mergulho

mergulho

Não há imunidade
consideramos números e dados
contemplamos o horizonte do tempo
a partir de nossas janelas
os dias são solares
o outono traz seu frio com amizade suave
os poucos ruídos da rua
convidam e repelem
a indesejada das gentes
brinca
ameaça tocar a campainha
a qualquer momento
baixar a curva
é o mantra social
escapar do invisível e do inominável

mergulho fundo no infinito particular
e muitas vezes desconfio que não haverá saída
que não haverá tempo ou desejo
abandonar esse mundo outra vez
e o delírio do convívio
com a outra a outra a outra a outra de mim
não é o mesmo
de quem tem fome frio falta

nada está sob controle
já dissemos tantas vezes
e agora essa frase ecoa na minha barriga
antes de dormir depois do despertar
sonho com viagens estradas aviões encontros
e vivo dormindo o que não é possível realizar
acordada
ironia do destino
você me chamando
amor acorda
aqui estamos
acorda
a lua cheia nasce do oceano outra vez
sussurra um acalanto
há mares de amplidões inexploradas
nuances na teia da vida
é preciso escutar o som que faz
o ar entrando e saindo dos pulmões
a onda que avança e recua
a dança atemporal
da plenitude e do vazio
silêncio, amor

conversa

IMG_1254– acho que vai chover
– então vou sair de bicicleta
– você não ouviu o que eu disse? acho que vai chover
– ótimo
– você quer se molhar?
– sim, acho que é um bom dia para se molhar
– você não tem medo?
– de me molhar?
– não, de sair na rua
– um pouco, mas o medo de envelhecer dentro de casa às vezes é maior
– já faz tempo, né?
– é
– eu fiz essa máscara pra você
– ela tem bichinhos!
– sim, achei que você ia gostar
– obrigada
(silêncio)
– será que algum dia isso tudo vai acabar?
– não sei
– as coisas sempre são diferentes do que a gente pensou que seriam né?
– quase sempre
– fico pensando que esse é um bom momento para a gente dizer a verdade sobre tudo, sabe?
– como assim?
– sei lá, dizer o que a gente sente, o que a gente pensa, manifestar o desejo
– hmmmm
– eu te amo
(silêncio)
– eu não sei o que te dizer
– tudo bem
– acho que tá todo mundo muito mexido com tudo, nesse momento. fico em dúvida se esse tempo de isolamento faz aflorar as verdades ou nos confunde sobre o que sentimos de fato
– talvez você tenha razão
(pega a mochila, a máscara e o capacete)
– você quer alguma coisa da rua?
– justiça

cardume

cardumea imagem do peixe fora d’Água
não me sai da cabeça
e já ocupa a pele, as vísceras
o pulmão

a lateral inchando
do peixe
num vai e vem angustiante
o olho parado
o pulo que estala
a barbatana que brilha
e reflete o tempo
que não vem

convém contar
até três
antes de abrir a boca
para qualquer coisa que seja
mais
do que respiro

chega o ar ao coração
antes da água?
como inundar o peito
sem afogar as mágoas?

eu escrevi sobre um afogamento
uma vez
sobre ter o sal nos pulmões
mas hoje eu quero escrever sobre a magia
de respirar
sem aparelhos
sem água no pulmão
eu quero falar dessa maldita
necessidade de espelho
e de oposição
dois lados de um mesmo mundo
quebrado

convém contar
a vocês
um segredo
muito simples
o mar não tá pra peixe
nem pra sereia

eu sei
é difícil de aceitar
principalmente pra você
que é peixe grande
e gosta de poluir
seu próprio habitat

o convívio dos peixes
além mar
ainda é uma incógnita
criarão eles novas formas de respiro e vida?
fingirão estar vivos na sobrevivência?
aprenderão com a morte de seus semelhantes?

gosto de pensar que o peixe é um animal
de bando
que antes de aquático
é coletivo
antes de pular
ele nada
e sempre chega a algum lugar
comum

nós
peixes
imensidão
encharco
correnteza
o que faremos para lidar com a dor?

o peixe que há em mim
saúda o cardume que há de vir
coletivo que é
força
matéria
presença
união