Navegantes,
Tentei gravar áudio, vídeo – e dar a cara (a bater) -, mas hoje não está funcionando quase nada… então, pra não demorar mais, pra aproveitar esse domingo de sol maravilha, vou na ponta dos dedos até vocês, lançar uma outra pergunta pra impulsionar a conversa, pra seguir adiante, pra sustentar a brasa…
É também uma pergunta sobre os modos de vida, sobre o que me move; a intensidade, o tempo, o desejo, a necessidade:
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(É) melhor durar do que arder?
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Essa pergunta que tem me perseguido encontrei formulada assim na dissertação do Joaquín, e um dos textos que dialoga com ela é A via crucis do corpo, da Clarice, que coincidentemente eu estava relendo logo antes de ler o trabalho dele… Mas na literatura não há coincidência, há conversa, é a minha aposta. Por isso tomo a liberdade de convidá-lo pra embarcar nessa conosco.
Uma economia impossível (o trabalho, a alegria, o prazer, o amor, a leitura, a escrita, o alimento, a casa)?? O que nos consome??
Nesse momento, a alegria enorme da menina que chama as amigas, os vizinhos todos, pra brincar. É bom estar perto.
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O INTRATÁVEL
AFIRMAÇÃO: Ao contrário de tudo e contra tudo, o sujeito afirma o amor como valor.
Apesar das dificuldades da minha história, apesar das perturbações, das dúvidas, dos desesperos, apesar da vontade de me livrar disso, não paro de afirmar em mim mesmo o amor como um valor. Todos os argumentos que os sistemas mais diversos empregam para desmistificar, limitar, apagar, enfim, depreciar o amor, eu os escuto, mas me obstino: “Sei bem, mas contudo…”. Transfiro as desvalorizações do amor para uma espécie de moral obscurantista, para um realismo-farsa, contra os quais ergo o real do valor: oponho a tudo “o que não vai bem” no amor, a afirmação do que vale nele. Essa teimosia, é o protesto de amor: debaixo do concerto de “boas razões” para amar de outro modo, amar melhor, amar sem estar apaixonado, etc., uma voz teimosa se faz ouvir que dura um pouco mais de tempo: voz do Intratável apaixonado.
O mundo submete todo empreendimento a uma alternativa; a do sucesso ou do fracasso, da vitória ou da derrota. Protesto por uma outra lógica: sou ao mesmo tempo e contraditoriamente feliz e infeliz: “conseguir” ou “fracassar” têm para mim sentidos apenas contingentes, passageiros (o que não impede que minhas dores e meus desejos sejam violentos); o que me anima surda e obstinadamente não é tático: aceito e afirmo fora do verdadeiro e do falso, fora do êxito e do malogro; estou destituído de toda finalidade, vivo conforme o acaso (a prova é que as figuras do meu discurso me vêm como lances de dados). Confrontado com a aventura (aquilo que me ocorre), não saio nem vencedor, nem vencido: sou trágico.
(Dizem-me: esse gênero de amor não é viável. Mas como avaliar a viabilidade? Por que o que é viável é um Bem? Por que durar é melhor que inflamar?)
Certa manhã, devo escrever urgentemente uma carta “importante” – da qual depende o sucesso de certo empreendimento; em vez disso escrevo uma carta de amor – que não envio. Abandono alegremente tarefas desinteressantes, escrúpulos razoáveis, condutas reativas, impostas pelo mundo, em benefício de uma tarefa inútil, vinda de um Dever remarcável; o Dever amoroso. Faço discretamente coisas loucas; sou a única testemunha da minha loucura. O que o amor descobre em mim, é a energia. Tudo que faço tem um sentido (posso então viver, sem me queixar), mas esse sentido é uma finalidade intangível: é somente o sentido da minha força. As inflexões dolentes, culpadas, tristes, todo o relativo da minha vida cotidiana é revirado. Werther elogia sua própria tensão, que ele afirma diante das mediocridades de Albert. Nascido da literatura, só podendo falar através de seus códigos gastos, estou portanto só com minha força, condenado à minha própria filosofia.
(BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1981. p.16-17)
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Conto “Melhor do que arder” em A via crucis do corpo, Clarice Lispector
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