depois do tempo…a lembrança da araucária vista pela janela

em 2009 eu tinha 29 anos. recém casada e de volta à ilha. não resisto a recomeços. a visão da araucária pela janela também é recomeço. não porque eu queira tanto escrever meu nome novamente, na primeira folha do caderno novo, seguido pelo meu novo endereço ainda não decorado, da casa, ainda não decorada, que aliás, nunca decorada, pois sempre de passagem. não que eu adore essa condição, a de tirar o “doutora em literatura” do currículo para buscar um emprego na escolinha do bairro. a de me desfazer de coisa inúteis, que devo lembrar primeiro que são inúteis para depois admitir que são essenciais, que a sensação que guardam é essencial, e que, ao deixar essas “coisas” essenciais pelo caminho, deixo também suas sensações. não que eu goste dessa condição de novamente, me saber sozinha e contar somente comigo mesma. ainda assim, não resisto a recomeços. a vida me impulsiona para eles, não que eu os deseje, talvez deseje o medo de que são feitos os recomeços. freire diz que “o futuro é problemático e não inexorável”. fico repleta de esperança, fico cheia de futuro, recheada de “tudo-que-tenho-de-fazer-para-sair-dessa-realidade”. sigo a onda do “10-years-chalange” e reviso minha pasta de fotos, como se não tivesse memória.

em 2009 eu tinha 29 anos. o último dos meus 20.

agora chego aos 39. o último dos meus 30.

Depois do tempo, vem o que?

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Hoje, conversando com uma amiga sobre o envelhecimento, e também conversando com alguns filósofos, que algo tem de amigas, pensei sobre os corpos que precisam morrer para que outros tornem-se soberanos e percebi que meus óculos estão mais tortos do que eu imaginava, e as araucárias existem, apesar de tudo, a natureza se impõe à brita, apesar de tudo, e os corpos precisam ser alongados para que o barulho do vizinho se torne suportável e também para que o corpo envelheça mais devagar, e o silêncio nunca é total no verão, porque mesmo quando o vizinho para de cortar a grama tem essa máquina preta dentro do meu quarto dissipando vento artificial, e tem também os aparelhos tecnológicos nos quais não se pode confiar e os quês da minha escrita que não consigo cortar e lembro de novo das amigas, nas quais sempre se pode confiar, e da sujeira do meu quarto que não consigo limpar e da sujeira de dentro que é ainda mais difícil de limpar.

Envelhecer é o contrário de morrer, ela me diz, e isso não é negociável. Olho para o lado e vejo Marília, que dorme e acorda comigo há nove dias, e a Sol mexicana, com seus dois olhos acima do nome – como nunca havia percebido isso antes?

Preciso lixar as unhas e arrumar as malas e ir, mas isso vai levar umas 12 horas ainda.

A Sol já esquentou e ainda não consegui cortar os quês. Hoje está mais difícil do que ontem, e ontem, que não era domingo, estava mais difícil do que sábado.

Eu costumava odiar os domingos e até hoje fico me perguntando por que. Pego um dos cadernos antigos e leio “hoje é terça-feira e estou muito irritada, costumo ficar irritada às terças-feiras, preciso descobrir por que”. Depois de algum tempo, descobri que o porquê era Ele e não as terças-feiras.

O aparelho eletrônico que ainda funciona está equilibrado no parapeito da janela. Acho que faço isso para que ele se vá. Olho de outro ângulo e os óculos tortos me parecem charmosos.

Cerveja aberta pode ir de novo para a geladeira? Sempre me pergunto isso e esse é o tipo de pergunta que só me faço no verão. Acho que preciso cortar o glúten e me mudar pra Dinamarca, mas até lá ponho a cerveja na geladeira.

