Sobre Ibriela

Doutora em Teoria Literária. Amante da poesia, lida, escrita, recitada e de saraus mistico-poéticos. Atualmente num pós-doutorado em roça e sobrevivente da pandemia.

Tenho o sobrenome de uma mãe

uma mãe estrangeira

que não me gestou

esse nome se sobrepõe à palavra

que me foi dada de presente como nome

por outra mãe

que tampouco me carregou em seu ventre

esse sobrenome ilha

invadida como todas as mulheres

Ilhas

motivos da guerra dos homens

que nos invadiram sempre

Nesse sobrenome há severidades

que nós, mulheres

guardamos no silêncio

Escolhi esse sobrenome porque é de uma mulher

Longínqua e só, como eu

mas que jamais perdeu

a fortaleza

Muralha que guarda tanta desventura

esse sobrenome me guarda e ainda

em ruínas permanece

Tenho o sobrenome de uma mulher

palavra fêmea

uivo da América Latina que também é mulher

e nós, ilhas e continentes seguimos movendo o mundo dos homens

mas eles sabem da voz

a nossa voz, as ondas e as tempestades cantam na mesma língua e têm a mesma força

Não deixarei descendentes para levarem consigo o sobrenome da mãe

deixo palavras ilhas femininas

marcadas nas páginas onde

sempre escrevemos

na terra arada onde sigo plantando

palavras árvores

palavras sementes

Se a montanha me foi tirada

se a plantação de sonhos me foi ceifada

busco a planície e a sombra da conífera mais alta onde semear sonhos novos

É na severidade da ilha onde nascem as mais belas e menos amargas.

Lua cheia de Setembro

Quando eu era criança já fazia arte

BERTA, Mariana. Sagu. Miríade Edições: Florianópolis, 2018.

A estupenda familiaridade com um tema causa uma mudez tão intensa quanto a falta total de conhecimento sobre ele.

Ao ler pela primeira vez os escritos da Mariana Berta, fiquei entre a mudez e a gagueira porque tudo que li ali me pareceu a mim mesma, ao meu entorno familiar. Não conseguia elaborar nada, como se tivesse que falar de teoria musical ou da matemática dos astros. A diferença é que depois de ruminar, como as vaca de que ela fala no Sagu, depois de decantar, que nem do vinho o seu processo, chego até a escrever como ela, porque foi assim que aprendemos a escrever.

Quando ela fala “quando a mãe faz polenta, ela rebola, rebola”, ela fala da minha mãe também, ela fala da arte das nossas mães.

Quando a mãe fazia polenta no fogão à lenha, dentro de uma panela de bunda funda, na casa antiga de madeira, ela fazia a casa toda tremer. Mariana me lembra que todo esse bole bole, é necessário para fazer uma polenta cremosa, lisinha, sem bolóta. Fazer polenta é uma arte do corpo que só hoje, após voltar para a casa da mãe e do pai e, depois de conhecer o trabalho artístico da Mariana, é que me dou conta dessa importante lição.

É arte também aprender com quem nunca pisou na academia, com quem só tem a “terceira série forte” como dizem aqui na roça.

Li ano passado, no romance Paraízo Paraguai do Marcelo Labes, que a avó da família, personagem protagonista do romance, guardava um tesouro no baú; a nora passou o romance todo pensando onde poderia estar o baú que escondia o tesouro, porque a velha já estava por morrer. Encontraram, enfim, no sótão da casa, lugar onde a enchente não chegaria. O tesouro eram sementes.

Sim, sementes são tesouros. Sementes crioulas, não aquelas compradas na cooperativa a 800 reais o saco de 20kg. Assim como os porcos pretos e malhados, e as galinhas criadas soltas no pátio. Isso é coisa que estou aprendendo agora, no que chamo de meu pós-doc em roça.

As letras, como sementes, precisam de outras para brotarem em palavra. A monocultura míngua a produção natural da palavra. Se reunidas com esmero e dedicação palavras fazem brotar frases, orações, versos e enfim, poemas.

É como a abóbora cabotiá; ela só vinga se for plantada com uma semente da abóbora moranga junto, se não, ela não vem.

Como o trabalho intelectual, de análise de texto, de leitura intensiva de teoria literária e de poesia, o trabalho braçal na roça requer bastante esforço e atenção, principalmente para iniciantes nessa arte, como eu.

Quando eu era criança, e todos que eram crianças ao mesmo tempo que eu, éramos artistas. Isso porque toda vez que nossas mães nos pegavam fazendo alguma peraltagem diziam que estávamos fazendo arte.

