Doutora em Teoria Literária. Amante da poesia, lida, escrita, recitada e de saraus mistico-poéticos. Atualmente num pós-doutorado em roça e sobrevivente da pandemia.
A estupenda familiaridade com um tema causa uma mudez tão intensa quanto a falta total de conhecimento sobre ele.
Ao ler pela primeira vez os escritos da Mariana Berta, fiquei entre a mudez e a gagueira porque tudo que li ali me pareceu a mim mesma, ao meu entorno familiar. Não conseguia elaborar nada, como se tivesse que falar de teoria musical ou da matemática dos astros. A diferença é que depois de ruminar, como as vaca de que ela fala no Sagu, depois de decantar, que nem do vinho o seu processo, chego até a escrever como ela, porque foi assim que aprendemos a escrever.
Quando ela fala “quando a mãe faz polenta, ela rebola, rebola”, ela fala da minha mãe também, ela fala da arte das nossas mães.
Quando a mãe fazia polenta no fogão à lenha, dentro de uma panela de bunda funda, na casa antiga de madeira, ela fazia a casa toda tremer. Mariana me lembra que todo esse bole bole, é necessário para fazer uma polenta cremosa, lisinha, sem bolóta. Fazer polenta é uma arte do corpo que só hoje, após voltar para a casa da mãe e do pai e, depois de conhecer o trabalho artístico da Mariana, é que me dou conta dessa importante lição.
É arte também aprender com quem nunca pisou na academia, com quem só tem a “terceira série forte” como dizem aqui na roça.
Li ano passado, no romance Paraízo Paraguai do Marcelo Labes, que a avó da família, personagem protagonista do romance, guardava um tesouro no baú; a nora passou o romance todo pensando onde poderia estar o baú que escondia o tesouro, porque a velha já estava por morrer. Encontraram, enfim, no sótão da casa, lugar onde a enchente não chegaria. O tesouro eram sementes.
Sim, sementes são tesouros. Sementes crioulas, não aquelas compradas na cooperativa a 800 reais o saco de 20kg. Assim como os porcos pretos e malhados, e as galinhas criadas soltas no pátio. Isso é coisa que estou aprendendo agora, no que chamo de meu pós-doc em roça.
As letras, como sementes, precisam de outras para brotarem em palavra. A monocultura míngua a produção natural da palavra. Se reunidas com esmero e dedicação palavras fazem brotar frases, orações, versos e enfim, poemas.
É como a abóbora cabotiá; ela só vinga se for plantada com uma semente da abóbora moranga junto, se não, ela não vem.
Como o trabalho intelectual, de análise de texto, de leitura intensiva de teoria literária e de poesia, o trabalho braçal na roça requer bastante esforço e atenção, principalmente para iniciantes nessa arte, como eu.
Quando eu era criança, e todos que eram crianças ao mesmo tempo que eu, éramos artistas. Isso porque toda vez que nossas mães nos pegavam fazendo alguma peraltagem diziam que estávamos fazendo arte.
Essa sensação do que seria arte me acompanhou por muito tempo. Confesso que quando entrei em contato com as teorias e crítica literária, com a filosofia, enfim com toda a epistemologia que envolve o conhecimento acadêmico, foi bastante custoso para que eu pudesse me livrar disso que se chama senso comum. Mas a Mariana não trata de senso comum, ela coloca em evidência saberes e costumes que passam ao largo da razão mas são tão fortes que constituem toda uma cultura localizada, que é, a todo momento, celebrada.
Mariana fala em desterrar, do nomadismo que assumimos em algum momento de nossas vidas em busca de uma impossível definição de nós mesmos, longe de nós mesmo, longe do ser colono e perto da academia, das letras e perto do que é hegemonicamente conhecido como arte.
Neste caminho percorrido daqui pra lá longe, para ao redor do mundo e de volta para a terra que me viu nascer, descobri que nem tudo está dito e há muita matéria de poesia guardada neste rincão de mundo onde vivo, o velho jovem oeste catarinense.
Visto minha saia de outono pra falar da língua nova que aprendi. Aqui na roça e, em todas as roças, o idioma é outro. A vida é impiedosa. A peste imperativa e os xingamentos que escuto baixinho vindos da comunidade dos inços falam de resistir. Dentro da ação de cada semente há sempre um tanto de dúvida e outro tanto de esperança. Não é sobre a espera, mas sobre a ação da forma – trans-mutada – trans form ação. Sabe aquelas sementes plantadas com uma gota de desejo em cada cova? Vizinhas leguminosas, as abóboras morangas e cabotiás, essas que moram juntas, ensinam de sua forma e de sua doçura uma para a outra; egocêntricas entreolham-se para ver quem corre mais longe pelo chão ao se esparramarem sobre o território. Aprender a linguagem da trans form ação, implica em territorializar. Fincar estacas. Colher abóboras. Cortá-las em breves pedaços. Cozê-las no tempo da lenha. Abrir covas. Adubar. Sentir-se deus ao poder matar as pragas e arrancar a peste. Enquanto as abóboras, entregues à sua própria suculência dentro da panela, passam pela glória de correr para dentro de si mesmas. Derretido todo o sumo, a polpa espessa aceita quente a dominação de quem transforma. Fazer chimia é dominar um território alquimia secular. Substância ouro que em borbulhas, açúcar, cravo, canela e gengibre surge no tempo arrastado da transfiguração. É luxo, prazer e alegria. Uma alegria assim, meio envergonhada como a gente da roça. Envergonhada é a palavra abstrata que fala flecha direta ao tambor do coração, certeira no rubor da face e enviesada no olhar. A língua química atravessa todos os corpos da gente que é Terra.
