terraplanando

terraplanando

e eis que me cerco
de terra
terra Ana
terra Desterro
terra touro
terra cedro

e eis que na terra
me ponho a comer membrillos
vecinos
cordobeses

e me boto a colher vestígios
broto
abotôo
fecho caixas
organizo a casa

uma estranha sensação de chão
me assalta
me acerta
conserta

sinto muito
o concreto
o asfalto
o possível de existir
na permanência

se é verdade que tudo se transforma
é verdade também
que no espaço tempo
entre uma mudança e outra
há o que não muda
o que move
sem movimento

sinto-me movida
por tremores
de terra
de mãos
quentes
firmes
de assoalho verde
pélvico
poço

poço é terra
e água
fundo e gozo
abismo
espera
encontro.

I got your letter…

19052017-IMG_3688

Foto: Jorge Minella

Dear,

 

você me pergunta:

como vão as coisas?

escrevo como vão

as coisas:

 

de ar

são feitos meus sonhos

de novo, nada de novo debaixo do sol

de novo, nado, de novo debaixo da lua

agora

parto

agora mesmo, vou ficando tonta, vou perdendo

equilíbrio e sentido

 

 

maravilhoso escândalo: nasço!

com olhos fechados

procuro cegamente o peito

o leite grosso

 

de ar

que entra e sai

no pulmão-palavra

é feita

(às vezes sopro às vezes tranco a respiração até não aguentar mais daí respiro instintivamente chorando como quem respira pela primeira vez encho o oco do corpo de coro finjo que nasço nesse ato finjo que posso)

 

nessa rotina, ritual sagrado

escuto a ciranda que me cantas

sinto o embalo dos teus braços

canção de ninar, afago, contorno

não de todo retorno

ao útero

 

basta abrir os olhos

já forja o desafio da língua

as letras estrangeiras

e vice-versa.

sempre vice versa

de novo vício verso

vice verse

 

faz de conta que as letras fossem minhas

faz de conta que quando corto o cabelo

corto o cordão umbilical com a minha progenitora

 

sim, toda vez que cantas

o corpo dança

como quem pega uma lâmina e corta

se corta o próprio cabelo

na porta do pátio

 

 

uma porca no pátio

de pé com a mão

como quem prepara uma mala

se apronta pra viagem

não de todo retorno

à terra

 

homecoming

levar ou não levar

essa sujeita que guincha

com cascos sujos?

essa sujeira da língua

baba, resíduo de leite,

layers of dust, hair, skin

bactérias, pelos, ácaros?

 

(a voz da minha mãe me manda tirar o pó e varrer o chão – língua materna?)

 

lavar ou não lavar

essa sujeira que enche

a casa e o casco?

 

melhor a casca

melhor o cúmulo

perambular a poeira

como quem escreve uma carta

com o dedão do pé

 

perambular a poeira:

os contadores de histórias não imaginaram que a Bela Adormecida despertaria coberta por uma espessa camada de poeira?

eu contadora da história lembro que a bela adormecida acordou coberta de poeira.

e nesse dia recuperou no bolso do vestido um poema que tinha escrito há milhões milhões de anos atrás e dizia assim:

 

me chamaste

porca?

…”

 

as traças roeram o resto

eu contadora de história poderia inventar um novo fim

mas faz de conta que essa é uma história sem fim

que fala do retorno

não de todo

ao

a

r

úberes & uróboros

Diego de los Campos, desenho em nanquim

inconfessáveis singularidades
há quem se importe aqui
com as comunidades de
eus espatifadas
em plenilúnio?

olvida-me

e não me culpe ou me acuse pela sequência barata do olvido logo após a escuta depois de K no embaraço de um processo o ovo o ovídio da metamorfose faz-se loba e conserva algo da antiga norma porca o ovário a labuta sujeita atingida pela linguagem eu evito enquanto a amiga convida ao toque aos tropeços caio aceito evito?

comunidades inconfessáveis
afinidades eletivas
que falam
afetos

infinitamente fodidas pela linguagem
eu cortada pelo quase coito
abestalhada com o
outro

cismo lírica pseudo heroína trágica
degenerada
no delírio

há alguém aí que se importe
com o que ardelira em mim?

