mãe, a mãe trabalhou na roça?

mãe, a mãe trabalhou na roça?
a gente pintava o cabelo
eu nunca tinha feito
essa pergunta
não, na roça não

a gente pintava o cabelo
da mãe
quis saber o porquê
das lacunas
quis preenchê-las todas
de uma vez
penso nas coisas que herdei
da mãe
dentre elas essa fome

acho que a mãe
não percebeu isso
não vou conseguir dizer
desse abismo
na roça não
a mãe trabalhava
no mercadinho ali bem na curva da rua que vira pra casa da vó
lembra desse mercadinho?

não lembro mas pergunto
e depois?
fui morar com a tia dete
que era casada
tinha um colchão assim na sala pra mim
ela faz o gesto do colchão ela parecia ter
carinho ela disse
era legal
era melhor
do que morar com a vó
eu queria saber
e se saía a noite, se fazia alguma coisa
além de trabalhar
não fazia nada, só trabalhava
eu queria saber
por quê
ah quando mais nova a gente até ia na discoteca
todo domingo a vó dava um dinheirinho como se fosse 10 reais assim
e a gente ia, dançava

eu queria saber
do que a mãe gostava
se era bom ir na discoteca
ô se era! anos 80, né filha. a gente dançava bee gees, abba, essas coisa
dançava um monte

a mãe gostava de dançar

a gente pintava o cabelo
e os aniversários, mãe?
eu queria saber
se ela comemorava
não fazia festa, filha
eu queria saber
por quê
não fazia nada não tinha muita gente não tinha dinheiro

a mãe gostava de dançar

lembro
(não digo desse abismo)
da dor que ela contava
nas costas
que era chato trabalhar
de caixa
eu queria saber
quando foi que a mãe decidiu
que queria ser professora
a vó que queria que eu fosse 
e se ela gostava
mas eu não gostava muito

a mãe gostava de dançar

e essa foto aqui na moto, mãe?
continuo querendo preencher
as lacunas
é de quando eu era solteira
um amigo da mãe que tirou
ele me ensinava a andar de moto
a mãe não me diz
se ela gostava
de andar de moto

eu não disse
mas foi a mãe
a minha primeira referência
feminista
na época nem ela nem eu
sabíamos disso
hoje também
não digo
desse abismo

chama primeira

o teu dedo indicador
esquerdo
foi a primeira coisa que eu vi
me passando o baseado

é abismal pensar
o que pode um dedo indicador
quando chega ao lado
distraído
quando chega às costas
às coxas
e aponta o caminho

entre o sono e a agilidade
estávamos
como nos ensinou a poeta
alguns meses depois
eu já conhecia esse verso
mas ele tomou sentido
quando eu te conheci

eu lembro de ter chorado o dia inteiro
naquela noite
e de ter o estômago embrulhado
o corpo balançava
no coco
das mulheres

eu lembro de te ver de perfil
tua mão passava de leve
nos cabelos cacheados
o teu sotaque denunciava
semelhanças e dissidências
e o teu ar descompromissado
me pegou
de surpresa

chovia um bocado
naquela noite
e não tinha muito espaço pra fumar
e eu fumo bastante à noite
[acho que tu também]
por isso a gente ficou bem pertinho
e várias coisas podiam ter acontecido
eu podia ter te convidado pra dançar
tu podia ter me oferecido uma cerveja
eu podia ter dito que adorei o teu cabelo
tu podia ter falado que eu fico bem de vermelho
mas a gente tava distraído
e isso foi tudo
naquela noite

eu gosto quando as coisas acontecem
sem a gente ver
é como o pão que cresce
antes de ir pro forno
e de repente
aparece ali
grande
pronto
cheiroso
quente
macio e crocante
ao mesmo tempo
e a gente só disfruta
se lambuza
e deixa os farelos
caírem no chão

a massa que faz o pão
vale a luz do teu suor

cantaríamos algum tempo depois
e eu acho engraçado como surgem as metáforas
e eu gosto da poesia que sai
da tua boca
e chega na minha
vida
e eu apenas
acabo
de chegar.

“Não se embarca tirania Nesse batel divinal”

Bosch_detalhe

Os Querubins vestidos de uniformes
Presos as margens violentas do rio
São pajens de Lúcifer
Que já foi luz, mas caiu
Porque todos, todos caem

Dante viu Malafaia no quarto círculo do inferno
Em eterna danação
Cuspindo e engolindo insultos
De grão em grão
Dante viu Messias no quinto círculo plúmbeo
Afogando-se na bolha de petróleo
Vociferando o ódio rúbeo
Porque todos, todos caem

O barqueiro de Hades
Que as almas perdidas recolhe
Leva Orfeu ao encontro de Eurídice
“Para onde levais a gente?
Para aquele fogo ardente” – responde Ele
Porque todos, todos caem

Um Sátiro alongando o instante
Seduz as Ninfas alucinadas
E os Querubins de uniforme
Antes mesmo que possam dizer não
Porque todos, todos caem

Eis que numa revoada de
Nuvens mordidas aparece
Penélope a esposa fidelíssima
(Pronta para seu fim celeste)
Mas Belzebu
Como um deux ex machina
A confunde com
Medeia a mãe assassina
E a leva para as profundezas
Porque todos, todos caem

O riso enlouquecido do palhaço
Inunda a sala escura
Para o espanto dos Querubins uniformizados
Para o entorpecimento completo dos Serafins
Enquanto os Arcanjos suam dentro de suas
Armaduras
O palhaço canta com Baudelaire
“Tem piedade, ó Satã, de minha atroz miséria”

E então
“Beatriz inteira se volveu
Ela estava tão forte a brilhar
Que de início a visão nos obscureceu
De centelhas de amor tão incendido
Os olhos abaixamos, quase perdidos”

De nada adianta pois
Morrer de beleza
Ou de verdade
Inevitavelmente
Teremos nossos nomes
Cobertos pelo musgo do tempo

Dante viu Malafaia no quarto círculo
Do inferno
Viu Messias no quinto círculo
Porque todos, todos caem

coração doentio

O Êxtase de Santa Teresa, Bernini, 1645-52, Capela Cornaro[8]

Ah coração doentio!
coração negro, imantado
É sempre beira
borda de queda

Eros violento
metal rutilante
palavras reais corroendo
o íntimo silêncio
É sempre beira
borda de queda

Sangue violento
flechas incandescentes
a pele é tudo que resta
da consciência

Olhos abrasados
no desejo manifesto
Esfinge, devora-me aos poucos
teu enigma é insolúvel e
a distância não é melhor
É sempre beira
borda de queda