Atonal

Screenshot_2020-03-24 Concha Tattoo ( conchatattoo) • Fotos e vídeos do Instagram

(Sereia de cumuru. Davi Gardoni, 2018. Instagram: #conchatattoo)

A sereia adentra a barca
Vem de águas profundas
Perfura o casco
Penetra os porões

Sobre a madeira
Seca e sem brilho
Move a cauda
Move os lábios

Seu lamento
Enigmático
Espalha-se por corredores

A sereia crê
No abandono
E nos lamentos que ouve
Percebe eco
Fantasmagoria
De si

Em paralelo
Andares acima
Cada uma em sua clausura
As insensatas
Ouvem o lamento
Da sereia e veem
As mesmas miragens
Uma vez mais

A arca é muito habitada
Baias separam as filhas da lua
Mas suas almas vagueiam
Por todo o navio
Em combates de água e fogo

Cantam alto as filhas da lua
Cada uma em língua única
De onde tentam sair
Em uivo polifônico

Canta alto a sereia
E todo canto parece
Às filhas da lua
Um lamento de clausura

A sereia, contudo
É livre, e lamenta
Que lhe respondam
Em língua estrangeira
Os seus fantasmas

A sereia parece livre
Frequenta mares e terras
Navega com ou sem nau
Mas não escapa
De ouvir seu próprio canto
Que insiste em abismos

Cantiga de amiga

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sabe, amiga
eu também pensei um dia
que só os homens podiam
falar de Amor
que para uma mulher
o desejo de amar
era coisa romântica
e eu nunca fui romântica
detestava até mesmo beethoven
e lia na história da sua surdez
a dificuldade de ouvir
que eu mesma sentia às vezes
porque as palavras tinham arestas agudas
e feriam dentro
do que eu não sabia se eram os ouvidos
a garganta, a vagina, o coração, o útero

sabe, amiga
eu também pensei um dia
que só os homens podiam
falar de Amor
que na voz de uma mulher
qualquer história parecia aquela
da princesa raptada por um cavalo
precisando achar divino o sujeito
que esporeava o cavalo
porque afinal era a única maneira
de deixar a torre

sabe, amiga,
eu muitas vezes pensava
ter que me acostumar a viver na torre
para todo o sempre
eu que não desejava o príncipe
conviveria com o claustro e suas paredes
tingidas de cal
eu pálida freira
e as grades que eu amava
porque eram a entrada de ar e luz

sabe, amiga
cheguei a ensaiar também
montar eu mesma no cavalo
tornar-me aquela que desce o chicote
na cavalgadura com brutalidade
e foge e se exila na floresta
claustro mais verde e mais habitado
eu eremita
mas de novo eu ouvia a história da princesa
porque sempre aparecia ali uma bruxa
eu bruxa, fabricando venenos
para enfim matar a mocinha

sabe, amiga
também arrisquei jogar da janela
os cabelos todos em trança
até a beira da estrada
e receber cada cavaleiro andarilho sacerdote
barbeiro caixeiro-viajante cientista
deputado doutor boticário
até ter o mundo dentro de mim
mas o mundo em mim
não era espelho de mim no mundo
e o que restava era a dor
de infinitos natimortos
que sugavam as tetas da bela adormecida
até que ela acordasse aos gritos
pois não convinha à bela
gritar de Amor

sabe, amiga
por muito tempo pensei
que só os homens podiam falar de Amor
e achava intolerável
ouvir os homens falarem de amor
e ter que responder qualquer coisa
da ordem do romance
os romances que eu gostava
eram os da clarice lispector
e não dava pra ser a lóri
as bolas de ulisses me davam náusea

mas sabe, amiga
aconteceu um dia
de eu arriscar umas palavras
sobre o desejo
primeiro o desejo que eu gostava que ardesse
e se consumisse em uma duas três noites
e sempre que me ardia em desejo
ressurgia uma fênix ávida por outro alimento
que eu não sabia nomear

então aconteceu outra vez
de arriscar dizer eu te amo
pra um desejo que eu gostava que durasse
que já ia durando
eu ainda não sabia que o Amor era feito de brasa
uma brasa que se acendia com o vento
e podia queimar se não se cuidasse
uma brasa que quase se apagava
e era preciso passar noites inteiras soprando
o fogo cansa-se, amiga
e também se cansa quem porventura
precisa manter sozinha a brasa acesa
e deve ter acontecido daquela vez
o Amor feito cinza
encontrei algumas vezes o Amor
enquanto andava pelo mundo sem saber bem
o nome do que estava procurando.
mas os homens podiam falar de Amor
e eles sabiam bem o nome daquilo de que fugiam
eles diziam alto no primeiro encontro
palavras que eu não compreendia
para explicar que estavam fugindo do Amor
que não estavam fugindo de mim
que me queriam bem mas o Amor não queriam
e eu assistia aquilo sem compreender bem
porque ainda não sentia nada
sequer parecido com amor

