cornucópia

despensa repletaWhatsApp Image 2018-06-05 at 21.51.42
fácil ver belezas

no fundo vazio
da panela mesmo
depois
de lavar
esfregar, arear, polir
resta uma mancha
nódoa, toda mácula
pode ter forma
de pequeninas flores, esta
flores brancas minúsculas
aliás, branca
é a memória do arroz
as flores da mancha
cinzentas
seu brilho esverdeado
provavelmente
azul, nunca soube,
ainda não sei

há também um contorno
leitoso
das pétalas
mas não se vê

os meus cadernos também
têm nódoas
bem onde começa o vazio
borrões de lágrimas
num jorro como
o pus
de uma espinha quando
espremida a palavra
justa
marcas de suor
parece exagero
não nas tardes quentes
de verão o calo
protuberante do
anular arrasta uma
pasta azul de suor e tinta

alguns insetos mortos
acidentalmente pelo peso
dos dedos
das letras sobre o papel
sangue
de um pernilongo
de barata
e café, e caqui
e a flor ainda úmida que secou entre as páginas
e um pedacinho de meleca que secou entre as páginas
terra
e mofo e pó

precisarei revelar
gosto
da sujeira
e não só nos
cadernos

preciso revelar que gosto da sujeira
exceto quando estou para menstruar
e quero a louça branca brilhante
para contraste com o sangue

certas manhãs ainda não sei
que era esse o sangue nos cadernos
quando a recente, ingênua e assustada
mulher flertava com a morte
sangrenta

um prazer indescritível me
tomava em ver
jorrar nos pequenos tubos
de ensaio dos patologistas
meu sangue vivo que pulsava das artérias
na esterilidade dos laboratórios
até que:

um prazer incontido
a cada mês
um jorro de sangue que pulsa
vermelho e vivo
só pude ver
óbvio
quando me deram nome
e técnica:

num cálice
é possível colher
o sangue que flui
das melífluas entranhas

a melhor gratidão
pelo necessário:

o alimento, o calor,
o gozo
o sangue servido
no copo

já arrisco, grata
exibir a nódoa escura
e sua sombra amarelada
na parte de trás das saias

mas isso só
depois de limpar
a casa e cortar
as unhas e lavar
os panos todos
antes
antes
prefiro a sujeira
até que venha
a vida

há algumas semanas
uma miríade de larvas
no tampo do lixo
meses atrás, dezenas
de moscas lentas
semivivas se arrastando
contra o vidro morno
da janela, certa vez
uma barata na greta
entre a parede
e o porta: emparedei-a

nem todo animalzinho
porém
é malquisto
as formigas, por exemplo,
minúsculas, invisíveis
em sua individualidade,
por vezes cobrem minha
pele e se alimentam
do meu mel
e também carregam
o açúcar da urina
desde os papéis
do banheiro até o
cristal do açucareiro
mesclando doçuras

os ratos, vejo-os
todas as noites
me sinto menos
só nas ruas
do centro à sombra
soturna da figueira
um rato subiu pelo encanamento da privada e atacou a testa
a testa
de uma senhora que dormia sozinha
no terceiro andar
verdade
uma única vez vi
camundongos
em casa os mataram
guincham qualquer dor
aflita
e têm famílias imensas

as aranhas e os pernilongos
os animais da limpeza
as teias das aranhas
extremamente
limpas servem
para armazenar alimentos
contudo
eu mato

a poeira, por sua vez,
desagradável
mas inofensiva não atrai
animais
em uma cidade úmida
como esta
ela se deposita sobre
portas & paredes
cola nas superfícies
com uma oleosidade que me causa sempre
gastura

os cabelos
as roupas
os dentes
precisam estar sempre limpos, afinal
lavar os cabelos
é tirar a crosta da aura
mas já há um poema sobre tirar a crosta

aliás, era isso
uma espécie de aura
a coroa de flores no fundo

 

Cale-se: Poema de entranhas

Nesse 01 de abril a língua do irmão chicoteia minha pele
Devo calar sempre onde quer que seja, agora
não há mais lugar seguro
não tem graça.
O amor se transforma em fel
e borbulha de sapos que tenho de engolir
em mordaça que tenho que vestir.
Amor? Não há mais.
O outro, meu antagonista.
Afasta, por favor, afasta de mim
este cale-se

Ele, de tudo sabe
do que foi, do que é, até mesmo do futuro
que não há
não é machismo, nem ameaça
é conselho.

Cospe medo reproduzido
fala reproduzida
vivemos na era da reprodutibilidade técnica
sem aura
sem alma.
Afasta, eu peço, afasta de mim
este cale-se, irmã.

Estampidos de ódio estouram meus ouvidos
a força prende minhas mãos
gritos oficiais amarram meu corpo
o pelotão venda meus olhos
porretes em massa estupram meus orifícios,
arrancam minhas unhas
quebram meus ossos, um a um
mas não me matam.

Não, porque é crime e paradoxal
é impune, é libertadora a morte.
Afasta, eu suplico, afasta de mim
este cale-se, amigo.