Brasil 2020

Imagem de “Desvio para o vermelho” (1967-1984), instalação de Cildo Meireles*

Caminhávamos, Ib e eu, até o apartamento de minha mãe. Ao entrarmos no prédio e seguirmos pelo corredor circular, ouvimos os sons de alguém vomitando. Tinha um banheiro no corredor e, ao nos aproximarmos dos sons, vimos que o chão do corredor na parte em frente à porta, aberta, estava sujo de vômito e merda. Os sons eram horrendos, o cheiro insuportável. Tomava-nos a imagem chocante de um menino, com cerca de 5 anos, vomitando na privada jatos que quase o afogavam com o que parecia impossível sair de um corpo tão pequeno. Jatos imensos, intermináveis, violentos de vômito e de merda saíam pela boca do menino. Ib foi ajudá-lo a sustentar o corpinho, os cabelos, a testa enquanto ele gritava “Eu vou morrer!” Eu saí correndo chamar ajuda.

*Fonte da imagem: https://heloisabomfim.com/historia-da-arte/cildo-meireles-1948-desvio-para-o-vermelho-1967-1984/

Juízo

Deve ter sido um pesadelo
É comum que seja assim nos sonhos
Eu assisto uma outra mulher
E a outra mulher também sou eu

Deve ter sido um pesadelo
Assistir meu próprio julgamento
O nome da mulher era o meu
Mais o nome da minha mãe

Deve ter sido um pesadelo
Porque muitas palavras ali
Tinham endereço certo no meu corpo
Mal curadas cicatrizes na pele nos poros

Deve ter sido um pesadelo
Eu aparecia mais jovem mais bela
Mais recatada e mais doce
E as feridas eram mais fundas

Deve ter sido um pesadelo
Afinal ensaiei tantas vezes
Suportar punições pela roupa curta
Humilhações por existir em público

Deve ter sido um pesadelo
Ainda não consegui contar que sempre
Que ia dar uma aula imaginava ofensas
Aos meus seios livres sob a blusa leve

Deve ter sido um pesadelo
Também retorna feito cinema aquela vez
Vestido branco no apartamento
Eu sem achar o caminho da porta

Deve ter sido um pesadelo
A camiseta fina do uniforme
A adolescência teimando em exibir-se
O homem na calçada negociando o colo

Deve ter sido um pesadelo
Rumores ouvidos nos corredores
Enquanto gastava meu latim:
As pernas os pelos mau gosto meu gosto

Deve ter sido um pesadelo
Troquei tantas vezes de roupa
De namorado de profissão
Troquei de amigos e de cidade

Deve ter sido um pesadelo
Troquei até de família
Tentando escapar do julgamento
Ensaiei todos os gestos perfeitos

Deve ter sido um pesadelo
Não pode a vítima tornar-se ré
O algoz não devém vítima
As fotos já tinham sido apagadas

Deve ter sido um pesadelo
O homem disse algo sobre estar apagada
A mulher ou a luz estava apagada?
O estuprador foi comparado a um menino

Deve ter sido um pesadelo
Criminoso algum evoca crianças
Sobretudo um homem de tanto valor
Em dólares e status social

Deve ter sido um pesadelo
Falava-se de uma festa
Nós nem tínhamos o dinheiro pra entrar no clube
Nem nos lembrávamos como escapar do labirinto

Deve ter sido um pesadelo
Um sem número de rostos vagamente conhecidos
Alternava-se na tela da videoconferência
Entre o silêncio e o descalabro

Deve ter sido um pesadelo
Porque dias se passaram e ainda sinto
Um gosto amargo constante na boca um zumbido
Da expressão “pose ginecológica” no ouvido esquerdo

Eu queria que fosse só um pesadelo
Também para você, Mariana
Mas aconteceu pela segunda vez
E te abusaram em nome da justiça

Floresta antes do nada

foto e tatoo de Juliana Bauer

O mato não mata
a mata não bala
semente
a mata sim
Ave Terra
cheia de Marias
é hora de louvá-la

A mata não mata
o homem que calça
pés de terra
a mulher mãos de
terra
a criança terracota

O pequeno cresce com
a mata
e dentro dele só há
Futuro
ele quer ser do tamanho
da mata
ele quer ser

Escute, animal!
Olhe com atenção!
Sinta!
Tenho que te falar
assim, animal
com a força das
palavras que já
esquecestes
Tu, animal sem memória
sem camadas no olhar
animal que só sabe
aproximar com zoom
palavra estrangeira
cujo significado já
esquecestes
Memória diluída
gasta
de um corpo flácido
fala ácida
consciência miúda

