máquina de costura

IMG_1809na casa da minha vó tinha uma máquina de costura
que nunca vi em uso
mas minha vó dizia que usava
que havia usado
que sabia usar
mas eu sabia
que minha vó
não era uma mulher prendada
minha vó tinha o espírito livre
e eu tinha orgulho dela por isso

a máquina era simples
compacta
e tinha aquele pé embaixo
que aguçava minha curiosidade
como funciona uma máquina de costura?
é preciso ser habilidosa com pés e mãos
eu pensava
é preciso ter atenção e destreza para passar a costura no lugar certo
para não furar o dedo
para não manchar de sangue
o tecido
branco
minha vó gostava de cores 

eu pensava que
talvez
a máquina de costura da minha vó
fosse herança de sua mãe
minha bisavó
mas essa também não era mulher prendada
minha bisavó era mulher brava e decidida
e adorava futebol
conta-se que andava sempre com um radinho de pilha
e quando seu marido perguntava
Ondina, o almoço ainda não está pronto?
ela, agarrada no radinho,
olhava firme na direção do marido
e lhe esticava o braço com a mão aberta
como quem diz
stop
estou fazendo algo mais importante
e você me vem com cobrança de comida na mesa?

seria a máquina de costura
herança da mãe de minha bisavó?
dessa mulher sei muito pouco
chamava-se Laurinda
casou-se aos 16
viuvou aos 31
teve 5 filhos
e um marido que lutou na Guerra do Paraguai

imagino que Laurinda usasse a máquina de costura
para vestir seus filhos
para tecer os sonhos
de outros
para alinhavar as aventuras
não vividas
para pregar
o choro
a dor
o medo
a solidão

quando me lembro da máquina de costura da minha vó
empoeirada no canto de um quarto escuro
coberta
por uma capa transparente
e mais tarde
invisível
guardada em um armário aéreo com portas bem fechadas
sinto angústia
por não saber usar a máquina
sinto alívio
por não precisar saber.

Amar…a vileza da carne covarde

Estas unhas ciclônicas morrem

por rasgar

aquela pele tingida e sumarenta,

aquela.

Estas unhas são covardes

rabiscam um sentir sem nome

passam completas pelo arrepio da 

epiderme.

Duras, duram na morte

mínima das células.

Estas unhas guardam restos de tudo

que não se ousa dizer

guardam tabus, gotas de saliva

cacos de espelho-esfinge. 

Estas unhas, instrumentos

de trabalho, roem o oco

coçam em ferida secretam

cutícula.

Corta com os dentes enviesados

aquela pelezinha-espinho que 

dói na carne e não

sai do pensamento

Estas unhas de ciclone arranham o desejo

imutável, minúsculo

e covarde do 

enigma.

Máquina

 

Cable Telefónico Quipu (2006)

Cecilia Vicuña, Quipus.

Disseram que era sobre
menstruação. E ponto.
Acusaram as Índias:
lá, a menstruação
é um tabu.

Oh!
na Índia
um tabu.

Nas Américas não:
as mulheres trabalham
igualmente mesmo
que sangrem
mesmo que tomem
lícitas injeções
pílulas milionárias
para que coagulem
tudo que flui pelo cérebro
pelo útero pelo coração
e não sangrem.

Nas Américas
as melhores
mulheres
não
menstruam
não
parem
trabalhem
sem
cansaço
sem descanso.

Na Índia
usam velhos tecidos
de cores e estampas
mas um homem
sim, um senhor
muito higiênico
que não menstrua
inventou uma máquina
muito higiênica

Nela, dezenas de mulheres
limpas e com máscaras
higiênicas para tampar
suas bocas de mulheres
produzem novos
tampões para mulheres
descartáveis:
plástico, algodão branqueado
e cola
para serem plantados
na terra para ninguém
notar.

Na terra
onde caiam
nada brota:
assepsia
is a thing.

O trabalho das mulheres
na Índia rural
é tão barato
que até as mulheres
da Índia rural
poderão comprar
um absorvente.

Que importa
Se é feio? mas
muito eficiente!
E eficiência
Is a thing.

E elas não terão mais
as unhas sujas de terra
e elas não terão mais
o dia perdido
no cuidado dos filhos
e elas não terão mais
que plantar, que colher:
perderão os dias
na máquina do homem
em que podem trabalhar
mesmo sangrando.

Há também uma jovem na Índia
rural, entretanto
muito urbana, de jeans, moleton
possivelmente lycra
quer ser da polícia
prefere o trabalho
ao casamento
e estudantes americanas
acham louvável.

Estudantes americanas
investiram
to start up her
para que ela
empreenda
– e empreender
yes, it is
a thing–
que empreenda
na Máquina
o dinheiro que poupar
do trabalho das companheiras
que não falam a palavra
menstruação
e provavelmente
não pronunciem mesmo a sílaba “ão”
como em rebelião, revolução
dado falarem outra língua
e agora trabalham
sempre que há luz.

Mais-vale
para não terem que implorar
ao marido ao pai aos irmaõs
algum dinheiro
para um presente destinado
ao marido ao pai aos irmãos
ou para um tampão
daqueles mais bonitos
com a foto da moça branca
de biquini branco
no mar
escondendo mais fundo
o plástico fedorento
que resta
do tabu.

Era sobre menstruação
,
disseram.

Uma vírgula.