o alaranjado das bergamotas

eu quero falar das bergamotas
que caem da árvore da vizinha

eu quero falar
das minhas duas mãos
abertas
cheias
sem poder pegar uma câmera
sem querer pegar uma câmera
sem mais ninguém por perto
pra compartilhar
o alaranjado transbordante

só minhas palavras nesta página

que sempre podem se transformar
nos olhos do grande outro

de qualquer modo
todo dia eu tento
falar dos momentos
em que o abacateiro
nos dá abacates
e eles não cabem nas minhas mãos

a versa

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volto a escrever diante da fotografia do álbum de fotografias
nesta manhã
nessas manhãs só minhas
para me lembrar novamente que
quer dizer
“lembrar” já não cabe mais aqui

volto a escrever nesta manhã tão minha
para ser o prazer de sentir o aguadeiro tão meu
só eu junto com todas as venenas da munda imunda
escorrendo pelas minhas poras

eu volta
de nova e de nova
para fincar bandeira naquila que ma pertença
em ma domínia
sem responder demanda de ninguém
nessa territória-desobediência cotidiana
desenhada na ritma da que se dá a si

senhoras, vamos falar na feminina
e ver a que aconteça com a língua?
ver em que caminhas desemboca
a aguadeira loca?

pensanda em formata de versa
ela recolhe a versa da língua dele

é uma lógica de leitura essa da versa

ela sonha com a versa
depois fala da sonha
e transforma a versa sonhada
em enigma esfinge porta

divagações sobre a fome, a sacies e o desespero: pela potência das tríades

pao

Comi um pedaço de placenta
que não era minha.
Comi com um bocado de pão
que não fui eu que fiz;
o pão cujo trigo não
foi limpo por mim
nem moído pela minha
força
nem amassado pelas
minhas mãos.

Comi um naco de placenta;
antropofagia lícita
ainda que suja
tão vida quanto o pão!
é resto
excrescência.

Dessa excrescência-mater
nasci em grito;
fui concebida pelo grito
esse que correu pelo mundo
caiu nas bocas silenciosas
das peneiradoras de Coubert
que dão a vida pelo pão
de suas placentas.

O grito correu os tempos
foi parar nas bocas das
Mães da Praça de Maio
que já muita vida perderam.

O grito virou fogo nos sutiãs
atlânticos de 1968;
artefatos de beleza na
sarjeta
pela inteireza da placenta
que é linda!

O grito virou Munch
virou museu
mas não termina de
GRITAR!

O grito, a placenta, o pão

O grito muito
a placenta na valeira
o pão que falta
fala do grito
de não poder parir
um pedaço de alforria.

 

 

afetação

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Refundar a existência parece ser o trabalho agora
outras referências
o paideuma dos meus afetos
fêmeas

Estar de volta
o calor e o silêncio acalmando o peito
quase tudo está bem
eu agradeço
enquanto penso em arrancar os pelos
a expressão da nossa loucura rotineira
chegar e partir
aqui jogo minha âncora
ela desce até as profundezas
e promete
segurança na flutuação
Barco? Iceberg? Prancha? Canoa?
o apito do navio anunciando

é preciso ampliar o tamanho das letras para ver palavras grandes
e tentar enxergar o que tem dentro delas
caminhos inusitados
insólitos enredos
e o que tem dentro do coração?
sístole, diástole
teu nome teu olhar e a memória da dor

Vermelho é o traje das que tem o honrado destino
conceber e parir as crias
que não serão suas
mas deles
bendita seja a fruta
quando olho para a cor desse lenço
lembro do que podemos nos tornar
e que os significados construídos
estão sempre ameaçados
são os horrores da sua imaginação, há quem diga

o fio vermelho escorre e anuncia
prepare-se para a dor
ela chega e eu sinto culpa
comi bebi corri e aloprei demais
mas o nome disso talvez seja vida
líquida
ela pulsa em caminhos
bifurcações raízes ambiguidades
e eu ainda não escolhi virar monja
o sabor do risco
transbordar o copo
santo graal
cabernet carmenére malbec shiraz
com toda devoção
o vermelho da vida
entra e sai do coração
pela boca
tem gosto de sangue
tem gosto de amor
náufraga

e quando o dia se finda
o sol tinge o horizonte
rubro lavanda ouro
as nuances do ciclo
extravagância
amanhã tem mais
eu exagero mesmo
é isso que o vermelho me diz
que tem muito e ainda mais
para as que sabem tocar
o gosto de ferro
o cheiro de carne
a morte e a vida
na semente
maçã
você me diz de suculências, apetites, afetos e venenos
enquanto o trabalho ocupa e consome
meus (res)sentimentos agravados com o vento

Na caverna pude ver e ouvir
os veios da terra, o som que faz
plic plic plic plic
amplificado e contínuo por eras
úmida, escura, escorregadia
acolhe a humana presença assustada
meus olhos pingam
estalactite
plic plic plic plic
dedos inquietos e ardentes
marcam aqui o tempo de uma passagem
breve
longa
na alternância da duração
partitura
o corpo canto a terra dança