Casa do sol

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“Casa do Sol, morada de todos os teus olhos de cão. Uma calmaria de estradas. Labirintencontro. Hei de buscar-te. Dentro do Incomensurável. Minha muita vontade era de lá permanecer uns dias. Onde o tempo é o dela. Dos livros. Dos cães. Das formigas gigantes que guardam o grande portão sob o arco. Feito portal. Um místico efeito de sombras. O silêncio também é o dela. Permeado de uns espectros da sapiência. No bojo, um riso de Deus. Uma agonia suspensa. Conformada e calada depois de tantos esgares, sufocamentos, escreverhemorragias. Sentar-me lá. Debaixo da grande figueira.

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Pedras e cães cheirando pernas. Focinhos molhados. Pedacinhos de carícia muito antiga. E no cuidar de tudo, nos detalhes de cada fresta, de cada musgo das sendas, de cada galho seco, de cada sarna crescida nos bichos, de todo livro e sua lombada gasta, o amigo que chora loucamente. Os cheiros e pertences que percorrem um conhecido caminho dentro dele. Tão fiel quanto a matilha, quanto Aninha, a cadelinha preferida. Herdeiro Zeloso da Casa do Sol. Com ele beberia madrugada adentro. Como é a madrugada na Casa do Sol? Vira Casa da Lua? O que ela bebia? Quero disso beber e senti-la como tu a sentes. Depois dos tudos, neste fim-começo da jornada, encontro-a em ti. Nossa musa-porca-unicórnia-obscena Senhora D e seus sonhos lúcidos. E ele me diz que não conseguiu manter o quarto. Vai virar uma biblioteca.

“Eu não podia entrar aqui. Havia os ecos. Eu chorava loucamente. Ainda choro. Loucamente.” E os olhos boiando em águas de amor devoto. Sua irmã santa Profana, Senhora P. Nosso simulacro de enigmas. Ela lhe contou um sonho. Já montada na negra cavalinha, procurava a biblioteca. Pois lá, no reino onde habita o riso sob a superfície de gelo, os livros diriam tudo. Lá ela descobriria os clarões de todas as janelas. Como roteiro do fim, onde reside a verdade. Talvez uma foto de Deus. Talvez seu próprio rosto por detrás da carne. “Por isso decidi”, disse o amigo árvore, “o quarto será uma biblioteca. Tem que conservar, para os estudantes tentarem compreender. Há escritos, desenhos. Poemas nas últimas páginas.” São seus grandes homens e as mulheres santas. Paginados. E neles seus rabiscos de ouro. Sua terra pulsante. Suas perguntas indizíveis. “Ela estava tristinha. Difícil consolar uma alma tão pensante. Dizer o quê? A gente acaba. É a finitude. Ela me falava que já havia acabado. Não restava mais nada a fazer.” E aí penso, penso? Sinto. Que o amor aos dias era o que mais doía. Era o câncer no pensamento.

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Hilda, porque não me chamaste?” E a voz dela através dele, doce repetia. “Não queria te acordar. E sorria. Hilda, não precisas me sorrir, sou eu. Sei dos teus abismos.” Ele dizia, boiados olhos, “ela era muito frágil. O corpo sofria. Caiu duas vezes. Não voltava fácil da anestesia.” Onde ia quando? Buscava louca. Tempo que urgia. “E voltava ainda mais fraca. Encontraste, Hilda? Já não respondia. Mas mesmo frágil, era Rainha. Ficou serena. Resistiu. Não reclamava nem com os olhos”. Mas era por detrás deles que um sangue cansado desmaiava em lentos córregos. Na casa a preparação para o retorno da dama do sol. Pintura arejada. Luz e sombra. Uma colcha nova. Os homens amados na parede. Kafka perto do pai. Se parecem, não Mora? Mas não voltou. Não voltou a Hilda carne, carregando consigo a alma anciã. Ungida de tudo. Do aqui e do antes. Com sua fé de granito. Seu desiludido pranto. Sua constância na beleza absurda que estertorava em escritos. Poesia da feminina voz amante e o fluxo do escatológico, a merda e o fim dos tempos, onde pesado e inamovível, Deus, cavalgando um porco, gargalhava o eterno SGAR,  a Superfície de Gelo Ancorada no Riso.”

