ardências com nomes

                                                                           Camila Soato

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

E me pego ardendo

em cada centímetro

do dia

 

uma ardência que dura

 

pra saber da dor

basta medir a delícia

 

duradouro é o desejo

das coisas sem nomes

e das coisas com nomes

o Beckett por exemplo

é uma delícia com nome

 

o retrato em colagem do Beckett

acaba de cair da parede

precisava citá-lo

penso que talvez sua queda

foi em parte causada pela

minha demência em arder

em parte causada pela

permanência dele na parede

 

prefiro não

 

o fato é que a queda

me tirou do prumo do texto

me tirou o fluxo

já não sei para onde

oscila

agora

o pêndulo

se para ardência

ou para permanência

 

e se ao menos fosse a durée

do Benjamin

outra delícia com nome

melhor parar

nunca recuperarei o fluxo

 

mentira

 

paúra dessa vertigem

diária cotidiana

inflamada sempre a vontade

 

mentira

não arde por qualquer

pouca comida

não queira proferir

sacramentos vaticínios

 

isso deve ser durar

pensar em delícias

e surgirem imagens

palavras nomes coisas

 

inflamada nada

acovardada

mente

 

inflamada nada

porque há pedras

inamovíveis no caminho

dos dias das tardes longas

 

as pedras

concursos censura quimeras ganância burrice (não os burros jumentos asnos aqueles que nomeamos e apelidamos e rebatizamos e mitificamos e significamos, nomeio agora como epíteto ao homem/mulher do poder e mesmo ao homem/mulher que não está no poder mas exerce vassalagem ainda ainda ainda)

há pedras hipocrisias pontiagudas mortais

vaidades (das nocivas, grife-se, podem ser também letais)

e mais as crises e hecatombes

nucleares naturais químicas fatais

muitos desastres com nomes e sem nomes

mas entre as delícias também

 

as perdas

nomeadas

tantas

 

E me pego nomeando

para possuir

novamente ardendo

porque desejo

que minhas palavras ardam

em você

em ti?

qual língua ou ajuste de língua

devo usar?

é preciso saber ajustar a

concordância

verbal

nominal

voluntária

 

esse olhar que dói no meio do dia

no meio da tarde

 

o teu olhar dói?

olhas pra dor?

e nesse momento

supões durar ou arder?

 

duras as sombras do dia

gelinhos oásis escuros

abraçados por um deserto

de areia quente

sob a ardência do sol

 

durar ou arder?

 

o inferno pode ser

gelado ou fervente

 

o paraíso também

 

 

 

para arriscar mares

bateau ivre 5

(imagem de Marjolaine Fillon)

 

ilhas em busca do seu náufrago

frio
belo
duro
frágil

moldado em barro
meu coração
de
porcelana

cheira a terra
depois (durante) da tempestade

fio-limite e centro de estrada
cada início é precipício
todo passo queda

nascer é depois
é cavar – abismos (?) – com a mão
afundar os castelos mais belos

meu reino é rocha
esculpida a grito pelo mar

poema de “pequenos reparos”, de Omar Salomão 

 

poema para ira

Esta casa não é minha,

a vida é.

Esta condescendência não é minha,

a revolta é.

Esta pressa desnecessária para coisas supérfluas

não me pertence.

Estes modos não são para mim,

mas habitam meu monstro materno.

Encontrei ali a urgência de mudar.

 

Assim entendi, bem lá no fundo

o verdadeiro sentimento que guarda a palavra

respeito.

Dia 7 de setembro desrespeitei a pátria

desrespeitei meu lar.

Ignorem meu pedido de socorro.

mariposa

o barulho da angústia
em meus ouvidos
é como o bater de asas
de uma mariposa

mari posa
nua
a esposa

então, hoje pensei,
talvez seja assim mesmo
a vida.
talvez haja aquela coisa
insistente
em querer felicidade,
mas, como diz o texto cheio de
pés e cabeças,
ou não bem assim,
talvez, penso eu,
esse querer felicidade o tempo todo
seja até fascista.
talvez a vida seja angústia,
assim,
o tempo todo,
e é isso.

(o tempo todo é exagero)

não sentir angústia
é diferente
de tentar por cabresto nela.

 

perco poemas.
no ônibus
no chuveiro
na cama
perco poemas.
estarão eles
onde foi
minha alegria?

perco poemas.
o mapa astral
diz
pra eu canalizar
minhas paixões na arte.
peco (peco?)
perco
perco poemas.

perco poemas
como perco alegrias
como se esvai a vida
pareço uma parnasiana?

a mari
a mariana?
cidade?
mulher?
imagem?

os poemas felizes
eram invenção
de máquina
querendo fazer vida

não, dante não me conhece
carlito me conhece.
ao menos naqueles versos
em que dante diz que
assim que o amor ele nota
ele escreve como ele dita.
não, quem me conhece
é carlito.
aquele para quem
o que resta não é
o amor
mas a imaginação.

a imaginação
de um presente
livrinho
livro das clavículas sorridentes

canalhas sorridentes.
(tá vendo só?
não consigo
manter o amor.
ele foi embora.
ele ficou.)

há dias
perco poemas.

também não gostaria
de esquecer
(assim como não gostaria
de esquecer
a alegria)
o canto da musa overtone.
o canto da musa overtone.
mais lover que hater
porque explora outros sons
(no corpo)
que não aqueles
sempre ouvidos
explora o “escuro da contemporaneidade”
ouve-se e canta-se
o escuro da contemporaneidade.
eu gostaria
de continuar
me sentindo
naquele escuro
de minha contemporaneidade
do meu século.
combatendo
“meus fascistinhas internos”.
estremecendo
geologicamente
em riso de alegria
depois.

estremecendo
geologicamente
de amor.

junto dos overtones
ainda ouço um álbum
que me relembra
que, antes,
preciso de mim.

perco poemas.
perdi um há dois dias
que queria publicar
junto com
um trecho de agamben
e uma foto
de uma porta fechada.
agamben sobre kafka
sobre joseph k.
k.
agrimensor
k.
dobradiça
k. cardio.
mas,
perdi o poema.

juro
juro
que tentarei não mais os perder
para poder
lê-los depois
pra poder ouvi-los
como aquele álbum
como os overtones
porque
preciso de mim.

e melhor ainda
se um desses poemas
fizer parte
do livro das clavículas sorridentes.

 

ilustrações: “atravessar os dias” (2017), lese pierre lima

atravessar os dias - lese pierre lima 2017