Depois do amor a mulher do sul escolhe o feijão pro almoço de amanhã. Depois de gozar ela só pode dormir quando os detalhes todos forem revisados: as louças lavadas, a roupa recolhida, as portas trancadas, janelas fechadas. Depois do amor de se abrir toda, de se entregar em profundidade ao seu homem, a mulher do sul volta a ser aquela infalível impassível mola propulsora das gerações adiante. Depois de mostrar o fim e o início do mundo ao seu homem ela cala e se recolhe à sua secular solidão.
É urgente desaprender o cotidiano, praticar a desobediência metódica ainda que sob a pena de queimar na fogueira do nexo
Façamos dos clássicos monumentais elementos explosivos é preciso recriar a queda do muro de Berlim de Edward Colston e Colombo do Coronel Bertaso e seus consortes reencenar uma iconoclastia sistemática substituir a vontade de perdurar pela ardência erótica dos corpos
Liberdade irrestrita sem concessões helenas fugidias por uma arquitetura vivente o que mais nos toca destruir?
Fomos devoradas pela História mas agora muros serão lousas para a renovada poesia.
O mato não mata a mata não bala semente a mata sim Ave Terra cheia de Marias é hora de louvá-la
A mata não mata o homem que calça pés de terra a mulher mãos de terra a criança terracota
O pequeno cresce com a mata e dentro dele só há Futuro ele quer ser do tamanho da mata ele quer ser
Escute, animal! Olhe com atenção! Sinta! Tenho que te falar assim, animal com a força das palavras que já esquecestes Tu, animal sem memória sem camadas no olhar animal que só sabe aproximar com zoom palavra estrangeira cujo significado já esquecestes Memória diluída gasta de um corpo flácido fala ácida consciência miúda
Decai, animal… desmonta o que era homem ficou só a ruindade e uma sociedade disciplinar radicalmente imune irremediavelmente isolada mata o mato todo
A gente não toca não tem boca tem máscara a casa é cárcere escola teletrabalho o corpo estéril histérico
Para, animal! a mata não mata mas no mato só os fortes sobrevivem os livres e fortes vivem só quem quer ser Floresta
Em cada rincão desta terra, limite medido à colônias hereditárias, frestas por onde o odor azedo de esterco passa há uma gota de sangue um sinal de cansaço um sabor de desgosto.
É preciso, sempre dissimular e limpar…
avidamente a roupa com esfregão – mancha é preguiça. Limpar o mato alto que é sujeira, o terreno das árvores, as plantas dos pulgões, das lagartas, a parreira da doença que ela ainda não tem. Limpar a carne da sujeira do desejo porque ócio é desleixo. Livrar o corpo da dor constante como a sujeira que diariamente surpreende, a sujeira, não a dor.
É que o esfregão, o lava-jato, a roçadeira, a motosserra, o trator, o pulverizador, e o patriarca roncam e zunem ferozmente
porque é preciso a todo instante dissimular…minha voz altiva…
É que nesta cada tão minha quanto o tempo do pinheiro contíguo me diz nesta terra tão eu quanto sua altura imponente tenho raízes feridas.
Caminho a passos pesados através do mato salvo dentro das botas de borracha. Caminho lento por entre contratos assumidos, assinados, território expropriado – meu corpo.
Será preciso anos de esquecimento até que em cada confim desta terra já não haja na morte e na vida rastros de rancor nem gotas de veneno.
À hora magenta do dia tenho raízes feridas sou terra judiada sonhando em rebrotar.
Chove, milhares de lágrimas.
As árvores de dourada cabeleira
cantam para a cidade adormecida
a fauna toda de farra
trespassa fronteiras
derruba porteiras
portões desossados
fanfarra da bicharada
pisoteia o vazio contínuo da cidade
os animais e suas famílias seguem
surpresos pelo não-saber e gozam
Chove, milhões de lágrimas.
II
A paisagem exterior ao meu coração
é neblina.
Não se sabe de que lado vem a morte
lá fora, na cidade amortecida
não importa o sol ou a lua
não importa a exterioridade das estrelas
a paisagem ao vento dobra a esquina
e aqui dentro o tumulto
íntimo faz um rugir
de asas
é normal, tanta, tanta morte na
paisagem exterior ao meu coração?
III
Quero ver a cidade calada.
Ladeira abaixo
ladeira acima
a cidade do trabalho
obrigatoriamente estática
entra para as estatísticas
na volta da esquina
me assusta o tenebroso
corpo estranho
ESTRUTURA DE EMERGÊNCIA
alva lona estéril – contágio
medo distância silêncio
IV
Cada uma das vezes que passo
ladeira abaixo
me surpreende o
corpo estranho
como se não soubesse
como se não fosse real
ESTRUTURA DE EMERGÊNCIA
é cidade estarrecida
obrigada à imobilidade
se sai, é com olhos sorrateiros
entreabertos para a morte
mirada certeira no próximo destino
V
Quero ver a cidade deserta
mas ela insiste, ela teima
corre da morte, como inseto pisado
corre da fome que nem retirante
corre, corre, corre como sempre
morre como nunca
na paisagem exterior ao seu coração
não importa o índice
da morte diária
importante mesmo é o
índice da produtividade
cidade viva, vai e vem
Chove, milhões de almas.