Cale-se: Poema de entranhas

Nesse 01 de abril a língua do irmão chicoteia minha pele
Devo calar sempre onde quer que seja, agora
não há mais lugar seguro
não tem graça.
O amor se transforma em fel
e borbulha de sapos que tenho de engolir
em mordaça que tenho que vestir.
Amor? Não há mais.
O outro, meu antagonista.
Afasta, por favor, afasta de mim
este cale-se

Ele, de tudo sabe
do que foi, do que é, até mesmo do futuro
que não há
não é machismo, nem ameaça
é conselho.

Cospe medo reproduzido
fala reproduzida
vivemos na era da reprodutibilidade técnica
sem aura
sem alma.
Afasta, eu peço, afasta de mim
este cale-se, irmã.

Estampidos de ódio estouram meus ouvidos
a força prende minhas mãos
gritos oficiais amarram meu corpo
o pelotão venda meus olhos
porretes em massa estupram meus orifícios,
arrancam minhas unhas
quebram meus ossos, um a um
mas não me matam.

Não, porque é crime e paradoxal
é impune, é libertadora a morte.
Afasta, eu suplico, afasta de mim
este cale-se, amigo.

 

foi golpe!


índia esquerdinha
que adora gay.
tu adoraria ter um sobrinho gay, né?!
riso dos outros.
jean wyllys.
laerte.
olha que coisa interessante
aí eu sou a jean wyllys.
deixa ela, a louquinha.
extremamente violento.
eu vou amparando
pairando
com amor em excesso.
com amor e excesso.
não sei.
mas é isso.
nesta instância
pública e privada.
discutir com meus professores
(com a polícia,
com todo tipo
de fascista)
em todas as instâncias.
se eu não conseguir
discutir com meu primo?
com quanto tu comparece?
materialmente falando.
passa um recibinho.
quer pagar uma aula do resultado?
tu te baba com meu amorzinho!
tô ali contigo
tô ali em todas
permanentemente.
pode me chamar de louca!
eles não tão
rindo de mim, mãe,
eles não tem mais argumento.
quando eles não conseguem mais,
eles tentam me desestabilizar.
eles não tão rindo de mim, filha,
eles atiraram em mim.
depende da nossa disposição.
tem mil coisas ao nosso redor
a vida é tão milagrosa
tão urgente.
tá lindo esse desenho, hein?!
esse cadáver
um morto esquisito.

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Falação-escrita-coletiva, 10 a 15 de março de 2018.

poema farrapo (ao Mano)

Rasgo, remendo

fiapo, trapo

poesia pobre

do pano velho.

Dependurada

reluz em todo seu

esplendor

de faixa

gasta

gaze consumida.

 

A vida cansada do trapo

veste o vento nervoso,

incorpora em gelo

o frio cadevérico

das horas.

 

A vida gasta do pano

despe aos rasgos

o muco, limpa a

baba, o cuspe,

as gotas de sangue.

 

A vida inútil do fiapo

suja à mesa o belo

prato, engasga a

tubagem.

 

Pênsil, o velho pano

em frágil poema

figura

aos restos limpa melhor

de remendo em remendo,

persiste.

“Tudo acontece ao mesmo tempo agora”

Penso em acidentes.

Quando olho para a direita

aquela Scania vem

vem trepidando o asfalto

quente atravessando a

miragem

estraçalha minha ideia

de existir.

Penso em acidentes.

São voos sobre barrancos

voltas e reviravoltas

vidros, ferros, postes

em poeira

se desvanecem

de repente.

De repente, acidente.

E a crueza do momento

agora não deixa

brechas na dúvida

de que ainda vivo

vivo e pulso

pulso, soluço, palpito.

poema para ira

Esta casa não é minha,

a vida é.

Esta condescendência não é minha,

a revolta é.

Esta pressa desnecessária para coisas supérfluas

não me pertence.

Estes modos não são para mim,

mas habitam meu monstro materno.

Encontrei ali a urgência de mudar.