sabe, amiga,
acho que os homens contam entre si
histórias terríveis sobre o Amor
histórias tão terríveis
como as histórias que eles costumam nos contar
sobre uma princesa que espera
e um pobre coitado que precisa correr mundo
pagar sete prendas
trabalhar sete anos
ficar provando que ama
enquanto cala o desejo
de ser a princesa da vez
e só ansiar receber passivo
a notícia de saber-se amado

sabe, amiga
eu vou escrever um poema de Amor
o poema começa com alguém que diz
eu te amo
mas eu acho que o poema não tem fim
porque o Amor é coisa que se derrama
como uma erva cobre chão e sobe no tronco das árvores
o Amor caminha assim, como uma planta
e como uma planta ele precisa de quem o habite
e pra habitar o Amor
é precisa alguma coragem
a persistência de quem lavra
são precisas as nossas palavras
dizendo os Amores
onde a gente deseja viver

cor de barro

amar é dar aquilo que não se tem
para alguém que não o quer
disse o psicanalista
por que será que são
as mulheres quem primeiro
sofrem com isso?

tá difícil falar de amor
é um esforço um grito uma voz que sai com força
os poetas os literatos intelectos todos homens de bem
aqueles que sempre disseram ter as melhores coisas a trazer sobre o amor
torraram nossa paciência 
dá pra acreditar em tanta merda que se fez
com a imagem desse amor
com cara de nada
pregada nas paredes
dos lares?

tá difícil falar de amor
esse amor-mãe incondicional
que é esse mesmo
que está aí
no imaginário da pátria
que põe em chamas
não em brasas de afeto
nossas terras

vocês, o que têm a dizer?
vocês que sabem
como tem sido
difícil
falar de amor?

eu sei, essa pergunta esse poema já nascem velhos
é o que disseram
nunca foi fácil
quanta coragem 
pra amar mesmo quando
mal se começou a conhecer a vida
era cedo, amor
de amar mesmo quando
se está fora do poema da palavra

agora é difícil
hoje
quando o amor é
o que há de mais necessário
parece que não
temos palavras

mas sabe
é que o amor
não é isso

Amar…a vileza da carne covarde

Estas unhas ciclônicas morrem

por rasgar

aquela pele tingida e sumarenta,

aquela.

Estas unhas são covardes

rabiscam um sentir sem nome

passam completas pelo arrepio da 

epiderme.

Duras, duram na morte

mínima das células.

Estas unhas guardam restos de tudo

que não se ousa dizer

guardam tabus, gotas de saliva

cacos de espelho-esfinge. 

Estas unhas, instrumentos

de trabalho, roem o oco

coçam em ferida secretam

cutícula.

Corta com os dentes enviesados

aquela pelezinha-espinho que 

dói na carne e não

sai do pensamento

Estas unhas de ciclone arranham o desejo

imutável, minúsculo

e covarde do 

enigma.

pérolas

image

Lygia Clark, 1968. Máscara abismo com tapa-olhos.

 

É com amor que desejo
lançar pérolas aos porcos
É amor
o que sinto pela sujeira
pela fome, pelo ruidoso protesto
dos porcos.

 

 

 

 

Amável Unicórnio,
um único ornamento
não deve pesar.

Mas as pérolas
esse plural vitalício
que se multiplica
com sal e tempo
suportar esse brilho plural
será peso demais.

Sensível Unicórnio,
perdoa-me se me desfaço
das pérolas.
Carregá-las
dói no lombo
e lombo é coisa
de porco
saborosa carne
de porco.

A carne de porco
é a que mais se parece
com a carne humana.

Um homem talvez encontre
uma pérola esquecida
quando vier limpar o chiqueiro.

Mas provavelmente a Porca
não enfeitará o rabo
torcido com uma pérola
a Porca
não comparará pérolas e dentes
a Porca mastigará as pérolas
ou nem mastigará
e se mastigar,
alcançará o oco.
As pérolas são ocas, sabe?
E se não mastigar,
se encherá de ocos, oquinhos,
e talvez vomite, a Porca.

