pequenas e incontornáveis invasões (em resposta à pergunta “sobre as manchas: como ler essas palavras agora”)

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Lygia Pape, caixa de formigas, 1967

 

Tem formigas por tudo aqui na minha casa, são bem pequeninas e desconfio que estão comendo as raízes da planta e também que se quiserem elas podem entrar nas engrenagens do computador e causar estragos. O que eu posso fazer além de solicitar que se vão, que encontrem outro lugar para sua marcha?
Sinto mais do que nunca o desejo de escrever, enquanto minhas mãos se movem aceleradas, o branco da tela se enche de manchinhas pretas pequeninas, insetos. Elas se acumulam e se espalham num ritual louco de reprodução instantânea. Biologia, magia, concepção. Fico esperando aquele relâmpago de luz com o teu nome. As letras o compõem como um código de acesso primordial e secreto, coreografia das formigas, o direito a subir à tona e puxar mais um tanto de ar. Emergir. Ou o inverso? São muitas perguntas, há apenas perguntas, o homem das questões sabe disso porque carrega a interrogação nas costas, formiga levando um mínimo resto imenso, precisa se mover incessantemente, tão rápido que não chega a sentir cansaço, só o vento no rosto e nos cabelos, fugaz.

Palavra memória (ou como li essas palavras agora)

série DESBORDADA, de Cathy Burghi

 

natureza bem morta
por isso fantasma rediviva

queria só falar do poema que li
memória agora comecei
e tudo é cachoeira
ladeira acima

sobrevive muito nos cadernos
em sua natureza fantasma
bem morta e rediviva

nos cadernos
musas
crias de zeus belzebu
de todas eu prefiro a dança

terpsícores bailam
nos meus cadernos nus

envelhecemos juntos
eu e os cadernos
e elas continuam o bailado em roda

caderno de intenções
caderno de amor
diários (com desdobramentos de lugar; diário do Olimpo, cotidiano, diário de viagem, diário de Paris, só diário)
caderno de frustrações
caderno de estudos (pode conter inverdades e extravagâncias, além de apropriações e interpretações de terceiros não autorizadas)
caderno de anotações
passagens (é o nome de um caderno, compõe o caderno de intenções de Paris)
trabalho com passagens (esse é só digital)
caderno de contos
caderno de contas para pagar e de contas já pagas
caderno de escritos e citações
só caderno

caderno de metas (é tipo um caderno de intenções mais objetivo e institucional para angariar fundos, porque com tanto caderno fica difícil a concentração no que é importante, materialmente falando)
caderno de receitas
caderno de fichamentos
caderno de consertos na casa
hypomnemata (versão digital e cadernal)
caderno de poemas
caderno de fragmentos

é muito importante deixar claro
que nada serve como referência
de nada
daria pra fazer
com esses cadernos
uma fogueira
elas bailariam

acima do fogo
ao redor dele?
as terpsícores
volantes
acéfalas

leio essas palavras
e penso que cultivadora de tantos
cadernos de amor
poderia ter uma letra bonita
como aquelas que vi escorrerem
de um caderno ao lado
um dia

caderno de manuscritos
caderno de críticas
caderno manchado agora
caderno atravessado
caderno de erros
caderno abrasa
caderno abarca

caderno para jogar fora
caderno de alemão (um dia volto a ele, se rolar aquele plano de duas horas de estudo de línguas por dia)

caderno de amores (em criação)
caderno de aula
caderno de concurso
caderno de pretensões
caderno acadêmico (pode conter frases obscenas)
caderno de cinema (e eu posso constatar com ele que as cenas ainda me surpreendem e me suspendem muito acima do solo, por 8 razões e meia Fellini volta nos braços das bacantes sempre)
caderno de sonhos
caderno de colagens
caderno de teatro
caderno grávida de lua
caderno da casa do sol

sentada na pedra quente
mais uma vez
requentando mirabolantes
versos sem nada sem garantia
só o que vem na cabeça
e o avesso das pedras
e o rebuliço das perdas

escrevo num caderno rouge carmim
e uma O’keef velha
brota de um aquário de peixes
aquarela

fecho o registro e transborda

caderno de memória

 