uma coitada aparvalhada perdida em pobres adjetivos substantiva o ressentimento com a linguagem sonha o lúpulus melífluo também proibido o excesso no esôfago queime gelada a parte sensível da carne da palavra corpo úberes & uróboros vacas profanadas rompem porteiras adentram o lado de lá de outras singularidades e sujeitos mudos pétreos nos ferem fundidos em  politicagens rasas de sentidos línguas machas esfolam sutilezas desusam estupram deusas

perdi a experiência
restou o poema
mas isso não é
um poema
é floema fétido
chafurdada a porca
na linguagem

vou passar agora a ferro quente as folhas palavras de um caderno páginas recicladas macias ásperas porque é bom deslizar a caneta esferográfica e perceber a medíocre tentativa de escrever o rastro logo após  fazer a lista de compras da mercearia no bairro que se esconde no barro da saia que passo a ferro quente agora ainda que a saia me leve além do bairro e do barro ao mar porque nas rendas e ondas dos babados da barra dessa saia tecidas umas barcas enredadas cingem águas cálidas stultiferas feras esquecem o leme e dançam caladas deixam na minha cara respingos de leite bom passagens fêmeas por ilhas cultivadoras de vacinas anti-poiesis singulares contágios onde não existiam outras antes comunidades sem comunidades

Ciranda

Salve mulheres brasis

nesta abertura solene

venho

veio-me

manhã de domingo

poema sonhado.

 

Muitos poemas

de sonhos

passaram

por esta porta

muitos

poemas feitos de sonhos.

 

Mas esta é

primeira vez.

Primeira vez

sonhei

um poema.

Não

com

um poema

Sim

um poema.

 

Na porta do patio

(dei de assaltar futuros)

Na porta do patio

(esse verso era da Are)

Juju

bem

ditava

me

ditava

inteira um

poema.

 

 

Eu

Sonhada

Face

à tarefa:

memória

das palavras

escrita

das letras.

 

A poem

A letter

To my

Ara

Altares

Minh’alter

alma.

 

Poema

não estava

na minha

língua.

 

Sempre assim

poemas

Sonhadas

Sempre assim

poemas

não sonhadas:

Nunca

Na língua

Nunca

Na minha

Na boca

Nunca

Na nuca.

 

Sempre assim

A tarefa:

Memória

Repetir as palavras

Tantas

Tantas

Tantas

Até devirem

Letras

Soltas

Pura

Língua

Porca

Língua

Pedra

Língua

Perda

língua.

 

Não perdi esse poema.

Cumpro

Tarefas

Bem

Desveladamente

Cumpri.

 

Acordei zelosa

cuidados

segurar

O sonho

não

espantar

as fumaças sonho

Vigília

Desperto sonho

Memória

Semidesperta

Semissonhada

Cada palavra

Cada letra

Cada falsa

Memória

Caía

Pingos

Sobre papel.

 

Once upon a time

Começava assim a ciranda

A próxima palavra

Modifica a anterior

O passo para a direita

A roda para a esquerda

Tropel de pernas.

 

Once upon a time,

Vivi c’as amigas.

Da fumaça,

difusa,

a poem

a:

 

Ciranda

When the Godess first gave birth

to the human first creature

She made her stand

to try

what could she

by her own.

Then She saw her standing

and She saw her walking

and She asked Herself

why didn’t She give her wheels.

The creature looked so complete, though

that She decided not to change it

and as Mother put some Words

into her ears.

As the years went by
rolling

the ideas grew up

in her mind

she started inventing

wheels.

bikes, rollers, skates, wheelchairs

motorcicles, buses, cars

those move fast

but faster move

her ideas in her mind

Now she built

a slow boat

just to lie upon the sea

and floats

as unborn

naked memories

under the Godess’s

blessings

of the dark moon.

atravessamentos céu acima terra abaixo

Francesca-Woodman_32.jpg

Francesca Woodman

“A duração é um estado em que obstáculos não conseguem esgotar o movimento. Não é uma condição de repouso, pois a mera imobilidade significa na verdade um retrocesso. A duração é o movimento de uma totalidade organizada e completa em si mesma. Esse movimento está sempre se renovando. Ele se realiza segundo leis imutáveis e cada término dá lugar a um novo começo. O objetivo é atingido por um movimento na direção interna: a inspiração, a sístole, a contração. Esse movimento se transforma num novo começo tomando a direção externa: a expiração, a diástole, a expansão.”