Perdoa-me.
Se para fazer colares
seria preciso furar
cada
uma das pérolas
e não posso suportar
o barulho contínuo de
vazio vazando
por capilaridade em um fio
de ouro.

O que vaza do oco
é merda
e no íntimo
um grão de milho vale muito
mais
que oca pérola.

Essa a sapiência da Porca.

duas portas

há duas portas
uma quarto sala
outra sala pátio.
a primeira me protege
e também isola,
a segunda tem me olhado
e trouxe pesadelo:
alguém bate
vou abrir
quem bate não deixa eu abrir.
não há pessoa batendo.
eu continuo puxando
desta vez com uma corda,
pra não chegar muito perto.
puxo com força
quem bate continua
puxando a corda do outro lado.
a coisa está ali.
a porta não abre
nem fecha.

da minha cama
vejo essa porta
(pensei até em mudar a posição da cama
para parar de vê-la
e de ser vista)
ela está quase sempre aberta.

agora é tarde,
continuo com ela aberta
porque quero ouvir
os barulhos dos meus
amores que estão no pátio.
e decidi olhar para ela,
ainda sinto medo,
mas gosto e prefiro
ouvir todos os barulhos
dos meus amores
que estão no pátio.

lembrei do amigo
que falou de um livro
em que a porta
é o lugar da poesia.

jano

“a porta-voz,

a porta-bandeira,

a porta-passagem,

a travessia que te dá acesso à imensidão,

que te leva ao ponto firme

e rijo da duração

no meio dessa vertigem ininterrupta…”

 

hoje vou dormir com elas abertas
porque quero ouvir
os barulhos dos meus amores
que estão no pátio.
eles também me protegem

 

“(japão, capital:

um espelho d’água

limpa

guarde a porta da tua casa

para que o outro se lembre

ao entrar

de permanecer do teu lado

de fora)”

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Fotografia de “The long awaited” (2008), escultura de Patricia Piccinini, na exposição ComCiência, em Belo Horizonte (2016).

O que pode o amor em tempos pós românticos?

Hoje, porque me sinto mais livre do que sempre, resolvi escrever sobre amor. Mas não sob a perspectiva de um ideal de amor romântico, invasivo e devastador, falo de outra coisa. E falo pela fala de quem não tem falo. Do lugar da ausência e do excesso. De onde nos colocaram por tanto tempo. Pensar o amor em termos pós-românticos é como navegar no espaço, parece que falta o chão, o mar. Viver o amor em tempos pós-românticos é ainda mais estranho. Às vezes acho que estamos perdidos. Às vezes acho que estamos nos encontrando. Quase sempre acho que nós estamos nos encontrando e que eles estão perdidos. Mas há que se transpor o nós e eles, e tenho sérias dúvidas se estamos caminhando pra isso. Queremos ser iguais ou queremos ser diferentes? O tema é complexo.

A busca por liberdade talvez seja o que nos une na desconstrução do amor romântico. Mas liberdade é uma palavra polissêmica e ainda que seja um conceito, uma ideia, ela se realiza enquanto um sentimento, uma busca, um estado de espírito. Ser livre pode significar coisas diferentes para diferentes sujeitos, mas o sentimento de ser ou estar livre é desejado por todos e todas. Acho que a liberdade é como a felicidade: não é um lugar ou estado fixo, mas antes uma sensação, um desejo realizado, uma saciedade transitória.

Voltemos para o amor. Ultimamente, tenho ampliado minha ideia de amor. Na teoria, sempre soube que as várias formas de amor – amor materno, amor fraterno, amor sexo-afetivo, amor próprio – são diferentes lados do mesmo cubo mágico, mas como sou uma mulher numa sociedade patriarcal, aprendi a buscar um “grande amor”. Aprendi a cuidar do outro, a buscar um parceiro e entregar o que tenho de mais valioso nas mãos dele. Eu buscava essa entrega, essa fusão, essa experiência de me jogar de cabeça e de olhos fechados. E sempre me frustrei, por várias razões. Uma delas é que essa entrega não era recíproca, nunca foi. Os homens aprendem a amar as mulheres de uma forma bem diferente. Pra começar, fusão é uma palavra que não existe no dicionário amoroso deles. Que homem seria louco ao ponto de se fundir numa mulher? Isso não faz sentido pra eles. O homem aprende a se bastar. Aprende a manter sua liberdade em todos os tipos de relacionamentos, sejam eles sexo-afetivos ou não. Aprende a seguir seu caminho, haja o que houver. Porque sua masculinidade é boa e superior demais para se fundir em femininos obscuros. Porque seu poder de agência e de dominação precisa se impor. Afinal, alguém tem mandar nessa porra, né?

