amar é
água que toca
espuma que chega
convida
nada sem ter habilidade suficiente
você me diz
que não faz mal
isso não importa
você enche a boca e diz
é impossível levar um barco sem temporais
eu anoto tudo
amar é
água que toca
espuma que chega
convida
nada sem ter habilidade suficiente
você me diz
que não faz mal
isso não importa
você enche a boca e diz
é impossível levar um barco sem temporais
eu anoto tudo
na duração mínima
pequeníssima
de um tropeço sentimental
no cheiro líquido do gozo
desborde
ali
se descobre
na brasa do gole
tardio
um vazio assombroso
eu penso
há quem more nesses segundos
pra onde podemos voltar?
esse tempo que dura escorre
pelas mãos
eu levo os dedos à boca
como você fez certa vez
acho que quase sinto um agora
diferente quente
como quando a gente fica com a barriga no sol
e dá uma agonia do pensamento dialético preciso
te dizer
tenho medo de estar presa
mas só quero dizer sim
a tudo que for mais simples
como a cena de você
voltando
sem jeito
com mais uma
promessa
de um café bem
passado
você não escorrega mas
sou surpreendida
obscena
não sei o que se moldura
no tempo desse quase retrato
estremeci
ela quase caiu da escada, disseram. devolvi com um sorriso falso, fraco, em resposta. ninguém sabe que fui eu quem tropeçou e rolou, escada abaixo do nível do mar. um calendário em meu corpo, acompanho a metamorfose nas manchas pretas, roxas, azuis, amarelas…. desenhos uniformes, totais, se diluindo em pontilhados, sombras cada vez mais tênues. debaixo da carne, os ossos. coração de galinha no espeto. quando olhei o primeiro degrau, foi uma vertigem que senti, tremor de terra, vento forte. o desequilíbrio e a queda permanente ensinam: meu umbigo está no centro. agora nós aqui reunidas, um arquipélago, todos os umbiguinhos. se o estômago ronca, canta seu solo que nos envergonha ouvir, teria sido melhor não esquecer das vísceras? ali onde se digere, os restos fermentam, algo se excreve pra lembrar que tanta pompa não nos poupa do antigo fato: além da testa, além da teta, o dedão do pé na beira do abismo dança.
ela falou que certos enganos são necessários. não tive forças para discordar, dizer qualquer coisa seria comprovar o indispensável do equívoco. fui embora quase imediatamente, andei por muitas ruas, o olhar perdido e confuso, não sabia bem como levar a coisa estranha, o engano, a ingenuidade. me apaixonei de novo aos 75 anos, afirma Isabel Allende no jornal. um amigo avisa que respondeu minhas perguntas por e-mail, mas não todas. rio, gargalho, a vida já não me permite a ilusão das respostas. ele escreve que ainda é medo pra isso. medo não, * cedo. o corretor interfere. como sabe? um animal atravessa meu caminho correndo em ziguezague e quem o atropela sou eu. carregamos o acidente no corpo e sinto vergonha. sou violenta e agressiva como o vento forte demais daquela noite, as telhas no chão espatifadas. o pior é que todo mundo vê a casa descoberta mas só quem mora sente a água chovendo dentro, meses depois. e nem é de todo mal, o frio arrepia e lembra que a vida pulsa forte e incontrolável enquanto exige cuidado e proteção. gostei tanto de chegar sozinha no exato instante em que a lua vermelha despontava acima da linha do mar, de ter enfrentado o frio, a dor e certa dose de precaução para assistir suas mudanças de cor durante a subida que, hipnotizada, ainda tento adivinhar os desenhos que marcam a outra face.
reverbera a pergunta
mulher
o que é
ser
mulher
leio em néon
no meu sonho colorido
Acesso restrito
a pergunta me segue
e o censor em vigília
esconde as tentativas
de resposta
a pergunta desdobra-se
para onde vão os trens?
para
“Tu não te moves de ti”
Acesso restrito
há perigo na esquina
e o sinal está fechado
para nós
que somos velhos
a pergunta sonha
censor em alerta
há uma chave que verte
sangue nas mãos
de uma criança velha
a criança grita
cava!
