na casa da minha vó tinha uma máquina de costura
que nunca vi em uso
mas minha vó dizia que usava
que havia usado
que sabia usar
mas eu sabia
que minha vó
não era uma mulher prendada
minha vó tinha o espírito livre
e eu tinha orgulho dela por isso
a máquina era simples
compacta
e tinha aquele pé embaixo
que aguçava minha curiosidade
como funciona uma máquina de costura?
é preciso ser habilidosa com pés e mãos
eu pensava
é preciso ter atenção e destreza para passar a costura no lugar certo
para não furar o dedo
para não manchar de sangue
o tecido
branco
minha vó gostava de cores
eu pensava que
talvez
a máquina de costura da minha vó
fosse herança de sua mãe
minha bisavó
mas essa também não era mulher prendada
minha bisavó era mulher brava e decidida
e adorava futebol
conta-se que andava sempre com um radinho de pilha
e quando seu marido perguntava
Ondina, o almoço ainda não está pronto?
ela, agarrada no radinho,
olhava firme na direção do marido
e lhe esticava o braço com a mão aberta
como quem diz
stop
estou fazendo algo mais importante
e você me vem com cobrança de comida na mesa?
seria a máquina de costura
herança da mãe de minha bisavó?
dessa mulher sei muito pouco
chamava-se Laurinda
casou-se aos 16
viuvou aos 31
teve 5 filhos
e um marido que lutou na Guerra do Paraguai
imagino que Laurinda usasse a máquina de costura
para vestir seus filhos
para tecer os sonhos
de outros
para alinhavar as aventuras
não vividas
para pregar
o choro
a dor
o medo
a solidão
quando me lembro da máquina de costura da minha vó
empoeirada no canto de um quarto escuro
coberta
por uma capa transparente
e mais tarde
invisível
guardada em um armário aéreo com portas bem fechadas
sinto angústia
por não saber usar a máquina
sinto alívio
por não precisar saber.