passagem de temperatura

na duração mínima
pequeníssima
de um tropeço sentimental
no cheiro líquido do gozo
desborde

ali
se descobre
na brasa do gole
tardio
um vazio assombroso
eu penso
há quem more nesses segundos
pra onde podemos voltar?
esse tempo que dura escorre
pelas mãos
eu levo os dedos à boca
como você fez certa vez

acho que quase sinto um agora
diferente quente
como quando a gente fica com a barriga no sol
e dá uma agonia do pensamento dialético preciso
te dizer
tenho medo de estar presa

mas só quero dizer sim
a tudo que for mais simples
como a cena de você
voltando
sem jeito
com mais uma
promessa
de um café bem
passado

você não escorrega mas
sou surpreendida
obscena

não sei o que se moldura
no tempo desse quase retrato
estremeci

implacável

ela quase caiu da escada, disseram. devolvi com um sorriso falso, fraco, em resposta. ninguém sabe que fui eu quem tropeçou e rolou, escada abaixo do nível do mar. um calendário em meu corpo, acompanho a metamorfose nas manchas pretas, roxas, azuis, amarelas…. desenhos uniformes, totais, se diluindo em pontilhados, sombras cada vez mais tênues. debaixo da carne, os ossos. coração de galinha no espeto. quando olhei o primeiro degrau, foi uma vertigem que senti, tremor de terra, vento forte. o desequilíbrio e a queda permanente ensinam: meu umbigo está no centro. agora nós aqui reunidas, um arquipélago, todos os umbiguinhos. se o estômago ronca, canta seu solo que nos envergonha ouvir, teria sido melhor não esquecer das vísceras? ali onde se digere, os restos fermentam, algo se excreve pra lembrar que tanta pompa não nos poupa do antigo fato: além da testa, além da teta, o dedão do pé na beira do abismo dança.

ziguezague

ela falou que certos enganos são necessários. não tive forças para discordar, dizer qualquer coisa seria comprovar o indispensável do equívoco. fui embora quase imediatamente, andei por muitas ruas, o olhar perdido e confuso, não sabia bem como levar a coisa estranha, o engano, a ingenuidade. me apaixonei de novo aos 75 anos, afirma Isabel Allende no jornal. um amigo avisa que respondeu minhas perguntas por e-mail, mas não todas. rio, gargalho, a vida já não me permite a ilusão das respostas. ele escreve que ainda é medo pra isso. medo não, * cedo. o corretor interfere. como sabe? um animal atravessa meu caminho correndo em ziguezague e quem o atropela sou eu. carregamos o acidente no corpo e sinto vergonha. sou violenta e agressiva como o vento forte demais daquela noite, as telhas no chão espatifadas. o pior é que todo mundo vê a casa descoberta mas só quem mora sente a água chovendo dentro, meses depois. e nem é de todo mal, o frio arrepia e lembra que a vida pulsa forte e incontrolável enquanto exige cuidado e proteção. gostei tanto de chegar sozinha no exato instante em que a lua vermelha despontava acima da linha do mar, de ter enfrentado o frio, a dor e certa dose de precaução para assistir suas mudanças de cor durante a subida que, hipnotizada, ainda tento adivinhar os desenhos que marcam a outra face.

reverbera a pergunta
mulher
o que é
ser
mulher

leio em néon
no meu sonho colorido

Acesso restrito

a pergunta me segue
e o censor em vigília
esconde as tentativas
de resposta

a pergunta desdobra-se
para onde vão os trens?
para
“Tu não te moves de ti”

Acesso restrito

há perigo na esquina
e o sinal está fechado
para nós
que somos velhos

a pergunta sonha
censor em alerta

há uma chave que verte
sangue nas mãos
de uma criança velha

a criança grita
cava!
desenterre os ossos
recolha as palavras
ainda não comidas
pelos vermes do tempo
faça bom uso delas!
responda à pergunta!

