mãe, a mãe trabalhou na roça?

mãe, a mãe trabalhou na roça?
a gente pintava o cabelo
eu nunca tinha feito
essa pergunta
não, na roça não

a gente pintava o cabelo
da mãe
quis saber o porquê
das lacunas
quis preenchê-las todas
de uma vez
penso nas coisas que herdei
da mãe
dentre elas essa fome

acho que a mãe
não percebeu isso
não vou conseguir dizer
desse abismo
na roça não
a mãe trabalhava
no mercadinho ali bem na curva da rua que vira pra casa da vó
lembra desse mercadinho?

não lembro mas pergunto
e depois?
fui morar com a tia dete
que era casada
tinha um colchão assim na sala pra mim
ela faz o gesto do colchão ela parecia ter
carinho ela disse
era legal
era melhor
do que morar com a vó
eu queria saber
e se saía a noite, se fazia alguma coisa
além de trabalhar
não fazia nada, só trabalhava
eu queria saber
por quê
ah quando mais nova a gente até ia na discoteca
todo domingo a vó dava um dinheirinho como se fosse 10 reais assim
e a gente ia, dançava

eu queria saber
do que a mãe gostava
se era bom ir na discoteca
ô se era! anos 80, né filha. a gente dançava bee gees, abba, essas coisa
dançava um monte

a mãe gostava de dançar

a gente pintava o cabelo
e os aniversários, mãe?
eu queria saber
se ela comemorava
não fazia festa, filha
eu queria saber
por quê
não fazia nada não tinha muita gente não tinha dinheiro

a mãe gostava de dançar

lembro
(não digo desse abismo)
da dor que ela contava
nas costas
que era chato trabalhar
de caixa
eu queria saber
quando foi que a mãe decidiu
que queria ser professora
a vó que queria que eu fosse 
e se ela gostava
mas eu não gostava muito

a mãe gostava de dançar

e essa foto aqui na moto, mãe?
continuo querendo preencher
as lacunas
é de quando eu era solteira
um amigo da mãe que tirou
ele me ensinava a andar de moto
a mãe não me diz
se ela gostava
de andar de moto

eu não disse
mas foi a mãe
a minha primeira referência
feminista
na época nem ela nem eu
sabíamos disso
hoje também
não digo
desse abismo

o rio mais caudaloso

o rio mais caudaloso do mundo é o amazonas
aqui, nas nossas terras
desperto de um sonho que não tive
porque é sempre o mar
isso poderia ser uma pergunta

acho que todo mundo carrega
um pouco que seja
de sal
no peito
e a lembrança do fazer muito
com o pouco
que se tem
pra deixar grosso o caldo
caudalosa a vida é melhor

a minha amiga me disse
pra fazer um poema
com essa palavra
seria preciso criar
uma história pra ela
nada melhor pra isso
do que um rio, certo?

mas o amazonas é imenso demais
e eu só conheço histórias
sobre o mar
inventar dá muito trabalho
as pesquisas me dizem
sonhar com rio
sonhar que está nadando confiante no rio
sonhar que está nadando confiante no rio e a água é cristalina
é sinal de que a vida tá dando certo
mas como pode funcionar essa explicação
quando não só
é intenso o fluxo de água
mas também
você vai nadar
ou ser levado
por uma loooonga extensão
afinal o amazonas
além de ser o mais caudaloso
é um dos rios mais extensos do mundo
acho que isso não cabe em um só sonho

as pesquisas me dizem
é importante se perguntar
como é esse rio que se apresenta?
no sonho é possível
enxergar suas margens?
qual é a intensidade de suas águas?
é um rio largo ou um riacho?
como o ser que sonha se sente nesse rio?
há obstáculos?

me parece que não vai adiantar
responder nenhuma dessas perguntas
a água não se pode agarrar
despertar no amazonas
é pra quem tem sal nos pulmões

de olhos abertos

(este é um poema-ensaio apresentado em conversação sobre arte e psicanálise na jornada “Tempos de sonhar, instantes de despertar”, da Escola Brasileira de Psicanálise em Florianópolis, outubro de 2019.)

