a mulher do natureba da pequeno príncipe

a mulher do natureba da pequeno príncipe dizia, outro dia, sábado, cada vez que passava um produto, um chá, umas ervas, uma farinha de arroz, “isso é relaxante”, “isso traz a calma”, “isso vai fazer você, moça, dormir melhor”. por que, eu me perguntava, por que esse afã pela vida sedada. todas essas pessoas, ou quase todas, ou todas essas pessoas, enfim, sem exceção que são militantes do orgânico mais puro orgânico tem uma coisa errada, penso, não pode ser, uma coisa errada, um morto no armário, um karma muito pesado para querer viver na absoluta paz, por que senão tentar e tentar se apagar o tempo todo. a única coisa que acontece o tempo todo é a perda, são as despedidas. por que não podemos nos acostumar a morar na catástrofe da perda? e o estranho, por que preferir a calma ao estranho nosso de cada dia? “pero ¿hacia dónde van si no a nuevas heridas? una pasión es un trauma. una visión, una punzada”, marco no texto que estou lendo e faço cruzes do lado. nada tão distante como o olhar das pessoas que estão no nosso lado. por que preferir a calma as incertezas desse olhar? quanto chá de camomila, senhora, é preciso pra diminuir a potência desse afeto?

 

Joaquín Correa

sublimação

muitos dizem que é preciso se resguardar e
cultivar a certeza que protege do deslize
foi segunda ou terça ou quarta
esqueço rotineiramente
e também não é impossível
ver com outros olhos
por exemplo
a tua mirada de
canto
como quem
para acertar o alvo
incisivamente
desvia
e finge que desiste
psiu
ainda estou na tua frente
foi rápido
instauramos a bagunça excepcional
resta
a partir da fissura
nadar
andar
até
o porto
a praia
a rua
inteira
adiar não adianta
nada mesmo
o oceano imenso ali
alhures
essa página
areia
fina
em que traço tanto
o maior desejo
fagulha
arrisco
trans
for
mar

Como olhar de perto

Olha só, eu tô aqui nessa porta, noutra, olhando com os olhos de quem não vê. Eu tô olhando, tentando olhar, na verdade, aquela janela aberta que ofusca uma chama presa. Ou será uma brisa seca? Eu olho, oro e conto cartas-totem. Sabe cartas-totem? Dessas que a gente não escolhe porque quer, mas porque queima. Eu sei que tu sabe. Aí eu juro, mas preciso de mais de um pra jurar, então jura pra mim que vai passar? Jura, vai, jura no juramento mais falso possível, naquele do antigo self, que adorava ilusões, então jura, só mais um pouquinho. E também junta, junta os cacos, por favor, só dessa vez, vai. A gente jurava que juntava junto, mas no final só Juju juntava e era muito triste, então, só dessa vez, junta pra nós. Julga vai, pode julgar, é bom julgar, julga direto na jugular. Só que dessa vez não vai sangrar. Dessa vez não vai pisar, mas também não vai sarar. Só dessa vez, vai profundizar. A permanência é a bola da vez.

um sopro na brasa

“Mas ouçamos uma história (outra parábola?):

Um duro homem avança por uma rua

que termina numa floresta como antes na infância

avançara por uma floresta que terminava

numa rua.

Olha para todos os lados mas evita olhar para cima

pois alguém lhe dissera que os humanos

só participam nos acontecimentos

abaixo do nível dos olhos,

e esta expressão – abaixo do nível dos olhos –

torna-se tão forte como a velha expressão

– abaixo, ou acima, do nível do mar.”

(Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à Índia, I, 36)

A barca, em suas circumnavegações, segue por muito tempo mirando o mar, e mais nada. O mar, suas cores, suas ondas, suas calmarias, seus sóis, suas luas, suas tempestades. E mais nada. Até que um dia, aparece qualquer sinal de terra. Não o velho continente, mas nova ilha, flutuante, que parece não fincar pedras nas profundezas da terra. Uma imensa vitória-régia em pleno oceano, parece. Mais instável que a nau, que singrava os mares ora com esforço de remos na calmaria, ora com esforço de velas na tempestade. O desterro é o próprio solo, momento-movimento em que é preciso aportar.

E, cheias de coragem, aportamos. A imensa vitória-marinha balança régia sob os pés. Algo será necessário: aceitar a queda, lançar âncora, transferir o lastro do fundo mofado do barco para a nova superfície, e ver se estabiliza sem afundar, ou ainda tomar dos remos da nau e tentar remar a ilha sem leme. Erguer um mastro e continuar olhando as águas, ou deitar-se com os ouvidos no solo para ouvir seu murmúrio.

Tempos de mudança tomam conta da tripulação, e lançam por si mesmos uma pergunta: mudando a paisagem que se vê, muda a criatura que olha?

É possível que, protegendo-nos do rol infinito de novidades, nos agarremos como nunca a um velho modo de olhar. Mas também não é impossível que o novo posto de observação nos permita lançar os olhos de maneira completamente imprevista, risco.

Tripul(s)ante: neste porto, now, como olhas o que vês?