Decai, animal…
desmonta
o que era homem
ficou só a ruindade
e uma sociedade disciplinar
radicalmente
imune
irremediavelmente
isolada
mata o mato todo

A gente não toca
não tem boca
tem máscara
a casa
é cárcere
escola
teletrabalho
o corpo estéril
histérico

Para, animal!
a mata não mata
mas no mato
só os fortes sobrevivem
os livres e fortes
vivem
só quem quer ser
Floresta

antigo sem título em resposta à chama

 

Imagem: foto a partir de instalação de Márcia Cardeal

 

amiga eu aqui desse lado padeço de mesmas diferentes dores
que cansativo isso dos processos sucessivos
quanto processo quanto processo
caminhar sempre em desalinho
sonhar do alto de bandeiras
sem nome

como sonhas
como sonhos
sonhando comemos
bolhas de mar

vertigens no olhar também
já confessadas muitas vezes

porque
me repito

réptil esquento
o sangue numa caldeira fria
e arde
e envenena

como libidinosa correia enrodada em minhas pernas
se elas caminham
se elas vivem

as pernas
se elas abraçam o corpo
se elas vibram

se bato com elas o chão agora conduzindo correntes de sangue vermelho da vida e na ponta um sapato fetiche a terra debaixo dos meus pés a força dessa fêmea tão etérea tudo se mistura

desalinho ossos dentes cabelos pernas ajustes nas ancas que suportam
o peso porque peso não é para mulher diziam alguéns algures

e quase parnasiana ruge de vermelho da vida
com um escorpião na boca
uma pretensa sereia

daqui te respondo de uns fogos porque nos fogos acho que algo se inflama
essa sede de vida
esse amor essa cachaça
e toda poesia e toda vida
essa sede de dádiva
essa sede de dúvida
essa sede

e alguém poderia dizer estávamos falando de fora do seu umbigo
onde rege a desgraça a desforra a briga por um naco
de vermelho da vida

bem no compasso
me lago no espaço
desaguada desovo

mar e sargaços

peixe e onça desfiro refiro reviro
só porque morro logo ali como morrem
moram ao meu lado e vivem vigoram vivem
também muitas coisas acontecem entre o céu e a terra
além de sua vã filosofia

minha amiga bandeiras vermelhas com nomes insuflamos algumas às vezes alhures enfrentando cada uma seus próprios dragões rubros ou cinzentos há sempre quem lembre do vermelho que foge dos olhos a chama o fogo que se apaga logo ali e de repente é simplesmente deixar de existir e daí que o presente de novo é só o que pode ser verdadeiro mas também fugidio porque se penso nele logo

ele me escapa

o presente sempre escapa e memórias avolumam-se no trajeto de tudo e eu preciso ainda pensar na conjuntura política na macro estúpida estrutura fascista na esquisitice

de ter uma rolha sei lá o que é qual é o problema
desses que veem no viver do vermelho da explosão de cores
[isso tudo que já não é mais no estado de exceção]
um interdito um rito maldito

surge em abismos aquele futuro blade runner aquele futuro de quadrinhos cinzentos aquele futuro do anjo que olha pra trás sem conseguir voltar aquele futuro feio
pouca cor pouca vida pouco amor pouca partilha

e vocês irão me dizer então
sempre foi assim tanta barbárie
a desgraça só tem gradações de lugar, volume e intensidade

mas a graça a graça dos dias a graça de estarmos em plena letargia da poesia certas vezes na noite no café na erva dividida da cuia da cuca que beleza compartilhar minhas dores e delícias e todos os demais clichês que andam na garupa de unicórnios quando convivemos

se pudesse agora te diria
sonha comigo hoje

só não dá pra juntar
os corpos na embarcação
e compartilhar o copo

mas letras enferrujadas
forjadas com a carne de
âncoras naufragadas
oceanam de ilha em ilhas

