Brasil 2020

Imagem de “Desvio para o vermelho” (1967-1984), instalação de Cildo Meireles*

Caminhávamos, Ib e eu, até o apartamento de minha mãe. Ao entrarmos no prédio e seguirmos pelo corredor circular, ouvimos os sons de alguém vomitando. Tinha um banheiro no corredor e, ao nos aproximarmos dos sons, vimos que o chão do corredor na parte em frente à porta, aberta, estava sujo de vômito e merda. Os sons eram horrendos, o cheiro insuportável. Tomava-nos a imagem chocante de um menino, com cerca de 5 anos, vomitando na privada jatos que quase o afogavam com o que parecia impossível sair de um corpo tão pequeno. Jatos imensos, intermináveis, violentos de vômito e de merda saíam pela boca do menino. Ib foi ajudá-lo a sustentar o corpinho, os cabelos, a testa enquanto ele gritava “Eu vou morrer!” Eu saí correndo chamar ajuda.

*Fonte da imagem: https://heloisabomfim.com/historia-da-arte/cildo-meireles-1948-desvio-para-o-vermelho-1967-1984/

cicatriz

“In the garden” (1963), de Margaret Keane

Na noite do trauma matriz
Beatriz se perguntava
como sua mãe
conseguia pegar no sono
na mesma cama junto
daquele que tinha
tentado matá-las

que sua mãe
tomava remédios psi
trabalhava mais de 40h
era a responsável pela grana mensal
e talvez tivesse medo
Beatriz compreendia

o que ela não compreendia
é que ela quisesse
que Beatriz ficasse ali
mesmo com o segundo marido
uma versão piorada
de seu pai

anos depois
em conversa com amiga
psicanalista feminista
ouviu histórias sobre
mulheres quererem submeter
outras
à vida semelhante a que tiveram

Beatriz lembrou de uma carta
de Jung a Joyce
cujo recado ao escritor
sobre sua filha foi:
“onde você nada, ela se afoga”

Beatriz respeita as escolhas
de sua mãe
mas não quis o mesmo para si.

o alaranjado das bergamotas

eu quero falar das bergamotas
que caem da árvore da vizinha

eu quero falar
das minhas duas mãos
abertas
cheias
sem poder pegar uma câmera
sem querer pegar uma câmera
sem mais ninguém por perto
pra compartilhar
o alaranjado transbordante

só minhas palavras nesta página

que sempre podem se transformar
nos olhos do grande outro

de qualquer modo
todo dia eu tento
falar dos momentos
em que o abacateiro
nos dá abacates
e eles não cabem nas minhas mãos

a versa

IMG_20190707_100946

volto a escrever diante da fotografia do álbum de fotografias
nesta manhã
nessas manhãs só minhas
para me lembrar novamente que
quer dizer
“lembrar” já não cabe mais aqui

volto a escrever nesta manhã tão minha
para ser o prazer de sentir o aguadeiro tão meu
só eu junto com todas as venenas da munda imunda
escorrendo pelas minhas poras

eu volta
de nova e de nova
para fincar bandeira naquila que ma pertença
em ma domínia
sem responder demanda de ninguém
nessa territória-desobediência cotidiana
desenhada na ritma da que se dá a si

senhoras, vamos falar na feminina
e ver a que aconteça com a língua?
ver em que caminhas desemboca
a aguadeira loca?

pensanda em formata de versa
ela recolhe a versa da língua dele

é uma lógica de leitura essa da versa

ela sonha com a versa
depois fala da sonha
e transforma a versa sonhada
em enigma esfinge porta

baía

imagem-internet
Fotografia de Felipe Vernizzi (2018), a qual eu chamo de “vermelho da vida”.

 

eu escrevo
um passo de dança
completo

a sentença

ainda tenho que comentar
sobre a ausência passada
de feministas ao redor da escritora
ainda
preciso escrever a nota
sobre ambiguidade
ter bifurcação
como sinônimo
de ameaça
e de chance
segundo
a criança que corre
em direção ao mar

as luzes na baía
mais ao sul
brilham tão bonitas

é muito melhor
olhar para elas
que para os horrores
de minha imaginação

minha

nossa

“a sua história é a minha história
e a minha história é a sua história”
disse a comediante

acho que vou
pedalar até a Solidão

 

 

lugar coração-labareda corpo-seta

há noites em que não consigo dormir
porque é como se não tivesse
feito o importante do dia
como se faltasse
chegar naquele lugar que importa
e importa dizer isso? talvez nada
talvez nunca
talvez haja sempre o abismo de
comunicação
a correspondência não chega,
Bartleby,
e se morre de inanição
em muitos cadernos diferentes
em pequenas anotações perdidas
pra sempre
jamais organizadas
jamais lidas
estive num lugar ontem
em que não havia diálogo
nem eu conseguia
precisei me segurar na minha respiração
era só o que eu tinha
pra me manter
ontem à noite
tive um sonho inventado
sonhei que vagalumes
alumiavam o teto do meu quarto
e eu sorria
e minhas clavículas sorriam
e eu ia para o lugar
dos super-heróis de coração-labareda
corpo-seta
e, sim, eu vou cumprir
aquela meta-segredo esquecida
aos 35
e vai ser bom, labaredas

aguardo as próximas instruções
dos instrumentos de trabalho

foi golpe!


índia esquerdinha
que adora gay.
tu adoraria ter um sobrinho gay, né?!
riso dos outros.
jean wyllys.
laerte.
olha que coisa interessante
aí eu sou a jean wyllys.
deixa ela, a louquinha.
extremamente violento.
eu vou amparando
pairando
com amor em excesso.
com amor e excesso.
não sei.
mas é isso.
nesta instância
pública e privada.
discutir com meus professores
(com a polícia,
com todo tipo
de fascista)
em todas as instâncias.
se eu não conseguir
discutir com meu primo?
com quanto tu comparece?
materialmente falando.
passa um recibinho.
quer pagar uma aula do resultado?
tu te baba com meu amorzinho!
tô ali contigo
tô ali em todas
permanentemente.
pode me chamar de louca!
eles não tão
rindo de mim, mãe,
eles não tem mais argumento.
quando eles não conseguem mais,
eles tentam me desestabilizar.
eles não tão rindo de mim, filha,
eles atiraram em mim.
depende da nossa disposição.
tem mil coisas ao nosso redor
a vida é tão milagrosa
tão urgente.
tá lindo esse desenho, hein?!
esse cadáver
um morto esquisito.

___________________________________

Falação-escrita-coletiva, 10 a 15 de março de 2018.

rua

um elogio
de que me recordo
foi o do professor C.,
ele disse que eu era
uma excelente contadora de histórias

outro
foi de F.,
que disse, certa tarde,
que eu estava parecendo
uma personagem de Fellini

Jano (de novo)
a Esfinge
a esquina

amuletos são jogados ao alto

não querer ser
prefiro não
a diferença

como outra língua

que se aprende
no corpo
sempre com esse cabelo desarrumado

e hoje especialmente
me sinto
Edward Mãos de Tesoura.

quem está ouvindo?

sabe ‘aquele poema’, Elisa?
hoje achei que ele é
sempre o poema de hoje