Essa sensação do que seria arte me acompanhou por muito tempo. Confesso que quando entrei em contato com as teorias e crítica literária, com a filosofia, enfim com toda a epistemologia que envolve o conhecimento acadêmico, foi bastante custoso para que eu pudesse me livrar disso que se chama senso comum. Mas a Mariana não trata de senso comum, ela coloca em evidência saberes e costumes que passam ao largo da razão mas são tão fortes que constituem toda uma cultura localizada, que é, a todo momento, celebrada.

Mariana fala em desterrar, do nomadismo que assumimos em algum momento de nossas vidas em busca de uma impossível definição de nós mesmos, longe de nós mesmo, longe do ser colono e perto da academia, das letras e perto do que é hegemonicamente conhecido como arte.

Neste caminho percorrido daqui pra lá longe, para ao redor do mundo e de volta para a terra que me viu nascer, descobri que nem tudo está dito e há muita matéria de poesia guardada neste rincão de mundo onde vivo, o velho jovem oeste catarinense.

A língua das abóboras

Visto minha saia de outono pra falar da língua nova que aprendi.
Aqui na roça e, em todas as roças, o idioma é outro.
A vida é impiedosa.
A peste imperativa
e os xingamentos que escuto baixinho vindos da comunidade dos inços falam de resistir.
Dentro da ação de cada semente há sempre um tanto de dúvida e outro tanto de esperança.
Não é sobre a espera, mas sobre a ação da forma – trans-mutada – trans form ação.
Sabe aquelas sementes plantadas com uma gota de desejo em cada cova?
Vizinhas leguminosas, as abóboras morangas e cabotiás, essas que moram juntas, ensinam de sua forma e de sua doçura uma para a outra; egocêntricas entreolham-se para ver quem corre mais longe pelo chão ao se esparramarem sobre o território.
Aprender a linguagem da trans form ação, implica em territorializar.
Fincar estacas.
Colher abóboras.
Cortá-las em breves pedaços.
Cozê-las no tempo da lenha.
Abrir covas.
Adubar.
Sentir-se deus ao poder matar
as pragas e arrancar a peste.
Enquanto as abóboras, entregues à sua própria suculência dentro da panela, passam pela glória de correr para dentro de si mesmas.
Derretido todo o sumo, a polpa espessa aceita quente a dominação de quem transforma.
Fazer chimia é dominar um território 
alquimia secular.
Substância ouro que em borbulhas, açúcar, cravo, canela e gengibre surge no tempo arrastado da transfiguração.
É luxo, prazer e alegria.
Uma alegria assim, meio envergonhada como a gente da roça.
Envergonhada é a palavra abstrata que fala flecha direta ao tambor do coração,
certeira no rubor da face e enviesada no olhar.
A língua química atravessa todos os corpos da gente que é Terra.

ela do sul

“Mulher deitada” Flávio Scholles

Depois do amor
a mulher do sul
escolhe o feijão pro almoço
de amanhã.
Depois de gozar
ela só pode dormir
quando os detalhes todos
forem revisados:
as louças lavadas,
a roupa recolhida,
as portas trancadas,
janelas fechadas.
Depois do amor
de se abrir toda,
de se entregar em profundidade
ao seu homem,
a mulher do sul
volta a ser aquela
infalível
impassível
mola propulsora
das gerações adiante.
Depois de mostrar o
fim e o início do mundo
ao seu homem
ela cala e se recolhe
à sua secular solidão.

Terra

“Perceber envolve
novos hábitos do olhar”

Foi um susto
olhar de perto
a pele da semente
é como sair do corpo
asas alucinadas
pelas passagens
acolher os deslocamentos

Se eu só pudesse latir
numa reprodução
gaguejante da linguagem
não falava da terra
seria só o cheiro dela
molhado
lama
uvas pisadas

Pensar é estar doente
dos olhos
percebo que as asas
que o cheiro
que a pele da
uva quer um pouco
de rudeza

Pow! Poema iconoclasta

Colagem de Lu Tiscoski

É urgente desaprender
o cotidiano, praticar
a desobediência metódica
ainda que sob a pena
de queimar
na fogueira do
nexo

Façamos dos clássicos
monumentais elementos
explosivos
é preciso recriar a queda
do muro
de Berlim
de Edward Colston e Colombo
do Coronel Bertaso e
seus consortes
reencenar uma iconoclastia sistemática
substituir a vontade de
perdurar pela ardência
erótica
dos corpos

Liberdade irrestrita sem
concessões
helenas fugidias
por uma arquitetura
vivente
o que mais nos toca
destruir?

Fomos devoradas pela História
mas agora
muros serão
lousas para a renovada poesia.

