boquiaberta diante da Outra Pergunta, certa mulher se expõe

certa mulher

erra

mas não é a errância

o que a consome.

uma outra,

certa,

também é consumida

por ardores, ardências.

sentem, ambas,

arderem as bordas

apenas as bordas,

vermelhas e túrgidas.

apenas das bordas,

vermelhas e túrgidas,

o insistente e dolorido

ardor.

o centro profundo,

escuro e úmido

pulsa

não arde

pulsa.

o pulso

sensível

às oscilações da borda

que arde em chamas

mas

em sua oscilação

o centro não

arde

o centro

pulsa

em ritmo perene

pulsa.

permanência

é muito menos

que eternidade.

permanência possível:

pulsação vacilante

diante do desejo

de durar um pouco

mais

dia menos dia.

ao desejo

a entrega

é errância.

e pulsa.

aquela mulher

secretamente sabe

que arder

inflamar, consumir-se

é punição

dada a bruxas.

errada,

sabe

e não faz disso segredo:

erro fatal,

e culpada

arde.

outra pergunta

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Navegantes,

Tentei gravar áudio, vídeo – e dar a cara (a bater) -, mas hoje não está funcionando quase nada… então, pra não demorar mais, pra aproveitar esse domingo de sol maravilha, vou na ponta dos dedos até vocês, lançar uma outra pergunta pra impulsionar a conversa, pra seguir adiante, pra sustentar a brasa…

É também uma pergunta sobre os modos de vida, sobre o que me move; a intensidade, o tempo, o desejo, a necessidade:

:

(É) melhor durar do que arder?

:

Essa pergunta que tem me perseguido encontrei formulada assim na dissertação do Joaquín, e um dos textos que dialoga com ela é A via crucis do corpo, da Clarice, que coincidentemente eu estava relendo logo antes de ler o trabalho dele… Mas na literatura não há coincidência, há conversa, é a minha aposta. Por isso tomo a liberdade de convidá-lo pra embarcar nessa conosco.

Uma economia impossível (o trabalho, a alegria, o prazer, o amor, a leitura, a escrita, o alimento, a casa)?? O que nos consome??

Nesse momento, a alegria enorme da menina que chama as amigas, os vizinhos todos, pra brincar. É bom estar perto.

 

&

 

O INTRATÁVEL

AFIRMAÇÃO: Ao contrário de tudo e contra tudo, o sujeito afirma o amor como valor.

Apesar das dificuldades da minha história, apesar das perturbações, das dúvidas, dos desesperos, apesar da vontade de me livrar disso, não paro de afirmar em mim mesmo o amor como um valor. Todos os argumentos que os sistemas mais diversos empregam para desmistificar, limitar, apagar, enfim, depreciar o amor, eu os escuto, mas me obstino: “Sei bem, mas contudo…”. Transfiro as desvalorizações do amor para uma espécie de moral obscurantista, para um realismo-farsa, contra os quais ergo o real do valor: oponho a tudo “o que não vai bem” no amor, a afirmação do que vale nele. Essa teimosia, é o protesto de amor: debaixo do concerto de “boas razões” para amar de outro modo, amar melhor, amar sem estar apaixonado, etc., uma voz teimosa se faz ouvir que dura um pouco mais de tempo: voz do Intratável apaixonado.

O mundo submete todo empreendimento a uma alternativa; a do sucesso ou do fracasso, da vitória ou da derrota. Protesto por uma outra lógica: sou ao mesmo tempo e contraditoriamente feliz e infeliz: “conseguir” ou “fracassar” têm para mim sentidos apenas contingentes, passageiros (o que não impede que minhas dores e meus desejos sejam violentos); o que me anima surda e obstinadamente não é tático: aceito e afirmo fora do verdadeiro e do falso, fora do êxito e do malogro; estou destituído de toda finalidade, vivo conforme o acaso (a prova é que as figuras do meu discurso me vêm como lances de dados). Confrontado com a aventura (aquilo que me ocorre), não saio nem vencedor, nem vencido: sou trágico.

(Dizem-me: esse gênero de amor não é viável. Mas como avaliar a viabilidade? Por que o que é viável é um Bem? Por que durar é melhor que inflamar?)

Certa manhã, devo escrever urgentemente uma carta “importante” – da qual depende o sucesso de certo empreendimento; em vez disso escrevo uma carta de amor – que não envio. Abandono alegremente tarefas desinteressantes, escrúpulos razoáveis, condutas reativas, impostas pelo mundo, em benefício de uma tarefa inútil, vinda de um Dever remarcável; o Dever amoroso. Faço discretamente coisas loucas; sou a única testemunha da minha loucura. O que o amor descobre em mim, é a energia. Tudo que faço tem um sentido (posso então viver, sem me queixar), mas esse sentido é uma finalidade intangível: é somente o sentido da minha força. As inflexões dolentes, culpadas, tristes, todo o relativo da minha vida cotidiana é revirado. Werther elogia sua própria tensão, que ele afirma diante das mediocridades de Albert. Nascido da literatura, só podendo falar através de seus códigos gastos, estou portanto só com minha força, condenado à minha própria filosofia.

(BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1981. p.16-17)

 

&

Conto “Melhor do que arder” em A via crucis do corpo, Clarice Lispector

 

&

quando conseguir ou não

Ser mulher, ou não,

esta para mim

não é que questão

 

Ter o corpo todo 

que envelhece…

o homem também

padece

 

me foi dito que a palavra que mais uso é “minha”.

Um eufemismo para não dizer “ego”.

 

Estou farta de mim. Desta coisa “eu”.

Dos cabelos que insisto em arrancar todos os meses

das unhas que preciso cortar todos os meses

de tudo que perco todos os meses.

De tudo que perco, só não perco esse “ego”

que me mata

emudece

apodrece

 

Quando conseguir enfim me livrar das amarras desta coisa “ego”

talvez as palavras também se libertem e sejam somente

palavras.

Unheimlich

“¡Póngase sereno – me dijo – y apunte bien!
¡Va a matar a un hombre!”

(Últimas palavras de Che Guevara
por seu verdugo, Mario Terán)

 

Zaragoza, 29 de julho de 2015.

 

Há dias tão bonitos e outros tão desesperadores, como este. Abro a gaveta e debaixo do caderno encontro essa folha rabiscada, onde dias atrás anotei um sonho bastante absurdo que havia acabado de ter. Despertei e tive a necessidade de que ele não me escapasse, porque havia sido um daqueles sonhos perturbadores ademais de absurdo. Suponho que não é todo dia que se sonha com Che Guevara. Então, com o tal sonho na ponta dos dedos, papel e lápis sacados da Gaveta do Diário Esquecido, com a pouca luz que entrava pelas frestas da persiana e ainda metade adormecida, relato o sonho que me sai assim, em verso e em espanhol:

 

Esta noche he soñado
que era testigo y cómplice
de la muerte de Che Guevara.
Porque iba a morir, deberíamos matarlo.
Preparamos la escopeta sobre un trípode
apuntando directamente al corazón
del Guevara moribundo y anciano
que yacía sobre un lecho
con doseles y volantes, como el de un rey.
Pero, a dos segundos del disparo
(y yo ya podía sentir la pólvora
humeante alcanzar su corazón)
Guevara vomitó sobre el pecho
y murió.
Te miré. ¡Le diste veneno!
¿Por qué? Me dijiste algo acerca del ruido…
Sabíamos que no lo fusilaríamos
como los canallas de nuestro tiempo.
Pero tú no eras tú y enseguida
pusiste pólvora en la escopeta y se la diste a nuestra niña
que empezó a disparar por los rincones mientras
tu te reías con regocijo y yo temía por ella y ninguno
de nosotros se acordaba ya de Che Guevara.
Dani Santi

brincar com fogo

ɐuɐ!

 

Amiga Ana Archista, brincar com

fogo, subverter o jogo

do lugar-conforto pro lugar-perigo

da língua do consumo

ao consumo da língua

o risco do comum

esse do não entender

e forjar um lado

quero dizer Amiga Ana Artista

que teu malabarismo circense

mais uma vez, vem ao meu encontro

em contraponto

não têm lados nesse circo

esse é o círculo circo

não o cerco do milionário contra o miserável

o corpo fino fio entre o furo e a fé.

 

 

nas minhas agruras

[Porque é meu o impulso sem pensamento, lanço sem pensar meu grito falho, meu falo, meu corno desastrado de unicórnio inadequado. Mas amo e falho, já sem medo do risco, nem dos risos… amo essas mulheres que amam, (ar)riscam os risos e traçam seus riscos em falas, em falos, e falham e furam e flanam]

 

Abaixaqui, Ana nas

minhas pretensas alturas

nas minhas agruras

de pavoa que voa baixo

Abaixaqui, Ana nas

nossas naves

de vez em vez

de revés

 

Iara também ouvi teu canto

com um todo encanto

aqui no meu canto

no lugar de difícil acesso

onde moro

morro

de quase

pranto

 

agora gargalhadas

nervosas desejosas

mulheresembrasas

embarcas

falo porque não calo

e falho

 

o que nasce do frescor

Querido Malacan,

me seduzes quando a primeira sílaba do teu nome é Pau,

(enrubesço porque digito, num freudeslize, Pai)

e penetro com violento ímpeto o seu belíssimo quebra-cabeças.

 

Ecoa-me um velho desejo, não de todo, confesso, abandonado,

de habitar o lugar do Falo e falar, falar, falar,

o discurso inteiro, a verdade íntegra, o quebranto inquebrantável.

 

E, no entanto, histérica me reconheço,

(e outra vez, num digito, histórica)

entre outras belíssimas clitórides

(não digo de glândulas, das ninfas falo)

excessivamente ornada –

nada.

 

“Nas?” me perguntou um dia meu velho,

espelho meu:

“Ana, nas?”

E eis-me náufraga, refletida abacaxi.

 

A uns deixo que me descasquem,

a outros me dispo doce,

coroa e suculenta polpa,

miolo indeglutível.

 

Vejo-me assim, aos pedaços,

nesses cacos de espelho que encontro

nos mosaicos vossos

em que tento ver delimitada figura.

 

Mas a verdade é que não há limite

“a verdade é que”

(o desejo de inteireza às vezes

se revela vergonhosa e descaradamente)

só quando é impossível dizer “nós”

confortavelmente me enlaço:

nós, mulheres.

 

E existo.