perita em extrair faísca da brita

perita em extrair faísca da brita

leite de pedra

lasca da letra

casca da história

casco da história do naufrágio

e fazer com os gravetos

uma picada

cacofônica

piada

escrevo endereçando à senhora P, pavoa de passagem e à toda  multiviva zoosfera

incluindo a sereia que serena canta, nos silêncios dos ultrassônicos prantos, um canto que meu ouvido semi-humano não escuta

 

(o diabo de escrever sola endereçando à tela é a imagem que retorna instantânea

uma capiau cósmica insiste em atravessar o meu casco-pele)

 

como ia dizendo, endereço à carta farta de recHeio

pra dizer algo muito objetivo e específico:

risca a pedra

risco a perda

 

cuidado com o voo – diz o capitão cabeçudo

cuidado com o ir – ouve meu ouvido entupido

quem se lança ao voo pode perder a cabeça

mas já dizia minha mãe, quem não arrisca  não petisca

cria arreio, espera a morte

quem não lança o dado, lança o dardo

crê no alvo, se dói com o erro.

logo o erro

condição do lance!

Erro, logro, existo.

 

Bem aí recordo o ciclo

remonto o óvulo, o pólen, a semente

não só o começo, o fim, também, sobretudo, o meio

cada poro o vir a ser ovo

diferentemesmo

o pólen contém virtualmente a floresta

desse virtualmente contido somos

como os bichos

máquinas do mundo

devolvemos olhares enigmáticos

como os bichos

possíveis

Versões possíveis de tanta coisa

que repete

que repele

que recolhe

 

ser lucíola, borboleta,  larva, leoa,loba,

ser-casulo, ser-casa, ser-casada, ser-fêmea

ser-sem-teto, ser-só, ser-zelosa ou engenheira

ser uma metáfora, várias.

poder vir a ser uma e outra

entre o risco e a ruína não há distância

um par de letras

um sujeito sem complemento fixo

intransitiva sentença

predicar

uma mulher

não é

uma versão possível

[pela circunavegação bissexta,

outra vez também eu tonta tento responder todo dia um pouco menos ridícula, um tanto mais esdrúxula falo sem falta com vocês.]

Eu sou aquela que contém
também
pronta a atacar sem dó
defendo os muros que escolhi erguer
o esforço diário de não baixar a guarda
de não levantar a saia
sempre
sentir o ar passando
pelas pernas
o prazer

eu sou aquela que acolhe
que se abre
e dá
e casa
álibi
com os braços, seguro, apoio sobre as ancas
encaixado na curva da cintura o projeto
da casa o projeto
da vida
horas e horas e horas empilhando uma peça sobre a outra:
a imagem sonhada
cria
lugar precioso que
habito, e
desmorono também

eu sou aquela que desliza
que espera até ter certeza
e recua sem pestanejar
vento que antecede a
tempestade o sangue
que não
vem

eu sou aquela que lê
que coleta os sinais
desvenda
e finge não ouvir,
que forja o não saber
nada
se irrita
rouba e abala
extermina as chances da diferença em nome da
adequação segura
Morre.
Mato.
Cria.
Parte.

Eu sou aquela que nutre
que retira as comidas estragadas da geladeira
as cascas soltas e insistentes da cebola se espalhando
decide desorganiza o alimento
as especiarias todas
as poções
que ele busca no portão
a pitada
bálsamo
veneno para o descanso
a ignorância

sou a que escreve cartas
que não termina
a cabeça dói
o corpo quente
o vizinho cortando a grama o dia inteiro esse barulho de máquina
a praia ao lado
eu recuo
ressaca
braba
outra vez também
acalmaria

Uma história cíclica 

Um animal parte em mim e remonta ciclos
Ciclos em tempo
Invento
Entendo que o vento nem sempre é templo
E a bolha nem sempre é roxa
Não cai de madura porque morre verde
E conta uma história que todas conhecem
Conto pra mim uma nova história
Traço ela em horizonte fértil
Trazendo as cores de hoje
Visualizo um ponto cego no caminho
Que não tem medo do escuro
Corro ao ponto em tempo
Olho para trás
E vejo o mundo.

moro num lugar de difícil acesso

com certo medo de ser ridícula, mas não o suficiente certa de ser ridícula para ter medo

envio meu voo baixo de mulher parda, baixa, deslumbrada, 44 anos, mãe,
sem falo, mas que fala verborrágica hemorrágica,
sem falo mas com seio bom seio mau
envio meu objeto interno em voos fora
Venus of Willendorf carries her cave with her.