caio num solavanco
de novo no corpo

não respondo

sorrio
agarrada ao milagre
de ser
mulher

único desejo

no rastro
do enigma

desejo

 

o voo baixo

batendo as asas

em edifícios velhos

ruínas gastas

com histórias sem contos

num curto espaço

de tempo

 

rasantes em para-raios

atraio descargas elétricas

atmosféricas

logo a colisão

nos vidros das janelas

 

porque uma das aberturas

apresentava dentro

uma luz tão acolhedora

por isso a escolha

 

o voo baixo

rastejante

numa terra sempre pouca

onde eu possa pousar

meu desejo

 

ave pesada de amor

tem dificuldade de orientação

nos voos altos

 

antes pousa

usa a força descendente

aprende a cavar

dorme no buraco

da terra quente

coruja sem bando

 

no rastro do desejo

 

enigma

 

Chama

 

a esfinge seja talvez questão de espelho

 

mas essa radical separação

de si

não será esquecer-se que o caco agudo

que nos cinde o mundo é artifício

barato

 

cifra

de banana:

alimento (1 bigo, 1 cacho, 10 pencas),

utensílio (1), curativo contra berrugas (3em1),

graxa (f(x)), teto (1), banheiro (10)

coisa ryca (1.171)

 

espetáculo

aliás, memória

 

os espelhos

nos banheiros

coisa obscena

flagrar

o outro Sendo

mesmo

 

o espelho talvez

questão de esfíncter

 

certa vez um japonez

(me pego na rima espontânea

crueza inventar assim o Próximo)

um menino certa vez

perguntou que faziam as mulheres

juntas

no banheiro

 

e qual textura tinham

nos dedos meus

peitos

de silicone da minha amiga

 

tessitura desconhecida

os peitos das amigas

 

semanas, entre tanto,

não se pode suportar

o reflexo das outras

no odor dos banheiros

 

faz escuro, então

eu caco

sem reflexão possível

na decifração contábil

e até o oco é ponta

lâmina sem lua

 

(japão, capital:

um espelho d’água

limpa

guarde a porta da tua casa

para que o outro se lembre

ao entrar

de permanecer do teu lado

de fora)

 

quebrei todos os espelhos da minha casa, Íbis

pode entrar, ô amiga

o Lua

está nós

as palavras às vez estão escura

prece, Thoth.

 

meus cacos

uma poça sangue

negro tanto

reflete

o oco penetrável

vúlnera que recuso de

cifrar

em 42 syntagmas des

culpas

 

o oco no caco

chama:

Lupa

alguém disse:

ninguém ama

senão a si

 

digo amo a carne:

comê-la

digo te amo:

comê-lo

 

enigma será questão de voragem:

comer e ser comida

– não me culpe a língua

ocupada no chulo –

é amar sem palavras

 

enigma: há gente

há vezes

rói as unhas

come cabelo experimenta

o sangue o sal do suor

desdobra-se e lambe o próprio

doce.

 

no final do uróboro a boca,

se come por trás

íntima Eco,

sai de si?

O que resta sem corpo?

Nada.

e me livro com a resposta

de enfrentar o abismo.

 

Nada.

Mas o abismo permanece lá

e mesmo sem me aproximar demais

eu sei.

 

Nada.

e súbito confio

que é possível chegar na borda

e não saltar.

 

Confio

porque uma amiga caiu

primeiro

e me senti tão acolhida

no fundo

rio

em ser a segunda.

 

Era assim:

os amigos sem corpo

e eu tendo que ser só palavra

e que palavra.

 

Fui silêncio

e um olho.

Dois.

 

Arrisquei emojis

gestos

sem peso

‎£ ‎£

vazias de mãos.

 

Rascunhei palavra

era outra

mas se lia o gesto

…dígito…

e restou um coração seco

ciano.

 

Mas uma amiga caiu

salto ornamental

ornitorrinco

clown

tão assim eu

rio.

 

A palavra era só essa:

click en el Cielo

e mira lo que hace.

 

Nada.

 

Palavra corpo.

Nada.

Cielo nada.

 

Rio.

Palavra corpo.

No las creo, pero que las hay.

Si no está mi amiga

en mi

cuerpo cuando río.

 

Pa lavra, cor po.

P                            o.

 

Somos mesmo resto.

O mesmo resto.

Resto.

Res.