eu queria fazer um poema
sobre a escuta
falar sobre escutar
desde sempre
uma contradição?

o que é preciso ouvir
pra se acordar?
enquanto estou falando
quem dorme?
quem desperta, não pra si
mas porque o alarme tocou
é hora de ir
pegar o ônibus
deixar pronto
o conforto
do caminho pros outros
acordarem?

tem casos em que dormir
e acordar
não passam de dormir
e acordar

então estamos em uma distopia?

perguntas clichês?
imagens clichês?
todos os dias vistas
histórias pra serem ouvidas
sobre as quais sequer
sonhamos

em que estágio do sono deixamos
todas aquelas que não somos
todas aquelas que não estão mais aqui
e as que estão
de olhos forçadamente abertos
pra que a gente durma em paz?
eu deveria aqui trazer fatos? alguns exemplos concretos do que estou querendo dizer?

como é que a gente vai pensar em despertar
quando o sonho for o único lugar
em que a invenção parece possível?

eu sei, são muitas perguntas
mas talvez seja a interrogação
algo que nos possa fazer estirar
o olhar
desapertando
a língua
que se joga
em instantes de um certo
despertar que sonha
se mantém carne
viva
muito real
porque pulsante

assim, isso não seria um poema
mas o verso
tentando
acordar?

o que me garante que
acordado
o verso
desperte?

eu gosto muito
de algo que a susana scramim escreveu
em “literaturas do presente: história e anacronismos dos textos”
sobre a poesia
contemporânea
ter abandonado
o que ela chama de
fazer arte
(poderíamos dizer deixado
de sonhar?)

ela fala isso pra discutir
algumas posturas da crítica literária
ela diz:

quando a crítica contemporânea acusa a arte e a poesia de produzirem formas “fraquinhas de negatividade”, aquilo que é cobrado nesse julgamento não são formas “fortes” da negatividade e sim a origem da forma não como geradora de mais e mais questionamentos, mas antes, tomada em seus mitos, como doadora de soluções apaziguadoras em sua sistematização.

ela tá se referindo aí
a um texto específico
da iumna maria simon e vinicius dantas sobre o poeta carlito azevedo
que têm uma postura
muito próxima à dos modernistas
que não conseguem incluir a si mesmos
no gesto crítico que colocam no mundo
em resumo
a poesia que essa crítica
muitas vezes considera “fraca” ou “repetitiva” ou “infrutífera”
na verdade
diz de uma incapacidade
dessa crítica
de olhar
de escutar
essa poesia
que estaria
de algum modo
devolvendo
esse olhar
como quem sinaliza:

acorde!

a susana scramim diz
ainda
sobre essa poesia:
mesmo abandonando a prática de um “fazer” artístico, a poesia contemporânea marca de modo bastante intenso seu “desejo” de produzir arte. Negando os princípios que organizam o pensamento e ações modernas que operam pela teoria e prática da conquista, da divisão e da dominação, busca evidenciar a distância da arte de seu mais precioso desejo. Quer seja, o de anular a relação dicotômica moderna entre arte e vida. Esse desejo se moveria por encenações da mitologia mesma da literatura. Encenações essas que colocam em evidência os limiares das formulações construídas com base em contradições. Deixa, com isso, de tratá-los como limes/fronteiras, e os expõe em carne viva, ou seja, como contrações – que são – não resolvidas. A escrita que resulta desse modo de compreender a si mesma apresenta-se como teatral, uma vez que já não representa nada, não está no lugar de nada, apenas é, sem se preocupar com elemento contraditório, seja ele o referente, seja ele o pensamento abstrato. Com uma escrita bastante marcada por um desejo de produzir experiências sensíveis e inteligíveis em meio a processos de formulação escrita, a poesia contemporânea responderia à exigência de sua tarefa com uma atitude que pode ser interpretada como uma negação às fronteiras de gênero e às concepções de seu próprio fazer artístico estabelecidos de antemão, ao mesmo tempo que propõe uma prática escrita cuja função é dar a ver lugares e paisagens criados a partir de cenas (re)tomadas de sua mitologia textual. Se estabeleceria nessa escrita uma relação entre voz (querer dizer) e linguagem (ser obrigado a dizer) que implica o enfrentamento de uma das formulações mais radicais da poesia moderna, a saber, reelaborar a relação entre a escrita da poesia – do verso – e a produção do pensamento que se mantenha ético