Moro num lugar de difícil acesso. Não se trata de fugir. O que dificulta os acessos? Escarpas íngremes… isso me vem à mente, reprodutora de clichês, as tentações da língua, língua Mefistófeles, mefistofelínguas, de novo a tentação, a vaidade, a vadiagem, a viagem. Cantos se atravessam e digladiam com sons, muitos sons me chegam dessa mata desvirginada, orquestra perene de bichos, lembrando-me sempre, tecendo o tempo, de novo o clichê, mas é que olho pra teias de aranhas em todos os cantos e passagens. E das passagens, como me chegam essas imagens se moro num lugar de tão difícil acesso? Lá da editora disseram ontem, os cínicos, mais tecnologicamente adaptados ao mundo que os cães, disseram pois, que meus textos são muito acadêmicos, tem uma pegada prepotente e prolixa, não, isso eles não disseram, isso é meu, prepotente e prolixo. Sei que esse não é um espaço terapêutico, deusmelivre de fazer uso da linguagem e da literatura para auto analisar, auto alisar, masturbar, não, longe de mim. Deusmelivre dos cínicos de agora, do agora, sem agora da recognoscibilidade, eu alertei desde sempre da vaidade, da prepotência, do uso indevido da linguagem, agora informe-se se quiser saber algo mais do agora da recognoscibilidade, há o oráculo da modernidade, há muitas ferramentas disponíveis para sua informação. Informe-se. Para menção honrosa a minha muy distinta e obscena porca senhora D, Informe-se. Logo cansarei de pavonear-me e então o leitor terá acesso à área de broca, escondida por detrás dessas minhas tristes penas desbotadas de pavão caído. Penas arrancadas pela violência desajeitada do último voo. Pavão voa baixo, ainda mais quando gordo, velho e cansado de lutas. Logo poderão os leitores dissecar o pavão e revirar suas vísceras intoxicadas, sua bílis negra, suas iras. Todos os seus pecados. E talvez ali me encontre, no meio dessa lama de órgãos, como um homúnculo, minúsculo, primitivo, mas muito resistente, como as baratas. Comprometo-me desde agora que a aventura será provida das mais cruas baixezas, há misérias e sujeiras pra todos os gostos. Mas afinal, não é tudo só desencanto, o tédio seria fulminante se tudo fosse de desprazeres. Há momentos agoras de prazeres intensos, tão suaves, tão ricos, tão repletos de suavidades, riquezas, as palavras faltam pra narrar as alturas, mais fácil falar das vísceras. As belas palavras estão gastas, rotas, ignotas. Há o amor, ah… o amor… Águas, muitas, as águas são tão generosas com meu corpo! Gosto de todas as carícias, as carícias ternas e purificadoras das cachoeiras e quase todas as águas doces, algumas mais tépidas e mais libidinosas, veredas, gosto das piscinas, sim, de preferência as de cor azul anil, muy raras, que lembram o Mediterrâneo. Sim, sobretudo o mar, e ondas, bravuras, lonjuras, o mar e seu sal, seu sol, minha reza.

Ah sim, o editor, revisor, supervisor sei lá o quê, escreveu também na mensagem formal: cuidado com os voos. Claro, um pavão velho, gordo e cansado não deve se arriscar a voos pensando ser uma ave de rapina, mais parece um unicórnio pegasus desajeitado defecando ideias obsoletas, em voos baixos por cima de vossas nossas cabeças, poesia, poesia e matemática, as evidências sem exatidão, as vaidades…

Caro candidato a professor poeta qualquer coisa de escritor qualquer coisa de escrever, falar, cantar, fazer uso da palavra, fazer uso, palavrear, pavonear, meu caro, guarde sua cara tentativa, guarde sua cara e sua tentativa, estávamos buscando alguém mais realista.

Il est de temps en temps nécessaire de rappeler des vérités premières, et c’est pour cela que je pense que vous m’excuserez du ton peut-être un peu poussé que j’ai donné à cette digression.
Voyons maintenant ce qu’il en est précisément de cette zone de l’objet où s’instaure cette ambigüité. Quelle est la fonction comme telle du phallus? Déjà, elle ne peut pas ne pas vous apparaître comme singulièrement amorcée par ce que je viens de vous dire concernant le mauvais objet interne.

Lacan
L’ou bien… ou bien… de l’objet
In : Le désir e son interprétation

uma mulher que é

 

A escrita à tela devolve a imagem pele

Escrever na tela, arriscar a pele, esse é o convite da rodada!

 

 

my world

 what is a woman?

a womb?

no.

a VVord.

 

Hativism

você acredita em bem e mal.

essas coisas não existem.

eu acredito em amor.

te odeio.

 

O que é uma mulher?

Em teoria, estamos relativamente acostumadas a ler e a lançar ao mundo uma compreensão a partir de – pelo menos – duas posições. Essas posições recebem vários nomes. Essas posições dizem respeito ao modo como se lida com a identidade, com a imagem, com o significante.

A primeira posição, também compreendida pela lógica da exclusão, é correspondente à ideia do apolíneo nietzschiano, traduzida na equação isso ou aquilo, diz de um aspecto racional da identificação. É como se o significante tivesse um único sentido, como se a matemática se resumisse à lógica aristotélica dos princípios de identidade e da contradição. Ou é ou não é. De alguma maneira, assumir essa posição nos possibilita crer na comunicação, porque identificamos a coisa, as coisas, nós mesmas, existimos na linguagem. Eu sou Maiara.