Luciana Tiscoski
Aeroporto de Campinas, 14/12/2007

 

O que amar, senão o enigma?

O que amar, senão o enigma?
O espaço
A nunca ser preenchido
por ser matéria de silêncio
e escuta?

O que jorrar, senão o sentido?
O que nos atravessa e nos destrói
E faz de nós
um vir a ser
Melhor?

O que questionar, senão o cogito?
Um pensar suprimido,
anestésico
fingido
Que abriga um suposto neutro universal
Masculino?

O que salvar, senão o perdido?
Aquele que a margem se posta
Jogando pro fundo do poço
Um todo
Que nos contém?

O que conter, senão o amor?
Que já não resolve o vazio
Nem a loucura
Nem a política
Nem o medo
De não ter
amor

E o que amar,
senão
O enigma?

ador

por que resistir

se tudo é dor?

por que permanecer e durar e arder e inflamar

tanto

se tudo é dor

ardor

adora

dor?

a dor resta sem o corpo.

é tão resistente

porque barata

traça

pulga.

arde e coça no couro

da alma.

O gozo da mulher que limpa

ontem, eu resolvi limpar a sujeira
a sujeira de todos aqueles
que em mim restaram

quis tirar o pó de um móvel que não é de madeira
não é de aço
não é de pedra
não é de nada
que costuma ser
um móvel

às vezes o móvel é a gente
a gente que fica
quando quer ir embora
a gente que não grita
“vai embora”
a gente que devia gritar mais
chorar mais
gozar mais

porque a gente até grita, chora e goza
mas comedidamente
afinal,
medida é uma coisa importante
para uma mulher
a medida para a mistura do bolo
a medida do sabão em pó na máquina
a medida do silêncio na cama
a medida do peso que a gente tem medo
de colocar nas coisas
porque peso
não é coisa de mulher

a gente tem muito medo
vocês não fazem a mínima ideia
do que é
ser
uma mulher

Lacan disse que a mulher não existe
e as psicanalistas francesas da época ficaram putas
porque na vida real
há que ser mulher
há que ser puta,
vadia,
vagabunda,
piranha,
caso você não queira
ser
a santa-mãe-dona-do-lar

e o que se faz quando se quer
mais?

hoje resolvi continuar limpando a sujeira
porque quando encrosta assim,
é preciso mais do que alguns anos
pra alvejar
é preciso mãos dispostas
de preferência,
mais do que duas
porque sozinha
eu ando bem
mas com todas vocês
eu ando melhor

 

Havia uma proposta de falar do mar?

Havia uma proposta de falar do mar

Alguém poderia gravar o mar e me mandar?

Porque no momento padeço de falta

De instrumentos

É preciso tudo dizer

E é por isso que

Alguém vai dizer

Ela escreve tudo o que vem

A cabeça

É só isso

Pretensiosa escreve

Escrevo de novo

Sentada na pedra

Quente

Iguana gelada

que a tudo se adere

E é colorido à minha volta

Tem todas as cores a minha volta

O mesmo prolixo uroboros

Espiral de cores estrangulando

Meu canto

E a vida tem um

Amargo sabor

Doce demais

Tem sabores muito mais infinitos

Que a morte

Era pra falar de mar

Eu preciso levar meu caderno

A praia

Mas hoje alguém falou escreveu pensou

postou publicou compartilhou curtiu amou

Pagu

Sobre o mar

Monótono

Outro alguém ontem falou escreveu pensou

enviou um projeto roteiro cinema imagem coragem

Criou um personagem

Que deseja pular sete ondas

Para curar seu desejo

Pulou seis apenas

Reteve a sétima no ventre

Uma onda presa