito higiênica

Nela, dezenas de mulheres
limpas e com máscaras
higiênicas para tampar
suas bocas de mulheres
produzem novos
tampões para mulheres
descartáveis:
plástico, algodão branqueado
e cola
para serem plantados
na terra para ninguém
notar.

Na terra
onde caiam
nada brota:
assepsia
is a thing.

O trabalho das mulheres
na Índia rural
é tão barato
que até as mulheres
da Índia rural
poderão comprar
um absorvente.

Que importa
Se é feio? mas
muito eficiente!
E eficiência
Is a thing.

E elas não terão mais
as unhas sujas de terra
e elas não terão mais
o dia perdido
no cuidado dos filhos
e elas não terão mais
que plantar, que colher:
perderão os dias
na máquina do homem
em que podem trabalhar
mesmo sangrando.

Há também uma jovem na Índia
rural, entretanto
muito urbana, de jeans, moleton
possivelmente lycra
quer ser da polícia
prefere o trabalho
ao casamento
e estudantes americanas
acham louvável.

Estudantes americanas
investiram
to start up her
para que ela
empreenda
– e empreender
yes, it is
a thing–
que empreenda
na Máquina
o dinheiro que poupar
do trabalho das companheiras
que não falam a palavra
menstruação
e provavelmente
não pronunciem mesmo a sílaba “ão”
como em rebelião, revolução
dado falarem outra língua
e agora trabalham
sempre que há luz.

Mais-vale
para não terem que implorar
ao marido ao pai aos irmaõs
algum dinheiro
para um presente destinado
ao marido ao pai aos irmãos
ou para um tampão
daqueles mais bonitos
com a foto da moça branca
de biquini branco
no mar
escondendo mais fundo
o plástico fedorento
que resta
do tabu.

Era sobre menstruação
,
disseram.

Uma vírgula.

 

 

 

a polpa do indicador

P049-cebolas-caramelizadas

 

estava almoçando sozinha
as cebolas carameladas ao forno
uma delícia
as camadas desfolhando
a memória de uma conversa
semanas meses atrás
sobre uma pergunta
que passou despercebida

à procura de registros
vestígios, indícios
de uma pergunta discreta
imperceptível

um elefante na loja de cristais
terminava em ponto de interrogação
um imenso quê acentuado
QUÊ?
versava sobre a fome
ousava perguntar sobre
O Desejo

dava pra ouvir na memória
os versos daquela música
“eu gosto dos que têm fome”
a cantora, quem era?
“dos que morrem de vontade”
uma mulher de voz rasgada
“dos que secam de desejo”
de voz áspera, “dos que ardem”
uma mulher de voz

soube que o desejo
revelado não se realiza
descobrira depois o contrário
revelar o desejo é condição
pro desejo realizar-se
mas já tinha decorado o verso
inesquecível
ao ver a estrela cadente
ao soprar a vela que celebra
mais um ano, menos um

no momento de comer o bolo
já não resta fome
e, outras vezes, de tanta fome da festa
se esquece de comer o bolo
e já em casa, a Fome

de quê?
de comida mesmo
de que todo contato tenha
a profundidade de um orgasmo
a gente fica gulosa e mal acostumada
e rejeita, tem hora, qualquer conversa
que seja menos que foda

e nesses momentos
há fome de silêncio escuro
úmido e profundo
fome de regenerar a pele
e evitar aberturas
pros desconhecidos

e esse momento também
passa e há fome de ser tocada
por quem quer que seja
por quem quero que seja
uma tremenda fome
de saber-se amada
e outra de desejar
fome de fome

há vezes, fome de fama, de grana
de ouvidos atentos às palavras
e tantas só fome mesmo
de sal, de doce, de carne, de fruta
de chegar ao caroço
sem jamais revelar o que pensara
com o cílio colado
na polpa do indicador

Caatinga (cantiga de eito)

 

A gente já tinha escrito

Sobre a revolta uma vez

 

Tinha partido a palavra em duas

E ela morreu ali

Dissecada etimologicamente.