mas eu não vim aqui
pra falar de crítica literária
eu falei tudo isso pra dizer
que a poesia a arte
quando despertas do sono de uma fundação
passam a ser formas de contato
formas de vigilância das armadilhas do nosso tempo
um corte uma pausa uma insistência
uma coletiva abertura
que nos permita
como a luciana di leone falou
“colocar o dedo na ferida da nossa época”
para poder, a partir daí
abrir brecha
assim
o poema
nas suas palavras
passa a “ser menos uma obra fechada, ou ter uma identidade, uma ontologia, e ser mais algum tipo de relação, marcada pelo endereçamento, o ir ao encontro de um Outro, um encontro que implicaria o poder de afetar e ser afetado”

mas
a partir de qual perspectiva política nós sonhamos, olhamos, criamos e agimos?
pergunta a bell hooks em “olhares negros: raça e representação”

é sobre o despertar em busca de novas imagens
que a bell hooks vai escrever
um despertar que só se torna possível
se nos dermos conta de quem controla as imagens com as quais sonhamos
ela nos lembra
como quem diz:
despertem!
de que “da escravidão em diante, os supremacistas brancos reconheceram que controlar as imagens é central para a manutenção de qualquer sistema de dominação racial”
ela alerta
como quem diz:
acordem!
que consideremos a perspectiva a partir da qual olhamos, questionando de modo vigilante com quem nos identificamos, quais imagens amamos. Se nós, pessoas negras, aprendemos a apreciar imagens odiosas de nós mesmos, então que processo de olhar nos permitirá reagir à sedução das imagens que ameaçam desumanizar e colonizar? É evidente que esse é o jeito de ver que possibilita uma integridade existencial que consegue subverter o poder da imagem colonizadora. Apenas mudando coletivamente o modo como olhamos para nós mesmos e para o mundo é que podemos mudar como somos vistos. Neste processo, buscamos criar um mundo onde todos possam olhar para a negritude e para as pessoas negras com novos olhos.

para que essas imagens se reconstruam
a compreensão de que esse sonho deve ser
de todos
é essencial

mas a bell hooks
acrescenta
que se muitas das pessoas não negras que produzem imagens ou narrativas críticas a respeito da negritude e das pessoas negras não questionarem suas perspectivas, elas podem simplesmente recriar a perspectiva imperialista – o olhar que procura dominar, subjugar, colonizar.

os jogos de dominação
sempre têm seus recursos
pra nos manter
dormindo

há casos em que a única possibilidade de sonhar
é a de permanecer
em vigília

por isso é muito difícil fazer esse poema
e por isso eu queria que ele fosse sobre a escuta

é que preciso pausar
pensar
sonhar não se pode
pronunciar sem perigos
quando não nos perguntamos
sobre o que está no seu horizonte

parece que o esforço de despertar
será desproporcionalmente maior?
talvez seja
como remar contra a maré

o despertar do verso
então
é como uma atenção
à respiração
minha
e sua
para que continuemos
nadando

talvez encontremos
ilhas

eu só fico
impressionada com uma coisa:
diz a adelaide ivánova em “desobediência do estado civil”
tudo se ajeita a vida segue
com golpe ou sem golpe
com ou sem sete de setembro
jajá estaremos acostumadíssimos
que horror
já saber se a vida segue
sem você isso eu
não sei
mas hoje não vou protestar
vou dormir

a gente percebe que ela é irônica
mas que ela encena
justamente
a nossa capacidade
de continuar
mesmo desumanizados
ela diz de uma contradição
com a qual temos de conviver
para a qual temos
de despertar

expor essa contradição
no texto
é uma forma de não propor
soluções míticas
que não passariam de uma forma
ao fim
de enaltecer a poeta
para que voltemos
a dormir
sem que nos demos conta
de que é um sonho coletivo