 

Assim entendi, bem lá no fundo

o verdadeiro sentimento que guarda a palavra

respeito.

Dia 7 de setembro desrespeitei a pátria

desrespeitei meu lar.

Ignorem meu pedido de socorro.

Casa do sol

portao_casasol

“Casa do Sol, morada de todos os teus olhos de cão. Uma calmaria de estradas. Labirintencontro. Hei de buscar-te. Dentro do Incomensurável. Minha muita vontade era de lá permanecer uns dias. Onde o tempo é o dela. Dos livros. Dos cães. Das formigas gigantes que guardam o grande portão sob o arco. Feito portal. Um místico efeito de sombras. O silêncio também é o dela. Permeado de uns espectros da sapiência. No bojo, um riso de Deus. Uma agonia suspensa. Conformada e calada depois de tantos esgares, sufocamentos, escreverhemorragias. Sentar-me lá. Debaixo da grande figueira.

figueira2_casasol

Pedras e cães cheirando pernas. Focinhos molhados. Pedacinhos de carícia muito antiga. E no cuidar de tudo, nos detalhes de cada fresta, de cada musgo das sendas, de cada galho seco, de cada sarna crescida nos bichos, de todo livro e sua lombada gasta, o amigo que chora loucamente. Os cheiros e pertences que percorrem um conhecido caminho dentro dele. Tão fiel quanto a matilha, quanto Aninha, a cadelinha preferida. Herdeiro Zeloso da Casa do Sol. Com ele beberia madrugada adentro. Como é a madrugada na Casa do Sol? Vira Casa da Lua? O que ela bebia? Quero disso beber e senti-la como tu a sentes. Depois dos tudos, neste fim-começo da jornada, encontro-a em ti. Nossa musa-porca-unicórnia-obscena Senhora D e seus sonhos lúcidos. E ele me diz que não conseguiu manter o quarto. Vai virar uma biblioteca.

“Eu não podia entrar aqui. Havia os ecos. Eu chorava loucamente. Ainda choro. Loucamente.” E os olhos boiando em águas de amor devoto. Sua irmã santa Profana, Senhora P. Nosso simulacro de enigmas. Ela lhe contou um sonho. Já montada na negra cavalinha, procurava a biblioteca. Pois lá, no reino onde habita o riso sob a superfície de gelo, os livros diriam tudo. Lá ela descobriria os clarões de todas as janelas. Como roteiro do fim, onde reside a verdade. Talvez uma foto de Deus. Talvez seu próprio rosto por detrás da carne. “Por isso decidi”, disse o amigo árvore, “o quarto será uma biblioteca. Tem que conservar, para os estudantes tentarem compreender. Há escritos, desenhos. Poemas nas últimas páginas.” São seus grandes homens e as mulheres santas. Paginados. E neles seus rabiscos de ouro. Sua terra pulsante. Suas perguntas indizíveis. “Ela estava tristinha. Difícil consolar uma alma tão pensante. Dizer o quê? A gente acaba. É a finitude. Ela me falava que já havia acabado. Não restava mais nada a fazer.” E aí penso, penso? Sinto. Que o amor aos dias era o que mais doía. Era o câncer no pensamento.

porco_casasol

Hilda, porque não me chamaste?” E a voz dela através dele, doce repetia. “Não queria te acordar. E sorria. Hilda, não precisas me sorrir, sou eu. Sei dos teus abismos.” Ele dizia, boiados olhos, “ela era muito frágil. O corpo sofria. Caiu duas vezes. Não voltava fácil da anestesia.” Onde ia quando? Buscava louca. Tempo que urgia. “E voltava ainda mais fraca. Encontraste, Hilda? Já não respondia. Mas mesmo frágil, era Rainha. Ficou serena. Resistiu. Não reclamava nem com os olhos”. Mas era por detrás deles que um sangue cansado desmaiava em lentos córregos. Na casa a preparação para o retorno da dama do sol. Pintura arejada. Luz e sombra. Uma colcha nova. Os homens amados na parede. Kafka perto do pai. Se parecem, não Mora? Mas não voltou. Não voltou a Hilda carne, carregando consigo a alma anciã. Ungida de tudo. Do aqui e do antes. Com sua fé de granito. Seu desiludido pranto. Sua constância na beleza absurda que estertorava em escritos. Poesia da feminina voz amante e o fluxo do escatológico, a merda e o fim dos tempos, onde pesado e inamovível, Deus, cavalgando um porco, gargalhava o eterno SGAR,  a Superfície de Gelo Ancorada no Riso.”