 

mergulho

mergulho

Não há imunidade
consideramos números e dados
contemplamos o horizonte do tempo
a partir de nossas janelas
os dias são solares
o outono traz seu frio com amizade suave
os poucos ruídos da rua
convidam e repelem
a indesejada das gentes
brinca
ameaça tocar a campainha
a qualquer momento
baixar a curva
é o mantra social
escapar do invisível e do inominável

mergulho fundo no infinito particular
e muitas vezes desconfio que não haverá saída
que não haverá tempo ou desejo
abandonar esse mundo outra vez
e o delírio do convívio
com a outra a outra a outra a outra de mim
não é o mesmo
de quem tem fome frio falta

nada está sob controle
já dissemos tantas vezes
e agora essa frase ecoa na minha barriga
antes de dormir depois do despertar
sonho com viagens estradas aviões encontros
e vivo dormindo o que não é possível realizar
acordada
ironia do destino
você me chamando
amor acorda
aqui estamos
acorda
a lua cheia nasce do oceano outra vez
sussurra um acalanto
há mares de amplidões inexploradas
nuances na teia da vida
é preciso escutar o som que faz
o ar entrando e saindo dos pulmões
a onda que avança e recua
a dança atemporal
da plenitude e do vazio
silêncio, amor

sonhada sonhante

rorschachblot02.jpg

De baixo do lençol que te tateia pele fina…
Lula Queiroga

Você me pergunta sobre o sonho
eu não consigo evitar
pensar no inseto que acorda
ou na mulher que desperta no corpo de um inseto
imagino as patinhas finas e curtas se agitando no ar
na mesma velocidade dos pensamentos buscando explicação

um pesadelo
a borboleta e tchaung-tse
sonhada sonhante
as camadas indo vindo
se eu caminho desperto?
escrevo desperta?

buscamos respostas
meu coração bate
o ar entra e sai dos pulmões
agora
um corpo de verdade
dança
fala
chora
cala
escreve
e aí o buraco é mais embaixo

um caminho sonhado
a estrada escura a solidão
o horizonte amplo grande infinito
o desejo me move na direção de tudo que não vejo

o dia inteiro assombrada pelos encontros noturnos
tento desvendar essas visitas
quem eu não sou sempre me chega
mais hora menos hora
pra você também
fechados ou abertos os olhos
esse vazio te encontra?

Eu de mãos dadas com a menina
cinco ou sete anos
um número ímpar
sinto seus dedinhos pequenos e macios abraçando minha mão

Sonhei que escrevia um poema
sem usar as mãos
sem mover muito o corpo
as imagens difusas
se imprimiam na minha pele
pelo lado de dentro
um texto que se toca ao fechar os olhos
uma partitura
sonho ou pesadelo
as ambiguidades dessa relação
a escrita no corpo-mundo
sem forma
então adio, atraso, esqueço e me distraio
começo e não termino
ambiciono projetos
um conjunto de versos acertados
começo, meio e fim
desisto no primeiro lance

A analista me diz
as coisas não precisam acabar
eu ouço que devo
enfrentar meu medo do ridículo
aquele sonho recorrente
chegar na escola de pijamas
de pantufas
a boca sem os dentes
estar seminua no trabalho
é parir no mundo essa cria inacabada
e acreditar que ela pode chegar
a dar alguns passos por si mesma,
a trilhar caminhos imprevistos

O informe
letras trêmulas em linhas tortas
escorrem das minhas mãos
procuro me concentrar no desenho
que formam e esquecer
um pouco do tanto que ocultam

Eu menina
no meio da noite uma imagem no espelho
diante da minha cama
uma mulher
a estranha mais familiar
sua indiferença me amedronta
eu acordo e a imagem continua ali
um espelho móvel
benção ou maldição
a superfície me devolve
sempre ela, ela, ela, ela
em tantas faces
parece indicar a minha ausência
eu pura sombra e reflexo
apenas sonhada
aprisionada do lado de lá
não adianta ser linda, meiga, divertida
o olhar dela não se move
fixo no chão um ponto impreciso
ela parece existir sem meu choro
sem minha fome
sem minha força de crescer crescer crescer

Enfrentar a noite escura
com as sombras que a luz da rua projeta na minha parede infantil
sobreviver aos ruídos da ameaça que se aproxima
e se instala sorrateira debaixo da cama
dentro do guarda roupa
só pra me sentir mais livre, segura e forte ao despertar
um dia novo outra vez

de olhos abertos

(este é um poema-ensaio apresentado em conversação sobre arte e psicanálise na jornada “Tempos de sonhar, instantes de despertar”, da Escola Brasileira de Psicanálise em Florianópolis, outubro de 2019.)

eu queria fazer um poema
sobre a escuta
falar sobre escutar
desde sempre
uma contradição?

o que é preciso ouvir
pra se acordar?
enquanto estou falando
quem dorme?
quem desperta, não pra si
mas porque o alarme tocou
é hora de ir
pegar o ônibus
deixar pronto
o conforto
do caminho pros outros
acordarem?