(as imagens compõem uma série de mais de 100 bordados,
de Cathy Burghi)

demência do leite (em resposta à pergunta “sobre as manchas: como ler essas palavras agora”)

vivo todos os dias como se eu tivesse que ler um caderno encharcado
letras borradas nomes apagados estrutura precária manuseio difícil
– não lembro quem me falou não lembro exatamente o quê já não sei bem quando
sobra só o afeto sem cara e sem dobra
ah! lembrei que foi a Angélica que me disse que existe um nome pra essa condição
é um nome em alemão que eu não lembro não
lembro que saber da existência de uma palavra que diz que as mulheres que amamentam vivem molhadas
viver como quem esquece me abraçou tão profundamente
ai que bom que tem um nome em alemão que eu lembro não!
às vezes a gente tenta ler no borrão uma anterior caligrafia perfeita
(ainda mais quando se faz letras)
eita, essa memóriaésquecimento!
quando a mancha é antes tinta água e papel
não me esqueço, não me identifico não
ah! sou o júbilo da surpresa da beleza
ser nenem sem nem saber
matéria empapada pela presença das coisas

sob as manchas

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me aconteceu de eu deixar a bolsa
de pano
ao lado de um isopor com bebidas
que vazava
e os poemas os livros o caderno
de dentro dela
se encharcaram de gelo
derretido

olhando para as folhas
tentando sobreviver
sob o sol
me falaram: por que você não faz
uma pergunta
sobre o registro?
pensei: sim! é claro!
passei semana matutando sobre a memória o passado o arquivo
em meio a leituras
que me falavam coisas muito bonitas que eu poderia citar
e pareceu tudo muito maravilhoso, mas não era bem isso, sei lá
havia dor
e pensei se eu gostaria apenas que isso fosse um poema leve
sobre estar apaixonada
mas isso não é um poema
sobre a beleza do vazio
é uma espécie de grito
sob as folhas do caderno dos livros contorcidas de água
que me fizeram pensar sobre os relatos
que eu não posso ler
aquém e além das manchas
relatos em pedaços
relatos de fatos que desconheço
relatos dos escombros
relatos que martelam embaixo do travesseiro
relatos que eu não sinto
e que têm tanto a dizer

não sei como ler
os relatos o caderno
não sei o que fazer
com as letras molhadas
não sei como passar
como atravessar os papeis
os buracos parecem rasos demais
profundos demais

pra além da vista
disparam gritam
nesses papeis
molhados
urgentes
vozes sobre o passar
hoje
por entre ou apesar
dos buracos
das manchas

irrompem vidas que interrogam
como ler essas palavras agora?

 

língua quebra ossos

a minha Musa antes de ser
a minha Musa avisou-me
cantaste sem saber
que cantar custa uma língua
agora vou-te cortar a língua
para aprenderes a cantar
a minha Musa é cruel
mas eu não conheço outra

Adília Lopes

vem cá
que hoje eu vou te falar
com uma língua raivosa

não me interessam tons brandos
só quando eu os quero
não me interessa convencer autoridades
eu faria e faço mais
coisas por minha vontade
do que há entre o céu e a terra
céu e terra são limites que desconheço
e domino bem

faço quando quero
minha santimônia
pejorativa
devotamente afetada

meu afeto
é excesso, você diz
sempre vai ser, para quem não sabe lidar
com o que sobra
lembra
que o que sobra
só sobra
nessa sua lógica
aqui fora tem muito
que você não entende

hoje eu não vim
para falar baixo
venho mesmo para quebrar ossos
ô abre alas!
tenho pouca paciência
para cerimônias
apenas para os carnavais
pasme!
e para a pessoalidade dos encontros
em que você não está

não correspondo à ternura
esperada da minha lábia
supostamente doce
supostamente delicada

nas entranhas
borbulham coisas que você não imagina
fervo e firo
onde você menos espera
sou mulher
das zonas que você não suporta

quebro ossos por qualquer lugar
por onde
eu passo