Consegui cortar alguns quês. Penso em te mandar esse poema. Penso que esse poema me lembra eu mesma há 10 anos. Lembro mais do que eu pensava quando escrevia há 10 anos do que o que eu pensava quando fazia qualquer outra coisa.
….
Em janeiro de 2009 eu tinha 25 anos, um novo nome, uma nova cidadania e um blog. Escrevia coisas do tipo “uma violeta brotou no telhado do meu edifício”. Nessa época, eu já sabia que a natureza se impunha à brita, mas conhecia pouco do meu corpo.

A araucária continua ali, tão majestosa quanto ameaçada, me lembrando que não verei mais araucárias da janela depois do dia 8 março, que é um ótimo dia para mudar a paisagem e também para lembrar do que não se pode esquecer.

Essa noite sonhei com os Seres-trovão, no tempo floresta-bruma-quase-amanhecida. Lucíola estava igual, talvez até mais jovem e sorridente. Dorival estava sem barba e tinha uma pele de cera. Seus olhos grandes me encontraram diversas vezes, logo ele, que era o mais distante, ali se fazia tão real. Eram dois os rebentos do casal e eu estava muito feliz de conhecê-los. Bernardo estava muito diferente, esperava ver um homem e encontrei um menino mimado com espinhas na cara. Eu achava que estava ali só para vê-lo, mas quando o abracei vi que não fazia sentido, não havia mais nada entre nós.

Agora o canto dos pássaros se sobrepõe ao do vento artificial. É fim de tarde e eu ainda não lavei a louça porque fiquei obcecada em cortar os quês. Quero me despedir dessa temporada no inferno, mas não sei por onde começar. Quando o inferno somos nós é mais difícil de começar. Fecho a janela para ver o arco íris se formar mais uma vez na parede, talvez a penúltima. Tiro uma foto. O frango descongela na pia. Depois do glúten e dos quês, vou cortar a carne.

Minha escrita, minhas regras

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Eu não gosto quando as pessoas me dizem para escrever sobre algo, só porque eu escrevo. Eu gosto de escrever, mas não gosto que me digam o que fazer. É curioso, sabe, porque eu tenho um certo hábito, não é sempre, sabe, é quase sempre, só, de dizer, assim, pras pessoas, o que fazer. Não que eu goste de mandar, longe de mim, eu que sou uma pessoa tão… tranquila, quer dizer, as pessoas dizem que eu sou uma pessoa tranquila, algumas pessoas dizem, na verdade, mas esse não era para ser um texto sobre mim, mas se tudo que a gente pinta é autorretrato, então… mas não era sobre isso que eu queria falar, o fato é que eu não gosto dos outros quando eles sugerem que eu escreva sobre um assunto que a eles interessa. Vocês não percebem que escrever é exercitar a intimidade consigo mesma? Eu acho engraçado, sabe, que essa interpelação a outra, para que ela escreva sobre algo, para que dê vida e registro a ideias que não são suas, costuma ser uma interpelação gendrada. Me explico, pergunto: quem são os alvos de tais interpelações? É engraçado, sabe, porque eu não vejo homens sendo interpelados dessa forma, eu não vejo gente se intrometendo na escrita dos homens, eu não vejo gente sugerindo assuntos maravilhosos dos quais estes homens deveriam dar conta. E eu vejo uma diferença, sabe, entre mandar alguém fazer alguma coisa qualquer [isso acontece, às vezes, disso eu entendo] e se intrometer no exercício da intimidade alheia. Pior: intrometer-se naquilo que nos constitui como sujeitos públicos. Sim, somos mulheres públicas que tecem sua publicidade na intimidade. Existe uma diferença entre dizer “vá buscar o guri na escola e aproveite para comprar algo para o almoço [já que todo o resto não é você quem faz]” e dizer “escreva sobre o monumento dos açorianos, ele é tão bonito, tão carregado de História“. Não, eu não vou escrever sobre o monumento dos açorianos. Eu não vou escrever sobre o surto que sua tia teve no avião. Eu não vou escrever suas ideias ordinárias. Escreverei apenas sobre o que me toca, sobre o que toca as mulheres nas quais eu confio. Minha escrita, minhas regras.