Floresta antes do nada

foto e tatoo de Juliana Bauer

O mato não mata
a mata não bala
semente
a mata sim
Ave Terra
cheia de Marias
é hora de louvá-la

A mata não mata
o homem que calça
pés de terra
a mulher mãos de
terra
a criança terracota

O pequeno cresce com
a mata
e dentro dele só há
Futuro
ele quer ser do tamanho
da mata
ele quer ser

Escute, animal!
Olhe com atenção!
Sinta!
Tenho que te falar
assim, animal
com a força das
palavras que já
esquecestes
Tu, animal sem memória
sem camadas no olhar
animal que só sabe
aproximar com zoom
palavra estrangeira
cujo significado já
esquecestes
Memória diluída
gasta
de um corpo flácido
fala ácida
consciência miúda

Decai, animal…
desmonta
o que era homem
ficou só a ruindade
e uma sociedade disciplinar
radicalmente
imune
irremediavelmente
isolada
mata o mato todo

A gente não toca
não tem boca
tem máscara
a casa
é cárcere
escola
teletrabalho
o corpo estéril
histérico

Para, animal!
a mata não mata
mas no mato
só os fortes sobrevivem
os livres e fortes
vivem
só quem quer ser
Floresta

raízes feridas

arte de Luzia Rocha

Em cada rincão desta terra, limite medido à colônias hereditárias, frestas
por onde o odor azedo de esterco passa
há uma gota de sangue
um sinal de cansaço
um sabor de desgosto.

É preciso, sempre dissimular e limpar…

avidamente a roupa com esfregão – mancha é preguiça. Limpar o mato alto que é sujeira,
o terreno das árvores, as plantas dos pulgões, das lagartas, a parreira da doença que ela ainda
não tem. Limpar a carne da sujeira do desejo porque ócio é desleixo. Livrar o corpo da dor
constante como a sujeira que diariamente surpreende, a sujeira, não a dor.

É que o esfregão, o lava-jato, a roçadeira, a motosserra, o trator, o pulverizador, e o patriarca
roncam e zunem ferozmente

porque é preciso a todo instante dissimular…minha voz altiva…

É que nesta cada tão minha quanto o tempo do pinheiro contíguo me diz
nesta terra tão eu quanto sua altura imponente
tenho raízes feridas.

Caminho a passos pesados através do mato salvo dentro das botas de borracha. Caminho lento
por entre contratos assumidos, assinados, território expropriado – meu corpo.

Será preciso anos de esquecimento até que em cada confim desta terra já não haja
na morte e na vida
rastros de rancor nem gotas de veneno.

À hora magenta do dia
tenho raízes feridas
sou terra judiada
sonhando em rebrotar.

poema prótese

Uma fala se abre

para a negatividade

Minha voz inversa

experimentada na materialidade

do horror diário

na substância bruta dos nomes

que não sabe pronunciar

na solidão absoluta do

imperioso silêncio

Se eu digo “fora” é

aqui dentro que machuca mais

a pior violência é ter de

calar

assim o poema não cumpre

sua tarefa de curto-circuito

E se digo nessa voz

mecânica

me desfaço em

infinitos pixels

diminutas partes do

holograma eu

transformação incorpórea

O que resta para o curto-circuito

do poema?

Choque elétrico é muito

pouco

Volto ao estado de natureza

Estrutura de Emergência

estruturaI

Chove, milhares de lágrimas.
As árvores de dourada cabeleira
cantam para a cidade adormecida
a fauna toda de farra
trespassa fronteiras
derruba porteiras
portões desossados
fanfarra da bicharada
pisoteia o vazio contínuo da cidade
os animais e suas famílias seguem
surpresos pelo não-saber e gozam
Chove, milhões de lágrimas.

II

A paisagem exterior ao meu coração
é neblina.
Não se sabe de que lado vem a morte
lá fora, na cidade amortecida
não importa o sol ou a lua
não importa a exterioridade das estrelas
a paisagem ao vento dobra a esquina
e aqui dentro o tumulto
íntimo faz um rugir
de asas
é normal, tanta, tanta morte na
paisagem exterior ao meu coração?

III

Quero ver a cidade calada.
Ladeira abaixo
ladeira acima
a cidade do trabalho
obrigatoriamente estática
entra para as estatísticas
na volta da esquina
me assusta o tenebroso
corpo estranho
ESTRUTURA DE EMERGÊNCIA
alva    lona    estéril  –  contágio
medo    distância   silêncio

IV

Cada uma das vezes que passo
ladeira abaixo
me surpreende o
corpo estranho
como se não soubesse
como se não fosse real
ESTRUTURA DE EMERGÊNCIA
é cidade estarrecida
obrigada à imobilidade
se sai, é com olhos sorrateiros
entreabertos para a morte
mirada certeira no próximo destino

V

Quero ver a cidade deserta
mas ela insiste, ela teima
corre da morte, como inseto pisado
corre da fome que nem retirante
corre, corre, corre como sempre
morre como nunca
na paisagem exterior ao seu coração
não importa o índice
da morte diária
importante mesmo é o
índice da produtividade
cidade viva, vai e vem
Chove, milhões de almas.