talvez eu não tenha palavras
mas me lembrei
do que o Walter Benjamin falou
sobre os filmes do Mickey Mouse:
aqui aparece pela primeira vez que alguém pode ser roubado de seu próprio braço, sim, de seu próprio corpo. O percurso de um documento em uma repartição tem mais semelhança com um dos que Mickey Mouse percorre do que com o dos maratonistas. Nestes filmes a humanidade prepara-se para sobreviver à civilização. Mickey Mouse demonstra que a criatura ainda pode subsistir mesmo quando toda semelhança com o homem lhe foi retirada. Ele rompe com a hierarquia das criaturas concebida com fundamento no humano. Estes filmes desautorizam, da maneira mais radical, a experiência. Não é compensador em um tal mundo ter experiências.
Semelhança com os contos de fada. Nunca desde esses contos os fenômenos mais vitais e importantes foram vividos de forma tão não simbólica e sem atmosfera. O incomensurável contraste com Maeterlink e com Mary Wigman. Todos os filmes de Mickey Mouse têm como motivo sair para aprender o medo. Portanto, não a “mecanização”, não a “fórmula”, não um “mal-entendido” são a base do tremendo sucesso destes filmes, e sim o fato de que o público neles reconhece sua própria vida.”
“O cinema introduziu uma brecha na velha verdade de Heráclito segundo a qual o mundo dos homens acordados é comum, o dos que dormem é privado. E o fez menos pela descrição do mundo onírico que pela criação de personagens do sonho coletivo, como o camondongo Mickey, que hoje percorre o mundo inteiro. Se levarmos em conta as perigosas tensões que a tecnização, com todas as suas conseqüências, engendrou nas massas – tensões que em estágios críticos assumem um caráter psicótico -, perceberemos que essa mesma tecnização abriu a possibilidade de uma imunização contra tais psicoses de massa através de certos filmes, capazes de impedir, pelo desenvolvimento artificial de fantasias sadomasoquistas, seu amadurecimento natural e perigoso. A hilaridade coletiva representa a eclosão precoce e saudável dessa psicose de massa. A enorme quantidade de episódios grotescos atualmente consumidos no cinema constituem um índice impressionante dos perigos que ameaçam a humanidade, resultantes das repressões que a civilização traz consigo. Os filmes grotescos, dos Estados Unidos, e os filmes de Disney, produzem uma explosão terapêutica do inconsciente. Seu precursor foi o excêntrico. Nos novos espaços de liberdade abertos pelo filme, ele foi o primeiro a sentir-se em casa. E aqui que se situa Chaplin, como figura histórica.

estamos trabalhando
para dormir
em qual sonho coletivo?
com quais imagens estamos sonhando
sem saber
que impedimos
o despertar
do ser ao lado?
nenhuma resposta simples
pode nos fazer
acordar

talvez uma forma de escapar
nem sempre tão óbvia
seja uma abertura
às contrações
de que a susana scramim fala
e assim sonhar e despertar
não podem ser palavras soltas
a partir das quais podemos ampliar
a abstração
mas palavras-corpos
marcadas
pela história
pela vida
palavras com sangue nas veias

a gente lembra que tinha um tempo
(e talvez com esse tempo alguns
ainda sonhem)
em que a arte era entendida como a exaltação
da beleza
uma forma de sonhar
acordado

não dá
pra fazer poesia com isso

em uma entrevista
a psicanalista francesa anne ganivet
quando interrogada
sobre se a arte está ao lado do sonho
ou do despertar
diz que sempre esteve ao lado do corte
da surpresa do rechaço ou do escândalo
ela diz ainda que o que a impressiona é que
quando “a obra” emerge
o artista segue servindo-a
até se cansar
e se pergunta se
os artistas cujas aspirações não são mais a sublimação
encontraram uma linguagem própria
pra continuar cavando
o buraco
que é a linguagem
para que ele não se feche

pode ser que eu esteja sonhando
mas o que eu pensei foi que
hoje
há uma urgência
de uma espécie
de cavar-junto?