Por outro lado, a lógica da inclusão, portanto aquela que incorpora também o dionisíaco ao apolínio (a “lógica” da tragédia), é um modo de pensar aditivo: isso e aquilo. Essa lógica, ao menos na teoria, parece trazer à tona o além da razão. O significante, bem  como a identidade, assume tantos sentidos quanto possíveis, não só a literatura, também a vida do ser falante tornam-se um jogo de possibilidades infinitas. A matemática subjacente a essa posição talvez seja o paradoxo de Russel, o paradoxo de modo geral, é e não é. Essa posição, muito comumente atrelada ao caos, ao não sentido, ao fora, à música, ao corpo, não existe sem a outra, evidentemente, mas é uma espécie de trazer à vida, a lembrança daquilo que fazemos questão de esquecer: as generalizações, a totalidade, o todo não existem, são imaginados. Apesar de dizermos eu, e de sermos capazes de predicar esse eu, isto é, de termos uma identidade, há sempre algo que escapa.

Durante os movimentos estudantis da década de 60 na Europa, que culminam no maio de 68 na França, no qual se pautavam – entre outras coisas – a igualdade para a mulher  – Lacan, que estava pensando na teoria psicanalítica e também nos acontecimentos daquele momento, propõe o que ficou conhecido como “fórmulas da sexuação”. É um desenho enigmático que em última instância faz uso da lógica formal para falar, na minha leitura, das duas posições que mencionei anteriormente. O desenho é enigmático porque o equívoco e o mal-entendido sempre foram o horizonte de Lacan. O desenho me agrada não tanto pela matemática contida nele, mas pelo nome que ele dá as duas partes. Ao lado esquerdo da fórmula, Lacan chama Homem (também conhecido como posição masculina), ao lado direito, chama Mulher (também conhecida como posição feminina):

fórmula sexuação.JPG

(Fonte da imagem e texto das fórmulas da sexuação: http://blog-psique.blogspot.com/2012_05_01_archive.html)

A mulher e o homem aí não dizem respeito ao sexo, tampouco ao gênero. São duas palavras que fazem referência a duas posições. A palavra-posição vem acompanhada de frases extremamente provocativas que são marcas no ensino do Lacan, entre elas, “A mulher não existe” ou “A relação sexual não existe.” Ele poderia ter escolhido afirmar o homem (todo/não castrado) não existe, não poderia? Essa foi a saída dos intelectuais franceses à época que tentavam desconstruir toda sorte de padrão, de universal, afirmando a sua inexistência. Lacan, atento às inversões que permanecem na mesma lógica decorrentes dessas reivindicações, opta por tomar o feminino, opta por ir além das possíveis inversões.

Ao trazer a posição feminina, mulher, como uma posição, me parece, Lacan percebe uma questão que poderia ser colocada da seguinte maneira: “Por que o Outro barrado mulher condensa o mistério da feminilidade da qual falavam os poetas e filósofos muito antes de Freud e dos psicanalistas?”. Stella Jimenez cria uma hipótese: “Ela representa a falta do significante no universo da linguagem.” (JIMENEZ, 2014, p.119) Quer dizer, não é à toa que a mulher identificada estruturalmente com esse lugar em falta tem um lugar privilegiado na literatura. Ora, Lacan aproveita-se desse lugar tomado como marginal, conceituado na negação (não tem o falo), para reivindicá-lo. Assim, o lugar da mulher, na interpretação lacaniana, não passaria de marginal para central, nem de excluído para universal, o lugar da mulher, assim como das culturas de margem, seria o entre-lugar no qual ao invés de focar naquilo que não tem igual ao centro – o igual o falo (e aqui o falo é a palavra que tem um sentido inteiro, completo, todo) – foca naquilo que não tem em relação ao centro – a diferença. A posição feminina é em alguma medida a posição que incorpora o sentido, mas não deixa apagar a diferença, nem crê contundentemente nas generalizações, totalizações, pois sabe não fazer parte de toda dessa categoria abstrata universal que não existe. A posição feminina não é faluda, é falha, portanto criativa, também ética.

Toda essa teorização não me soa feminina, aqui, agora, quem fala a vocês é também um homem.

o con-vida

Mulheres da vida, da minha vida

hoje acordei me sentindo ridícula, fui logo arquitetando um modo de rir.
Envio esse vídeo que também é fruto da articulação com Ana e Elisa, um desejo de encontro que aqui se materializa na forma de pergunta-resposta.
Nem fogo, nem cinzas, uma brasa que alimente direta ou indiretamente o abrasabarca.

Envio em breve minha primeira tentativa de resposta. Minha sugestão é que encerremos o ciclo no fim de março. Abril abriria-se outra rodada, se for o caso. Ainda que a palavra mulher seja potente o suficiente para um projeto de anos, de vida, é interessante colocar outras palavras na roda. Outras palavras não deixarão de funcionar como metáforas de mulher, acho.

Um beijo,
Iara