I ching

 

 Era de tarde e eu precisava escolher os poemas que ia dizer… escolher os poemas pra fazer dessa uma noite especial, pra de algum modo fazer aquela noite durar… e eu fazia com muita felicidade minha seleção amorosa… mas enquanto lia versos, lia pedaços de notícias e de posts e frutas fora da geladeira e tantas coisas e minhas mãos inquietas subindo e descendo abas e janelas e as crianças gritando lá fora, enquanto fugiam de um monstro assustador em verdade bem amigável. Era ah aaaahhhh aaaahhh e muitos risos, na minha vizinhança. E os minutos, as horas passando e eu respondendo e-mails e mensagens, o coração apertado porque precisava achar aquele poema, exatamente aquele, não sei bem qual ou onde, mas é um que me toca, marcou minha vida e meu corpo tantas vezes, e eu acredito que pode definir muito e me ajudar a dizer o que eu desejo dizer, é uma coisa grande, grandiosa, ardente, muito embora eu não me lembre de um verso sequer nem de uma palavra… procuro no arquivo do computador, na caixa de papéis dobrados, rabiscados, nenhum daqueles se parece com ele… e então penso que talvez eu tenha que escrever esse negócio… mas eu sou tão absurdamente incapaz de aproximar palavras de modo minimamente interessante… eu queria mesmo emprestar a minha voz, meus olhos, dedos, pulmões e lábios pra esse poema, sabe?! Eu queria ser a porta-voz, a porta-bandeira, a porta-passagem, a travessia que te dá acesso à imensidão, que te leva ao ponto firme e rijo da duração no meio dessa vertigem ininterrupta… talvez pra isso eu precise colocar os pés e as mãos na terra, cavar, plantar, regar com o meu sangue outra e outra e outra vez. Talvez eu devesse aproveitar os desejos, os despejos e usar as palavras pra falar que minha barriga foi cortada. Tinha esse verso no poema? Um poema sobre o ventre e o vazio, não o que falta, mas o que move e impulsiona, o sangue passando pelo corpo todo e descendo terra abaixo… fazendo raízes, rizomas, linhas de força pulsantes, versos-vórtices do poema que procuro, curo.

você tem fome de quê?

 

IMG_1266aqui do alto
eu sou
muitas
e posso tudo
posso ponte
posso tempo
posso mundo

passo sem pressa
e penso:
sou pulo
peso sem passagem
passagem direta
sem futuro

sem futuro não
sem medo do futuro
sem fome
do que não posso ver
do que ainda
não posso ter

eu desejo tanto
que nem sei contar
mas sei
coitar

coito contigo
conto comigo
corro
largo
pêlos
pele
gozo
grito.

melodia

tenhoquebrado

as palavras desejam
não se combinam harmoniosamente
aqui penso em qualquer composição
o arranjo não soa bem
faz ruído som bruto monstro
exclamo em seguida vem a pergunta
gesto de se dirigir se interroga dança
o corpo da palavra dita em voz alta
falta por extensão de sentido
sentido figurado coisa imaginada que se
dá como verdadeira invencionice fantasia
sensibilidade e irritação a pior maneira de lidar
com esta influência mas é a que você mais provavelmente
vai adotar é a de identificar com seu próprio ego tudo
que pensa e faz, isso a fará agir como se sua própria vida
estivesse ameaçada, o que certamente não é o caso
se tiver de brigar por suas convicções, este trânsito pode ser o gatilho
mas não crie bicho-de-sete-cabeças
onde não existem
súbita e sentada na cadeira esqueço
o drama da melodia
me ocorre na cozinha penso
na cena da tarde na repetição
no morango no chão com leite condensado
a xícara partida ao meio as separações
como o copo quebrado daquela vez
parece que todas essas histórias se conectam
mas não sei em qual ponto
esqueço
o que pensei quando fui ao banheiro e tive uma
ideia genial ponho um som
penso em todas vocês que invento e me chamam por muitos
nomes anoto: foi um dia de transborde sentimentalismo
na geladeira um bilhete: devo pedir água
amanhã toco um violão só pra mim você
nem sabe que fui e voltei do mundo no tempo
de uma quadra com você pareço de aço
de canto meu olho lacrimeja você
nem vê acho que de longe me assisto
pergunto terá ossatura ossícono pequeno
osso ossinho cada uma das peças
calcárias anoto: ossar roçar cortar gastar
em função de atrito fazer fricção deslizar
com brandura resvalar(-se) arrastar(-se) pelo chão
rentear carpir carpinteira
do universo inteiro perita em extrair faísca da brita 
eufórica coloco outra música dessa vez canto alto
as palavras que perco tenho algumas pra você
anoto: amanhã te conto