 

Descobrimos que era irmã

Da revolução

volução significava volta

ímpar de volição, desejo

 

A gente já tinha escrito

Sobre a revolta uma vez

 

Mas re

Não significava exatamente repetição

Porque algo até torna a acontecer

Mas repetir-se

não

 

A gente já tinha escrito

Sobre a revolta uma vez

 

A revolução dos planetas

Não lembrava se em redor do sol

Transla

Se em roda do próprio eixo

Rota

 

O eixo de rotação da Terra

Camba pra um lado

Como um peão que perde velocidade

E a trajetória é uma curva sem nome

Irrecognoscível

 

A gente já tinha escrito

Sobre a revolta uma vez

 

Dissecada ela perdeu os sentidos

 

Os sentimentos ficaram mais simples

Raiva, medo, tristeza

As ações mais cotidianas

Velar, enterrar, brotar, crescer

Dar sombra, ou frutos

Ou resistir mesmo como espinheiro

Na aridez.

 

 

 

 

cornucópia

despensa repletaWhatsApp Image 2018-06-05 at 21.51.42
fácil ver belezas

no fundo vazio
da panela mesmo
depois
de lavar
esfregar, arear, polir
resta uma mancha
nódoa, toda mácula
pode ter forma
de pequeninas flores, esta
flores brancas minúsculas
aliás, branca
é a memória do arroz
as flores da mancha
cinzentas
seu brilho esverdeado
provavelmente
azul, nunca soube,
ainda não sei

há também um contorno
leitoso
das pétalas
mas não se vê

os meus cadernos também
têm nódoas
bem onde começa o vazio
borrões de lágrimas
num jorro como
o pus
de uma espinha quando
espremida a palavra
justa
marcas de suor
parece exagero
não nas tardes quentes
de verão o calo
protuberante do
anular arrasta uma
pasta azul de suor e tinta

alguns insetos mortos
acidentalmente pelo peso
dos dedos
das letras sobre o papel
sangue
de um pernilongo
de barata
e café, e caqui
e a flor ainda úmida que secou entre as páginas
e um pedacinho de meleca que secou entre as páginas
terra
e mofo e pó

precisarei revelar
gosto
da sujeira
e não só nos
cadernos

preciso revelar que gosto da sujeira
exceto quando estou para menstruar
e quero a louça branca brilhante
para contraste com o sangue

certas manhãs ainda não sei
que era esse o sangue nos cadernos
quando a recente, ingênua e assustada
mulher flertava com a morte
sangrenta

um prazer indescritível me
tomava em ver
jorrar nos pequenos tubos
de ensaio dos patologistas
meu sangue vivo que pulsava das artérias
na esterilidade dos laboratórios
até que:

um prazer incontido
a cada mês
um jorro de sangue que pulsa
vermelho e vivo
só pude ver
óbvio
quando me deram nome
e técnica:

num cálice
é possível colher
o sangue que flui
das melífluas entranhas

a melhor gratidão
pelo necessário:

o alimento, o calor,
o gozo
o sangue servido
no copo

já arrisco, grata
exibir a nódoa escura
e sua sombra amarelada
na parte de trás das saias

mas isso só
depois de limpar
a casa e cortar
as unhas e lavar
os panos todos
antes
antes
prefiro a sujeira
até que venha
a vida

há algumas semanas
uma miríade de larvas
no tampo do lixo
meses atrás, dezenas
de moscas lentas
semivivas se arrastando
contra o vidro morno
da janela, certa vez
uma barata na greta
entre a parede
e o porta: emparedei-a

nem todo animalzinho
porém
é malquisto
as formigas, por exemplo,
minúsculas, invisíveis
em sua individualidade,
por vezes cobrem minha
pele e se alimentam
do meu mel
e também carregam
o açúcar da urina
desde os papéis
do banheiro até o
cristal do açucareiro
mesclando doçuras

os ratos, vejo-os
todas as noites
me sinto menos
só nas ruas
do centro à sombra
soturna da figueira
um rato subiu pelo encanamento da privada e atacou a testa
a testa
de uma senhora que dormia sozinha
no terceiro andar
verdade
uma única vez vi
camundongos
em casa os mataram
guincham qualquer dor
aflita
e têm famílias imensas

as aranhas e os pernilongos
os animais da limpeza
as teias das aranhas
extremamente
limpas servem
para armazenar alimentos
contudo
eu mato

a poeira, por sua vez,
desagradável
mas inofensiva não atrai
animais
em uma cidade úmida
como esta
ela se deposita sobre
portas & paredes
cola nas superfícies
com uma oleosidade que me causa sempre
gastura

os cabelos
as roupas
os dentes
precisam estar sempre limpos, afinal
lavar os cabelos
é tirar a crosta da aura
mas já há um poema sobre tirar a crosta

aliás, era isso
uma espécie de aura
a coroa de flores no fundo