eu pergunto
com as vísceras
aqui expostas

pra mim
hoje
pensar fazer discutir seja o que for
isso que chamamos de poesia de poético de arte?
por favor, eu gostaria de não romantizar
não pode ser dissociado
de uma experiência coletiva
talvez a nossa história
não nos deixe outra alternativa
e tenhamos que assumir
a nossa tarefa

a experiência coletiva
não é um bloco monolítico
e somente dessa perspectiva
essa afirmação se desperta

mas eu não pensei nada disso sozinha
desperto e sonho
junto

talvez eu não tenha palavras
e eu gostaria de ter o cuidado
com os perigos
do enaltecimento
porque já sabemos
a que caminho isso nos leva

mas esse poema que eu não sei escrever
sobre a escuta
é sobre
o despertar de uma palavra que se quer
nessa
abertura
de um convívio
em que o contato
é contração
uma possibilidade de um
si em contradição
nós
e por isso uma abertura do olhar para aquilo que não se vê

eu tenho sonhado
nas últimas semanas
talvez isso não seja de interesse de ninguém
mas afinal eu vim
pra falar a partir disso
eu tenho sonhado
com situações de ameaça
das quais eu quase não escapo
e quando desperto
algo de mim permanece lá
preso

quando eu acordo
eu preciso beber água
enquanto descem os goles
macios
pela garganta
eu penso que
eu queria ter sonhado
com a versa

cor de barro

amar é dar aquilo que não se tem
para alguém que não o quer
disse o psicanalista
por que será que são
as mulheres quem primeiro
sofrem com isso?

tá difícil falar de amor
é um esforço um grito uma voz que sai com força
os poetas os literatos intelectos todos homens de bem
aqueles que sempre disseram ter as melhores coisas a trazer sobre o amor
torraram nossa paciência 
dá pra acreditar em tanta merda que se fez
com a imagem desse amor
com cara de nada
pregada nas paredes
dos lares?

tá difícil falar de amor
esse amor-mãe incondicional
que é esse mesmo
que está aí
no imaginário da pátria
que põe em chamas
não em brasas de afeto
nossas terras

vocês, o que têm a dizer?
vocês que sabem
como tem sido
difícil
falar de amor?

eu sei, essa pergunta esse poema já nascem velhos
é o que disseram
nunca foi fácil
quanta coragem 
pra amar mesmo quando
mal se começou a conhecer a vida
era cedo, amor
de amar mesmo quando
se está fora do poema da palavra

agora é difícil
hoje
quando o amor é
o que há de mais necessário
parece que não
temos palavras

mas sabe
é que o amor
não é isso

a revolta é querer dizer

a minha amiga disse
que roubaram nossas palavras
de quais palavras estamos falando
aqui?
a revolta talvez seja
palavra que se agita
aqui
quero dizer…
também não desejo confetes, sabe?
se a gente está falando
de revolta
de novo
quero tentar tirar
do conforto
os fascistinhas internos
como minha amiga disse
porque é sempre urgente
repetir
pra encontrar
as palavras
outro dia eu escrevi
sobre a angústia
de não conseguir ler as palavras num caderno molhado
fiquei tão triste, pensei, depois, agora, no museu
em tanta história queimada
pensei que a angústia
do que fazer com aquelas letras molhadas
era justamente esta: saber que ali
no caderno molhado, o que era acidente
no museu, era premeditado
fogo que tem alvo certo
que deixa a história
sem palavras
eu não quero roubar a palavra de ninguém
e acho importante dizer isso
porque a história que se diz
oficial
é feita do roubo das palavras
a revolta é a busca por elas