tem casos em que dormir
e acordar
não passam de dormir
e acordar

então estamos em uma distopia?

perguntas clichês?
imagens clichês?
todos os dias vistas
histórias pra serem ouvidas
sobre as quais sequer
sonhamos

em que estágio do sono deixamos
todas aquelas que não somos
todas aquelas que não estão mais aqui
e as que estão
de olhos forçadamente abertos
pra que a gente durma em paz?
eu deveria aqui trazer fatos? alguns exemplos concretos do que estou querendo dizer?

como é que a gente vai pensar em despertar
quando o sonho for o único lugar
em que a invenção parece possível?

eu sei, são muitas perguntas
mas talvez seja a interrogação
algo que nos possa fazer estirar
o olhar
desapertando
a língua
que se joga
em instantes de um certo
despertar que sonha
se mantém carne
viva
muito real
porque pulsante

assim, isso não seria um poema
mas o verso
tentando
acordar?

o que me garante que
acordado
o verso
desperte?

eu gosto muito
de algo que a susana scramim escreveu
em “literaturas do presente: história e anacronismos dos textos”
sobre a poesia
contemporânea
ter abandonado
o que ela chama de
fazer arte
(poderíamos dizer deixado
de sonhar?)

ela fala isso pra discutir
algumas posturas da crítica literária
ela diz:

quando a crítica contemporânea acusa a arte e a poesia de produzirem formas “fraquinhas de negatividade”, aquilo que é cobrado nesse julgamento não são formas “fortes” da negatividade e sim a origem da forma não como geradora de mais e mais questionamentos, mas antes, tomada em seus mitos, como doadora de soluções apaziguadoras em sua sistematização.

ela tá se referindo aí
a um texto específico
da iumna maria simon e vinicius dantas sobre o poeta carlito azevedo
que têm uma postura
muito próxima à dos modernistas
que não conseguem incluir a si mesmos
no gesto crítico que colocam no mundo
em resumo
a poesia que essa crítica
muitas vezes considera “fraca” ou “repetitiva” ou “infrutífera”
na verdade
diz de uma incapacidade
dessa crítica
de olhar
de escutar
essa poesia
que estaria
de algum modo
devolvendo
esse olhar
como quem sinaliza:

acorde!

a susana scramim diz
ainda
sobre essa poesia:
mesmo abandonando a prática de um “fazer” artístico, a poesia contemporânea marca de modo bastante intenso seu “desejo” de produzir arte. Negando os princípios que organizam o pensamento e ações modernas que operam pela teoria e prática da conquista, da divisão e da dominação, busca evidenciar a distância da arte de seu mais precioso desejo. Quer seja, o de anular a relação dicotômica moderna entre arte e vida. Esse desejo se moveria por encenações da mitologia mesma da literatura. Encenações essas que colocam em evidência os limiares das formulações construídas com base em contradições. Deixa, com isso, de tratá-los como limes/fronteiras, e os expõe em carne viva, ou seja, como contrações – que são – não resolvidas. A escrita que resulta desse modo de compreender a si mesma apresenta-se como teatral, uma vez que já não representa nada, não está no lugar de nada, apenas é, sem se preocupar com elemento contraditório, seja ele o referente, seja ele o pensamento abstrato. Com uma escrita bastante marcada por um desejo de produzir experiências sensíveis e inteligíveis em meio a processos de formulação escrita, a poesia contemporânea responderia à exigência de sua tarefa com uma atitude que pode ser interpretada como uma negação às fronteiras de gênero e às concepções de seu próprio fazer artístico estabelecidos de antemão, ao mesmo tempo que propõe uma prática escrita cuja função é dar a ver lugares e paisagens criados a partir de cenas (re)tomadas de sua mitologia textual. Se estabeleceria nessa escrita uma relação entre voz (querer dizer) e linguagem (ser obrigado a dizer) que implica o enfrentamento de uma das formulações mais radicais da poesia moderna, a saber, reelaborar a relação entre a escrita da poesia – do verso – e a produção do pensamento que se mantenha ético

mas eu não vim aqui
pra falar de crítica literária
eu falei tudo isso pra dizer
que a poesia a arte
quando despertas do sono de uma fundação
passam a ser formas de contato
formas de vigilância das armadilhas do nosso tempo
um corte uma pausa uma insistência
uma coletiva abertura
que nos permita
como a luciana di leone falou
“colocar o dedo na ferida da nossa época”
para poder, a partir daí
abrir brecha
assim
o poema
nas suas palavras
passa a “ser menos uma obra fechada, ou ter uma identidade, uma ontologia, e ser mais algum tipo de relação, marcada pelo endereçamento, o ir ao encontro de um Outro, um encontro que implicaria o poder de afetar e ser afetado”

mas
a partir de qual perspectiva política nós sonhamos, olhamos, criamos e agimos?
pergunta a bell hooks em “olhares negros: raça e representação”