Luciana Tiscoski
Aeroporto de Campinas, 14/12/2007

 

Primeiro amor

Para Caio F.

Hoje resolvi escrever sobre o dia em que te conheci. Ainda me lembro da tua mão pouco firme pegando na caneta que rabiscava teus livros de pessoas desconhecidas. Era dia de educação física na escola e fazia muito calor. Lembro de suar e de ver suor na tua testa. Eu devia ter onze ou doze anos. Conhecia muito pouco de poesia e menos ainda de putaria. Falo delas porque hoje sei que em tudo te representam, mas naquele dia não foi assim. O que bateu foi o desconhecido. Meu pai me buscou na escola e me levou pra tua última sessão de autógrafos. Ninguém sabia que seria a última, mas talvez tu soubesse. Lembro de ver um machucado na tua cabeça e perguntar pro meu pai o que era. Não lembro da resposta, mas conhecendo meu pai, acho que ele me contou tudo sobre ti naquele mesmo instante. Lembro que tu não sorriu pra mim, mas me olhou com inocência e eu te olhei com curiosidade. Alguns meses depois, tu partiu. Meu pai chorou nesse dia, eu não entendi bem por que, mas deu vontade de te conhecer melhor. Te li por inteiro alguns anos depois. Te desejei em Morangos mofados, mas só me apaixonei de verdade em Os Dragões não conhecem o paraíso. Quis te abraçar em O ovo apunhalado e chorei gotas de chumbo com tua biografia. Ainda te sinto por perto toda vez que escrevo sem pudor.

Unheimlich

“¡Póngase sereno – me dijo – y apunte bien!
¡Va a matar a un hombre!”

(Últimas palavras de Che Guevara
por seu verdugo, Mario Terán)

 

Zaragoza, 29 de julho de 2015.

 

Há dias tão bonitos e outros tão desesperadores, como este. Abro a gaveta e debaixo do caderno encontro essa folha rabiscada, onde dias atrás anotei um sonho bastante absurdo que havia acabado de ter. Despertei e tive a necessidade de que ele não me escapasse, porque havia sido um daqueles sonhos perturbadores ademais de absurdo. Suponho que não é todo dia que se sonha com Che Guevara. Então, com o tal sonho na ponta dos dedos, papel e lápis sacados da Gaveta do Diário Esquecido, com a pouca luz que entrava pelas frestas da persiana e ainda metade adormecida, relato o sonho que me sai assim, em verso e em espanhol:

 

Esta noche he soñado
que era testigo y cómplice
de la muerte de Che Guevara.
Porque iba a morir, deberíamos matarlo.
Preparamos la escopeta sobre un trípode
apuntando directamente al corazón
del Guevara moribundo y anciano
que yacía sobre un lecho
con doseles y volantes, como el de un rey.
Pero, a dos segundos del disparo
(y yo ya podía sentir la pólvora
humeante alcanzar su corazón)
Guevara vomitó sobre el pecho
y murió.
Te miré. ¡Le diste veneno!
¿Por qué? Me dijiste algo acerca del ruido…
Sabíamos que no lo fusilaríamos
como los canallas de nuestro tiempo.
Pero tú no eras tú y enseguida
pusiste pólvora en la escopeta y se la diste a nuestra niña
que empezó a disparar por los rincones mientras
tu te reías con regocijo y yo temía por ella y ninguno
de nosotros se acordaba ya de Che Guevara.
Dani Santi