Os relacionamentos sexo-afetivos são terrenos de disputas, mesmo quando não aparentam ser. Eles seguem a lógica da competição e da dominação, própria da sociedade capitalista ocidental. É claro que há diferenças se considerarmos as questões regionais, nacionais, geracionais e os diferentes modelos de relações hetero e homoafetivas. Mas todos os relacionamentos estão inscritos nessa mesma sociedade, logo, todos sofrem a  inegável influência, em maior ou menor grau, do modo operandis patriarcal.

Mas parece que o momento é propício para desconstruções. As pautas feministas se impõe e a crescente projeção das mulheres nos espaços públicos e privados parece um caminho só de ida. A desconstrução da casa é tão ou mais difícil do que a desconstrução da rua e elas precisam andar juntas. A desconstrução de si se torna urgente e um convite à desconstrução do outro [pelo outro]. Destruir o outro é possível, desconstruí-lo, não. Só ele pode fazê-lo. E é por isso que o privado também é político, logo, público. É por isso que o amor também é político.

Desconstruir a ideia de amor romântico não é um processo fácil, ainda que urgente. Nem sempre é bonito – não tem que ser. Nem sempre é amoroso – às vezes, não pode ser. Nem sempre é prazeroso, embora muitas vezes seja, mas é sempre libertador, é sempre potente e é sempre feminista.

Nas sociedades contemporâneas, não existe mais espaço para UMA forma de ser mulher, UMA forma de ser homem e NENHUMA forma de ser qualquer outra coisa que se queira ser, ainda que forças conservadoras tentem nos convencer do contrário. As possibilidades são muitas, os desejos são muitos, os sujeitos são múltiplos.  A sede por mudança transborda. E se tem algo que segue constante é a busca pelo amor, mas o amor, assim como a liberdade, é polissêmico. É volátil,  pesado, corrente. É doce, amargo, ácido e adstringente. É encontro, aceno e despedida. Pode nos matar, pode nos salvar. E no meio do caminho, pode muito mais.

ziguezague

ela falou que certos enganos são necessários. não tive forças para discordar, dizer qualquer coisa seria comprovar o indispensável do equívoco. fui embora quase imediatamente, andei por muitas ruas, o olhar perdido e confuso, não sabia bem como levar a coisa estranha, o engano, a ingenuidade. me apaixonei de novo aos 75 anos, afirma Isabel Allende no jornal. um amigo avisa que respondeu minhas perguntas por e-mail, mas não todas. rio, gargalho, a vida já não me permite a ilusão das respostas. ele escreve que ainda é medo pra isso. medo não, * cedo. o corretor interfere. como sabe? um animal atravessa meu caminho correndo em ziguezague e quem o atropela sou eu. carregamos o acidente no corpo e sinto vergonha. sou violenta e agressiva como o vento forte demais daquela noite, as telhas no chão espatifadas. o pior é que todo mundo vê a casa descoberta mas só quem mora sente a água chovendo dentro, meses depois. e nem é de todo mal, o frio arrepia e lembra que a vida pulsa forte e incontrolável enquanto exige cuidado e proteção. gostei tanto de chegar sozinha no exato instante em que a lua vermelha despontava acima da linha do mar, de ter enfrentado o frio, a dor e certa dose de precaução para assistir suas mudanças de cor durante a subida que, hipnotizada, ainda tento adivinhar os desenhos que marcam a outra face.

único desejo

no rastro
do enigma

desejo

 

o voo baixo

batendo as asas

em edifícios velhos

ruínas gastas

com histórias sem contos

num curto espaço

de tempo

 

rasantes em para-raios

atraio descargas elétricas

atmosféricas

logo a colisão

nos vidros das janelas

 

porque uma das aberturas

apresentava dentro

uma luz tão acolhedora

por isso a escolha

 

o voo baixo

rastejante

numa terra sempre pouca

onde eu possa pousar

meu desejo

 

ave pesada de amor

tem dificuldade de orientação

nos voos altos

 

antes pousa

usa a força descendente

aprende a cavar

dorme no buraco

da terra quente

coruja sem bando

 

no rastro do desejo

 

enigma