é sobre o despertar em busca de novas imagens
que a bell hooks vai escrever
um despertar que só se torna possível
se nos dermos conta de quem controla as imagens com as quais sonhamos
ela nos lembra
como quem diz:
despertem!
de que “da escravidão em diante, os supremacistas brancos reconheceram que controlar as imagens é central para a manutenção de qualquer sistema de dominação racial”
ela alerta
como quem diz:
acordem!
que consideremos a perspectiva a partir da qual olhamos, questionando de modo vigilante com quem nos identificamos, quais imagens amamos. Se nós, pessoas negras, aprendemos a apreciar imagens odiosas de nós mesmos, então que processo de olhar nos permitirá reagir à sedução das imagens que ameaçam desumanizar e colonizar? É evidente que esse é o jeito de ver que possibilita uma integridade existencial que consegue subverter o poder da imagem colonizadora. Apenas mudando coletivamente o modo como olhamos para nós mesmos e para o mundo é que podemos mudar como somos vistos. Neste processo, buscamos criar um mundo onde todos possam olhar para a negritude e para as pessoas negras com novos olhos.

para que essas imagens se reconstruam
a compreensão de que esse sonho deve ser
de todos
é essencial

mas a bell hooks
acrescenta
que se muitas das pessoas não negras que produzem imagens ou narrativas críticas a respeito da negritude e das pessoas negras não questionarem suas perspectivas, elas podem simplesmente recriar a perspectiva imperialista – o olhar que procura dominar, subjugar, colonizar.

os jogos de dominação
sempre têm seus recursos
pra nos manter
dormindo

há casos em que a única possibilidade de sonhar
é a de permanecer
em vigília

por isso é muito difícil fazer esse poema
e por isso eu queria que ele fosse sobre a escuta

é que preciso pausar
pensar
sonhar não se pode
pronunciar sem perigos
quando não nos perguntamos
sobre o que está no seu horizonte

parece que o esforço de despertar
será desproporcionalmente maior?
talvez seja
como remar contra a maré

o despertar do verso
então
é como uma atenção
à respiração
minha
e sua
para que continuemos
nadando

talvez encontremos
ilhas

eu só fico
impressionada com uma coisa:
diz a adelaide ivánova em “desobediência do estado civil”
tudo se ajeita a vida segue
com golpe ou sem golpe
com ou sem sete de setembro
jajá estaremos acostumadíssimos
que horror
já saber se a vida segue
sem você isso eu
não sei
mas hoje não vou protestar
vou dormir

a gente percebe que ela é irônica
mas que ela encena
justamente
a nossa capacidade
de continuar
mesmo desumanizados
ela diz de uma contradição
com a qual temos de conviver
para a qual temos
de despertar

expor essa contradição
no texto
é uma forma de não propor
soluções míticas
que não passariam de uma forma
ao fim
de enaltecer a poeta
para que voltemos
a dormir
sem que nos demos conta
de que é um sonho coletivo

