R.

isso aqui não é uma resposta.  várias. da ponta do dedo ao nó na garganta, escrevo não só para você. eu mesma. é do amor mesmo que quero te falar, da ardência e da duração. modos de usar, modos de atuar a ausência.  sinto tanto, mais tanto a falta de Clarice e é só por isso que choro agora, porque sinto a sua falta. Eu consinto a sua falta.

um chinês se suicidou na cidade pacata. o suicídio do chinês que trabalhava no restaurante chinês da cidadezinha fez todos nós sabermos que ele era tibetano e que sofria. um tibetano que eu não sei o nome se suicidou no restaurante chinês da cidade, ele não falava a língua, ele não tinha casa, nem documentos. ninguém sabe falar o seu nome.

na terra das grandes oportunidades muitos conseguem chegar. a chegada tem sempre algo do fracasso do ter de abandonar a própria língua.

essas coisas. essas coisas são como pontos finais, interrompem algo. eu estava arrumando as malas e tinha e-mails importantes e compromissos inadiáveis para responder. decidi desabitar a urgência e tomar a minha língua, meu amor. abandono com alegria as metas, as listas, os compromissos e assumo a falha da não obrigação. talvez resida aí a coisa toda. quando abandonamos a expectativa que atribuímos aos outros e assumimos o querer. é disso que você falava ao assumir a mulher que erra? desse lugar errado no certo do mundo? ás vezes é difícil não esquecer que o certo do mundo é a governança dos corpos, a apropriação do que há de mais vivo na gente. resistir ao homem de bem. carregar o dano. trazer o dom. as línguas do desterro são sertão que podem vir a virar mar. vir a amar. te escuto, entre a perda e apropriação, nesses fragmentos do espelho que somos. mas hoje, quero te dizer, meu amor, que declaro guerra aos homens cordiais em nome de um coração transtornado. o meu coração transtornado perturba a ordem, aproxima o medo e a coragem, a hospitalidade e hostilidade. o coração transtornado deseja. o desejo é. no amor, erre.

pq

Há sempre algum poema que está falando de mim. Não sei se porque eles têm a incrível habilidade de ler o intruso leitor, ou se porque tenho a insuportável necessidade do espelho. Quebrei todos os espelhos da minha casa. Foi pior: eles se transformaram em muitos, milhares, incontáveis…Agora já não há poema que não me persiga. Agora já não há eu que não persiga uma palavra, uma só palavra capaz de dizer tudo…de calar tudo.

As crianças de Kosovo

Uma casa tivesse curado a nossa ferida? Ou não, talvez

não, quero dizer: até que ponto a crueldade é afeto?

De que modo encontra em nós a dor seu nome? Aquilo

que damos uns pros outros, seja o terror ou

a tristeza, nasce do mesmo desejo: curar e ser curados.

E aí, então, voltou a me perguntar, ontem à tarde, como

era ou ainda é possível diferenciar o desastre

da beleza. Não podemos agora recuperar aquilo que

perdemos, ninguém pode. Assim como sempre há um

verdugo disponível para matar, assim sempre resta

algo por perder. Você, rainha da desolação, estava

consagrada à mística dos violentos. E se justificando

repetia: não há escapatória. Crianças de Kosovo,

todos nós sofremos da neurose de guerra. Quem foi

danado leva em si esse dano, como se a sua tarefa

fosse propagá-lo como à peste, fazê-lo impactar

contra aquele que estivesse por perto. Onde você caiu,

me disse, ali você deverá fazer a sua casa. As praias do desterro

impiedosas devoraram o tempo das nossas vidas. E talvez sim,

talvez tudo aconteça exatamente entre a perda e a apropriação.

Joaquín Correa