a luta pela palavra
eu quero tentar falar sobre isso
quantas palavras

sobre as chamas?
quem pode contar
das palavras
que são cinzas?
a palavra
passagem
a revolta
é ver que talvez você esteja passando
mais livre
do que a pessoa ao lado
e que há outra pessoa ao lado
ainda mais livre do que você e a primeira pessoa
juntas
e que todos estão falando
de coletivo
como se fosse uma palavra
sem ruído
a gente não conhece
a revolta do outro
a gente sente o furacão
no máximo
a gente sente o mar agitar
mas às vezes nem isso
como falar da passagem livre
quando a liberdade é pra quem dominou
as palavras
maiúsculas?
a revolta
é de quem?
a revolta é
da mulher ao lado
que derrama leite
a revolta é
sede
do leite que não vem
alguém falou que a gente já tinha
feito essa pergunta antes
que a gente já tinha falado
sobre isso
a revolta
o que é?
coletivo
o que é?
a gente já tinha falado sobre isso
antes
a gente já tinha falado sobre isso
antes?
coletivo
é de quem?
quais palavras
são coletivas?
marcaram na pele de uma mulher
o símbolo da suástica
e não há palavras
roubaram-nas
disseram que o símbolo
era budista
a revolta é ver a violência poder passar
invisível
mesmo marcada ali
na pele
a revolta é a luta
pela superfície da pele
pelo corpo
sim

a revolta é
palavra
que chega

sob as manchas

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me aconteceu de eu deixar a bolsa
de pano
ao lado de um isopor com bebidas
que vazava
e os poemas os livros o caderno
de dentro dela
se encharcaram de gelo
derretido

olhando para as folhas
tentando sobreviver
sob o sol
me falaram: por que você não faz
uma pergunta
sobre o registro?
pensei: sim! é claro!
passei semana matutando sobre a memória o passado o arquivo
em meio a leituras
que me falavam coisas muito bonitas que eu poderia citar
e pareceu tudo muito maravilhoso, mas não era bem isso, sei lá
havia dor
e pensei se eu gostaria apenas que isso fosse um poema leve
sobre estar apaixonada
mas isso não é um poema
sobre a beleza do vazio
é uma espécie de grito
sob as folhas do caderno dos livros contorcidas de água
que me fizeram pensar sobre os relatos
que eu não posso ler
aquém e além das manchas
relatos em pedaços
relatos de fatos que desconheço
relatos dos escombros
relatos que martelam embaixo do travesseiro
relatos que eu não sinto
e que têm tanto a dizer

não sei como ler
os relatos o caderno
não sei o que fazer
com as letras molhadas
não sei como passar
como atravessar os papeis
os buracos parecem rasos demais
profundos demais

pra além da vista
disparam gritam
nesses papeis
molhados
urgentes
vozes sobre o passar
hoje
por entre ou apesar
dos buracos
das manchas

irrompem vidas que interrogam
como ler essas palavras agora?

 

língua quebra ossos

a minha Musa antes de ser
a minha Musa avisou-me
cantaste sem saber
que cantar custa uma língua
agora vou-te cortar a língua
para aprenderes a cantar
a minha Musa é cruel
mas eu não conheço outra

Adília Lopes

vem cá
que hoje eu vou te falar
com uma língua raivosa

não me interessam tons brandos
só quando eu os quero
não me interessa convencer autoridades
eu faria e faço mais
coisas por minha vontade
do que há entre o céu e a terra
céu e terra são limites que desconheço
e domino bem

faço quando quero
minha santimônia
pejorativa
devotamente afetada

meu afeto
é excesso, você diz
sempre vai ser, para quem não sabe lidar
com o que sobra
lembra
que o que sobra
só sobra
nessa sua lógica
aqui fora tem muito
que você não entende

hoje eu não vim
para falar baixo
venho mesmo para quebrar ossos
ô abre alas!
tenho pouca paciência
para cerimônias
apenas para os carnavais
pasme!
e para a pessoalidade dos encontros
em que você não está

não correspondo à ternura
esperada da minha lábia
supostamente doce
supostamente delicada

nas entranhas
borbulham coisas que você não imagina
fervo e firo
onde você menos espera
sou mulher
das zonas que você não suporta

