acordei suja de sangue

mataram uma mulher
não a conhecia
pessoalmente
ela não era amiga
minha
nem era amiga
deles

eu a vi pela tela
apenas
vi que corria
perigo
senti
que corria
do medo
porque senti
sua coragem
escutei seu pedido
de socorro
compartilhei seu pedido
de socorro
apenas
como costumamos fazer
no conforto do lar
ignorando o sangue
que respinga
em nossas mãos
que nada
seguram

Sabrina, Dorothy, Marielle, Joana, Maria, Claudia, Priscila, Daniele, Raquel, Paula, Anastácia, Dandara, Jaqueline, Letícia
são tantas
mulheres
que não cabem em um poema
não cabem
em nenhuma igreja
em nenhum cemitério
em nenhuma clínica psiquiátrica
em nenhuma casa
e sabe por que não cabem?
porque não tem cabimento
tanta mulher morrer
por ser quem é
por ser mulher

mataram uma mulher
de novo
e sempre
continuam matando
porque é isso que eles sabem fazer
explorar e matar
aqueles que denunciam
a lama e o caos

mataram uma mulher
e eu já não sei mais
o que importa
pra essas pessoas que fecham os olhos à noite
e dormem
que pensam que a luta por igualdade de gênero
é coisa de um país atrasado

pois, afinal, somos todos humanos, não é mesmo?
não somos homens, nem mulheres, somos pessoas

eu queria acordar e dormir todos os dias me sentindo uma pessoa
mas é difícil, sabe?
porque você me lembra
a todo momento
que eu sou uma mulher
você me come com os olhos
me violenta com suas palavras nojentas
me tira o lugar de fala
me fere com seu descaso
com seu machismo
me mata aos poucos
quando não me mata
de verdade

mas eu não tenho medo não
e sabe por que?
porque a gente chegou num ponto
em que a morte virou coisa banal
e isso é horrendo
eu sei
mas traz uma vantagem:
não temos mais nada a perder
e cada vitória
por menor que ela seja
nos leva ao êxtase
se por um lado, sentimos as dores de todas as mulheres
por outro, vibramos o sucesso de cada uma e de todas
e a nossa luta
não existe arma no mundo
que possa matar