talvez eu não tenha palavras
mas me lembrei
do que o Walter Benjamin falou
sobre os filmes do Mickey Mouse:
aqui aparece pela primeira vez que alguém pode ser roubado de seu próprio braço, sim, de seu próprio corpo. O percurso de um documento em uma repartição tem mais semelhança com um dos que Mickey Mouse percorre do que com o dos maratonistas. Nestes filmes a humanidade prepara-se para sobreviver à civilização. Mickey Mouse demonstra que a criatura ainda pode subsistir mesmo quando toda semelhança com o homem lhe foi retirada. Ele rompe com a hierarquia das criaturas concebida com fundamento no humano. Estes filmes desautorizam, da maneira mais radical, a experiência. Não é compensador em um tal mundo ter experiências.
Semelhança com os contos de fada. Nunca desde esses contos os fenômenos mais vitais e importantes foram vividos de forma tão não simbólica e sem atmosfera. O incomensurável contraste com Maeterlink e com Mary Wigman. Todos os filmes de Mickey Mouse têm como motivo sair para aprender o medo. Portanto, não a “mecanização”, não a “fórmula”, não um “mal-entendido” são a base do tremendo sucesso destes filmes, e sim o fato de que o público neles reconhece sua própria vida.”
“O cinema introduziu uma brecha na velha verdade de Heráclito segundo a qual o mundo dos homens acordados é comum, o dos que dormem é privado. E o fez menos pela descrição do mundo onírico que pela criação de personagens do sonho coletivo, como o camondongo Mickey, que hoje percorre o mundo inteiro. Se levarmos em conta as perigosas tensões que a tecnização, com todas as suas conseqüências, engendrou nas massas – tensões que em estágios críticos assumem um caráter psicótico -, perceberemos que essa mesma tecnização abriu a possibilidade de uma imunização contra tais psicoses de massa através de certos filmes, capazes de impedir, pelo desenvolvimento artificial de fantasias sadomasoquistas, seu amadurecimento natural e perigoso. A hilaridade coletiva representa a eclosão precoce e saudável dessa psicose de massa. A enorme quantidade de episódios grotescos atualmente consumidos no cinema constituem um índice impressionante dos perigos que ameaçam a humanidade, resultantes das repressões que a civilização traz consigo. Os filmes grotescos, dos Estados Unidos, e os filmes de Disney, produzem uma explosão terapêutica do inconsciente. Seu precursor foi o excêntrico. Nos novos espaços de liberdade abertos pelo filme, ele foi o primeiro a sentir-se em casa. E aqui que se situa Chaplin, como figura histórica.

estamos trabalhando
para dormir
em qual sonho coletivo?
com quais imagens estamos sonhando
sem saber
que impedimos
o despertar
do ser ao lado?
nenhuma resposta simples
pode nos fazer
acordar

talvez uma forma de escapar
nem sempre tão óbvia
seja uma abertura
às contrações
de que a susana scramim fala
e assim sonhar e despertar
não podem ser palavras soltas
a partir das quais podemos ampliar
a abstração
mas palavras-corpos
marcadas
pela história
pela vida
palavras com sangue nas veias

a gente lembra que tinha um tempo
(e talvez com esse tempo alguns
ainda sonhem)
em que a arte era entendida como a exaltação
da beleza
uma forma de sonhar
acordado

não dá
pra fazer poesia com isso

em uma entrevista
a psicanalista francesa anne ganivet
quando interrogada
sobre se a arte está ao lado do sonho
ou do despertar
diz que sempre esteve ao lado do corte
da surpresa do rechaço ou do escândalo
ela diz ainda que o que a impressiona é que
quando “a obra” emerge
o artista segue servindo-a
até se cansar
e se pergunta se
os artistas cujas aspirações não são mais a sublimação
encontraram uma linguagem própria
pra continuar cavando
o buraco
que é a linguagem
para que ele não se feche

pode ser que eu esteja sonhando
mas o que eu pensei foi que
hoje
há uma urgência
de uma espécie
de cavar-junto?

eu pergunto
com as vísceras
aqui expostas

pra mim
hoje
pensar fazer discutir seja o que for
isso que chamamos de poesia de poético de arte?
por favor, eu gostaria de não romantizar
não pode ser dissociado
de uma experiência coletiva
talvez a nossa história
não nos deixe outra alternativa
e tenhamos que assumir
a nossa tarefa

a experiência coletiva
não é um bloco monolítico
e somente dessa perspectiva
essa afirmação se desperta

mas eu não pensei nada disso sozinha
desperto e sonho
junto

talvez eu não tenha palavras
e eu gostaria de ter o cuidado
com os perigos
do enaltecimento
porque já sabemos
a que caminho isso nos leva

mas esse poema que eu não sei escrever
sobre a escuta
é sobre
o despertar de uma palavra que se quer
nessa
abertura
de um convívio
em que o contato
é contração
uma possibilidade de um
si em contradição
nós
e por isso uma abertura do olhar para aquilo que não se vê

eu tenho sonhado
nas últimas semanas
talvez isso não seja de interesse de ninguém
mas afinal eu vim
pra falar a partir disso
eu tenho sonhado
com situações de ameaça
das quais eu quase não escapo
e quando desperto
algo de mim permanece lá
preso

quando eu acordo
eu preciso beber água
enquanto descem os goles
macios
pela garganta
eu penso que
eu queria ter sonhado
com a versa