desenterre os ossos
recolha as palavras
ainda não comidas
pelos vermes do tempo
faça bom uso delas!
responda à pergunta!
caio num solavanco
de novo no corpo
não respondo
sorrio
agarrada ao milagre
de ser
mulher
no rastro
do enigma
desejo
o voo baixo
batendo as asas
em edifícios velhos
ruínas gastas
com histórias sem contos
num curto espaço
de tempo
rasantes em para-raios
atraio descargas elétricas
atmosféricas
logo a colisão
nos vidros das janelas
porque uma das aberturas
apresentava dentro
uma luz tão acolhedora
por isso a escolha
o voo baixo
rastejante
numa terra sempre pouca
onde eu possa pousar
meu desejo
ave pesada de amor
tem dificuldade de orientação
nos voos altos
antes pousa
usa a força descendente
aprende a cavar
dorme no buraco
da terra quente
coruja sem bando
no rastro do desejo
enigma
a esfinge seja talvez questão de espelho
mas essa radical separação
de si
não será esquecer-se que o caco agudo
que nos cinde o mundo é artifício
barato
cifra
de banana:
alimento (1 bigo, 1 cacho, 10 pencas),
utensílio (1), curativo contra berrugas (3em1),
graxa (f(x)), teto (1), banheiro (10)
coisa ryca (1.171)
espetáculo
aliás, memória
há
os espelhos
nos banheiros
coisa obscena
flagrar
o outro Sendo
mesmo
o espelho talvez
questão de esfíncter
certa vez um japonez
(me pego na rima espontânea
crueza inventar assim o Próximo)
um menino certa vez
perguntou que faziam as mulheres
juntas
no banheiro
e qual textura tinham
nos dedos meus
peitos
de silicone da minha amiga
tessitura desconhecida
os peitos das amigas
semanas, entre tanto,
não se pode suportar
o reflexo das outras
no odor dos banheiros
faz escuro, então
eu caco
sem reflexão possível
na decifração contábil
e até o oco é ponta
lâmina sem lua
(japão, capital:
um espelho d’água
limpa
guarde a porta da tua casa
para que o outro se lembre
ao entrar
de permanecer do teu lado
de fora)
quebrei todos os espelhos da minha casa, Íbis
pode entrar, ô amiga
o Lua
está nós
as palavras às vez estão escura
prece, Thoth.
meus cacos
uma poça sangue
negro tanto
reflete
o oco penetrável
vúlnera que recuso de
cifrar
em 42 syntagmas des
culpas
o oco no caco
chama:
alguém disse:
ninguém ama
senão a si
digo amo a carne:
comê-la
digo te amo:
comê-lo
enigma será questão de voragem:
comer e ser comida
– não me culpe a língua
ocupada no chulo –
é amar sem palavras
enigma: há gente
há vezes
rói as unhas
come cabelo experimenta
o sangue o sal do suor
desdobra-se e lambe o próprio
doce.
no final do uróboro a boca,
se come por trás
íntima Eco,
sai de si?
Nada.
e me livro com a resposta
de enfrentar o abismo.
Nada.
Mas o abismo permanece lá
e mesmo sem me aproximar demais
eu sei.
Nada.
e súbito confio
que é possível chegar na borda
e não saltar.
Confio
porque uma amiga caiu
primeiro
e me senti tão acolhida
no fundo
rio
em ser a segunda.
Era assim:
os amigos sem corpo
e eu tendo que ser só palavra
e que palavra.
Fui silêncio
e um olho.
Dois.
Arrisquei emojis
gestos
sem peso
£ £
vazias de mãos.
Rascunhei palavra
era outra
mas se lia o gesto
…dígito…
e restou um coração seco
ciano.
Mas uma amiga caiu
salto ornamental
ornitorrinco
clown
tão assim eu
rio.
A palavra era só essa:
click en el Cielo
e mira lo que hace.
Nada.
Palavra corpo.
Nada.
Cielo nada.
Rio.
Palavra corpo.
No las creo, pero que las hay.
Si no está mi amiga
en mi
cuerpo cuando río.
Pa lavra, cor po.
P o.
Somos mesmo resto.
O mesmo resto.
Resto.
Res.