quebro ossos por qualquer lugar
por onde
eu passo

volátil

duro no tempo que arde
ardo sem medida
do tempo
que não dura eu vivo
de ardência
ar respiro me falta
espaço nas narinas derrama
ar logo por outras vias entra
segue (talvez tímido transforme
no ouvido)
pelo estômago engasga
improvável úmido
delírio nevoento anuviado voo
sem pouso permanente vapor
se vai na temperatura ambiente
se derrete nas curvas o ponto
de vista é outro
gira facilmente se enrola
nos caules segura
nos espinhos pinga gota
(diz-se volátil de animal
que voa) eu nunca
voo sonho me enrolo
perco a parada os poemas caio
dou voltas reviro cavo saio com a fuça cheia
de terra deixo
cair os vestígios são muitos
cato tudo na bolsa grande
da minha barriga repetidas vezes
no mesmo buraco insisto as vísceras
roncam falam falam falam digo
ao contrário tudo
no instante seguinte
agora arde dura
no tempo da ardência
te convido
pra brincar de vir
ar

interferência

voltou o caminho como quem quer rebobinar a fita
para ver se algo passou
despercebido não visto
pensou que talvez devesse começar dizendo que enxergava mal
sempre teve a sensação de cegueira
aquela sensação de que alguma coisa está
sempre escapando
aquele sonho naquela rua escura só para você
que mesmo de olhos bem abertos não podia
enxergar nada

você também sente
que ao se mover
para fazer qualquer coisa tende
a mudar de direção
e acabar fazendo outra?
em quase todo momento
a mesma pergunta embora o tom
sofresse ligeiras alterações
de vez em quando preciso olhar
para o céu para descansar
as vistas
disse com uma ênfase que a si mesma surpreendeu
desejo poder sentir mais do que vejo
para além 
das previsões
tocar o chão
os limites
são muito reais
e não mais interessa
se é possível chegar às bordas
tudo bem
ver coisa onde não tem
continua
sendo vista de novo
significando sem parar
outra coisa
como quando você muda de direção
sem perceber

talvez o mais difícil seja
olhar
para este lugar
aqui
o que há aqui que eu não vejo?
como olhar para fora sem
se sentir desmembrado?
alguém já perguntou
de que forma manter vivas as diferenças?
agora o que eu faço é tentar
manter viva a diferença
atravessada
no olho
multiplicada pelos cacos
do espelho
interferida

melodia

tenhoquebrado

as palavras desejam
não se combinam harmoniosamente
aqui penso em qualquer composição
o arranjo não soa bem
faz ruído som bruto monstro
exclamo em seguida vem a pergunta
gesto de se dirigir se interroga dança
o corpo da palavra dita em voz alta
falta por extensão de sentido
sentido figurado coisa imaginada que se
dá como verdadeira invencionice fantasia
sensibilidade e irritação a pior maneira de lidar
com esta influência mas é a que você mais provavelmente
vai adotar é a de identificar com seu próprio ego tudo
que pensa e faz, isso a fará agir como se sua própria vida
estivesse ameaçada, o que certamente não é o caso
se tiver de brigar por suas convicções, este trânsito pode ser o gatilho
mas não crie bicho-de-sete-cabeças
onde não existem
súbita e sentada na cadeira esqueço
o drama da melodia
me ocorre na cozinha penso
na cena da tarde na repetição
no morango no chão com leite condensado
a xícara partida ao meio as separações
como o copo quebrado daquela vez
parece que todas essas histórias se conectam
mas não sei em qual ponto
esqueço
o que pensei quando fui ao banheiro e tive uma
ideia genial ponho um som
penso em todas vocês que invento e me chamam por muitos
nomes anoto: foi um dia de transborde sentimentalismo
na geladeira um bilhete: devo pedir água
amanhã toco um violão só pra mim você
nem sabe que fui e voltei do mundo no tempo
de uma quadra com você pareço de aço
de canto meu olho lacrimeja você
nem vê acho que de longe me assisto
pergunto terá ossatura ossícono pequeno
osso ossinho cada uma das peças
calcárias anoto: ossar roçar cortar gastar
em função de atrito fazer fricção deslizar
com brandura resvalar(-se) arrastar(-se) pelo chão
rentear carpir carpinteira
do universo inteiro perita em extrair faísca da brita 
eufórica coloco outra música dessa vez canto alto
as palavras que perco tenho algumas pra você
anoto: amanhã te conto