Entrelaçadas

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A cantiga da amiga me desperta
e me convida a ensaiar
de novo olhar aquela miragem
sempre outra
tantas e tantas vidas depois

Ouço a música
enquanto penso que todos os meus poemas
são de amor
mesmo o da revolta
não sei se é porque com eles se escreve
a sensação de exposição íntima
do peito que se rasga
da carne à mostra
ou pelas palavras
imagens
que visitam e povoam
os olhos, as palavras, as dores, os movimentos
de um corpo outro
teu

Na escrita há desejo
a relação com as teclas ou a caneta
o ímpeto de expurgar, devorar, desnudar, deixar à mostra
e depois ocultar
endereçar palavras e gestos
sutis
dizer como quem descuidadamente
entrega algo mais
e envolve na trama
delicada, vulgar
contemplo distante
ou apenas suspeito
teu olhar a se mover da esquerda pra direita
de cima para baixo
curioso, voraz
o coração ofegante
intrigado
uma pergunta persegue
– o que quer dizer?
letra lasciva luxúria
ela
quer
esse fogo crepita e estala
você fecha o livro num golpe
o sopro forte alimenta a chama

rua

um elogio
de que me recordo
foi o do professor C.,
ele disse que eu era
uma excelente contadora de histórias

outro
foi de F.,
que disse, certa tarde,
que eu estava parecendo
uma personagem de Fellini

Jano (de novo)
a Esfinge
a esquina

amuletos são jogados ao alto

não querer ser
prefiro não
a diferença

como outra língua

que se aprende
no corpo
sempre com esse cabelo desarrumado

e hoje especialmente
me sinto
Edward Mãos de Tesoura.

quem está ouvindo?

sabe ‘aquele poema’, Elisa?
hoje achei que ele é
sempre o poema de hoje

terraplanando

terraplanando

e eis que me cerco
de terra
terra Ana
terra Desterro
terra touro
terra cedro

e eis que na terra
me ponho a comer membrillos
vecinos
cordobeses

e me boto a colher vestígios
broto
abotôo
fecho caixas
organizo a casa

uma estranha sensação de chão
me assalta
me acerta
conserta

sinto muito
o concreto
o asfalto
o possível de existir
na permanência

se é verdade que tudo se transforma
é verdade também
que no espaço tempo
entre uma mudança e outra
há o que não muda
o que move
sem movimento

sinto-me movida
por tremores
de terra
de mãos
quentes
firmes
de assoalho verde
pélvico
poço

poço é terra
e água
fundo e gozo
abismo
espera
encontro.

I got your letter…

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Foto: Jorge Minella

Dear,

 

você me pergunta:

como vão as coisas?

escrevo como vão

as coisas:

 

de ar

são feitos meus sonhos

de novo, nada de novo debaixo do sol

de novo, nado, de novo debaixo da lua

agora

parto

agora mesmo, vou ficando tonta, vou perdendo

equilíbrio e sentido

 

 

maravilhoso escândalo: nasço!

com olhos fechados

procuro cegamente o peito

o leite grosso

 

de ar

que entra e sai

no pulmão-palavra

é feita

(às vezes sopro às vezes tranco a respiração até não aguentar mais daí respiro instintivamente chorando como quem respira pela primeira vez encho o oco do corpo de coro finjo que nasço nesse ato finjo que posso)

 

nessa rotina, ritual sagrado

escuto a ciranda que me cantas

sinto o embalo dos teus braços

canção de ninar, afago, contorno

não de todo retorno

ao útero

 

basta abrir os olhos

já forja o desafio da língua

as letras estrangeiras

e vice-versa.

sempre vice versa

de novo vício verso

vice verse

 

faz de conta que as letras fossem minhas

faz de conta que quando corto o cabelo

corto o cordão umbilical com a minha progenitora

 

sim, toda vez que cantas

o corpo dança

como quem pega uma lâmina e corta

se corta o próprio cabelo

na porta do pátio

 

 

uma porca no pátio

de pé com a mão

como quem prepara uma mala

se apronta pra viagem

não de todo retorno

à terra

 

homecoming

levar ou não levar

essa sujeita que guincha

com cascos sujos?

essa sujeira da língua

baba, resíduo de leite,

layers of dust, hair, skin

bactérias, pelos, ácaros?

 

(a voz da minha mãe me manda tirar o pó e varrer o chão – língua materna?)

 

lavar ou não lavar

essa sujeira que enche

a casa e o casco?

 

melhor a casca

melhor o cúmulo

perambular a poeira

como quem escreve uma carta

com o dedão do pé

 

perambular a poeira:

os contadores de histórias não imaginaram que a Bela Adormecida despertaria coberta por uma espessa camada de poeira?

eu contadora da história lembro que a bela adormecida acordou coberta de poeira.

e nesse dia recuperou no bolso do vestido um poema que tinha escrito há milhões milhões de anos atrás e dizia assim:

 

me chamaste

porca?

…”

 

as traças roeram o resto

eu contadora de história poderia inventar um novo fim

mas faz de conta que essa é uma história sem fim

que fala do retorno

não de todo

ao

a

r

Ciranda

Salve mulheres brasis

nesta abertura solene

venho

veio-me

manhã de domingo

poema sonhado.

 

Muitos poemas

de sonhos

passaram

por esta porta

muitos

poemas feitos de sonhos.

 

Mas esta é

primeira vez.

Primeira vez

sonhei

um poema.

Não

com

um poema

Sim

um poema.

 

Na porta do patio

(dei de assaltar futuros)

Na porta do patio

(esse verso era da Are)

Juju

bem

ditava

me

ditava

inteira um

poema.

 

 

Eu

Sonhada

Face

à tarefa:

memória

das palavras

escrita

das letras.

 

A poem

A letter

To my

Ara

Altares

Minh’alter

alma.

 

Poema

não estava

na minha

língua.

 

Sempre assim

poemas

Sonhadas

Sempre assim

poemas

não sonhadas:

Nunca

Na língua

Nunca

Na minha

Na boca

Nunca

Na nuca.

 

Sempre assim

A tarefa:

Memória

Repetir as palavras

Tantas

Tantas

Tantas

Até devirem

Letras

Soltas

Pura

Língua

Porca

Língua

Pedra

Língua

Perda

língua.

 

Não perdi esse poema.

Cumpro

Tarefas

Bem

Desveladamente

Cumpri.

 

Acordei zelosa

cuidados

segurar

O sonho

não

espantar

as fumaças sonho

Vigília

Desperto sonho

Memória

Semidesperta

Semissonhada

Cada palavra

Cada letra

Cada falsa

Memória

Caía

Pingos

Sobre papel.

 

Once upon a time

Começava assim a ciranda

A próxima palavra

Modifica a anterior

O passo para a direita

A roda para a esquerda

Tropel de pernas.

 

Once upon a time,

Vivi c’as amigas.

Da fumaça,

difusa,

a poem

a:

 

Ciranda

When the Godess first gave birth

to the human first creature

She made her stand

to try

what could she

by her own.

Then She saw her standing

and She saw her walking

and She asked Herself

why didn’t She give her wheels.

The creature looked so complete, though

that She decided not to change it

and as Mother put some Words

into her ears.

As the years went by
rolling

the ideas grew up

in her mind

she started inventing

wheels.

bikes, rollers, skates, wheelchairs

motorcicles, buses, cars

those move fast

but faster move

her ideas in her mind

Now she built

a slow boat

just to lie upon the sea

and floats

as unborn

naked memories

under the Godess’s

blessings

of the dark moon.