A língua das abóboras

Visto minha saia de outono pra falar da língua nova que aprendi.
Aqui na roça e, em todas as roças, o idioma é outro.
A vida é impiedosa.
A peste imperativa
e os xingamentos que escuto baixinho vindos da comunidade dos inços falam de resistir.
Dentro da ação de cada semente há sempre um tanto de dúvida e outro tanto de esperança.
Não é sobre a espera, mas sobre a ação da forma – trans-mutada – trans form ação.
Sabe aquelas sementes plantadas com uma gota de desejo em cada cova?
Vizinhas leguminosas, as abóboras morangas e cabotiás, essas que moram juntas, ensinam de sua forma e de sua doçura uma para a outra; egocêntricas entreolham-se para ver quem corre mais longe pelo chão ao se esparramarem sobre o território.
Aprender a linguagem da trans form ação, implica em territorializar.
Fincar estacas.
Colher abóboras.
Cortá-las em breves pedaços.
Cozê-las no tempo da lenha.
Abrir covas.
Adubar.
Sentir-se deus ao poder matar
as pragas e arrancar a peste.
Enquanto as abóboras, entregues à sua própria suculência dentro da panela, passam pela glória de correr para dentro de si mesmas.
Derretido todo o sumo, a polpa espessa aceita quente a dominação de quem transforma.
Fazer chimia é dominar um território 
alquimia secular.
Substância ouro que em borbulhas, açúcar, cravo, canela e gengibre surge no tempo arrastado da transfiguração.
É luxo, prazer e alegria.
Uma alegria assim, meio envergonhada como a gente da roça.
Envergonhada é a palavra abstrata que fala flecha direta ao tambor do coração,
certeira no rubor da face e enviesada no olhar.
A língua química atravessa todos os corpos da gente que é Terra.

A fúria

O livro data de 1959. A tradução brasileira, de Lívia Deorsola, só saiu em 2019. Que bom que saiu a tradução brasileira! Afinal, há tantos anos já podemos ler Borges e Bioy Casares em nossa própria língua, e Silvina permanece estrangeira.

É sobre esse sentimento minha leitura do livro, aliás: Silvina é tanto mais estrangeira quando a leio na minha língua. A língua estrangeira de Silvina é a minha língua, e vivo naquele mesmo país onde a perversidade é cometida pelas almas puras, pelas crianças, tanto quanto contra as almas puras e contra as crianças. No país em que somos estrangeiras, eu e Silvina, este país onde crescemos as meninas (os meninos também, suponho, porque li Três Porcos, do Marcelo Labes), neste país não há justiça, e as divindades, bem como as pessoas, não guardam qualquer tipo de coerência em seus atos. Neste país estranho e familiar, a crueldade e o amor habitam os mesmos corpos, e tornar-se humano é bestial, e tornar-se bestial faz parte do que é humano.

As imagens derivam em composições surrealistas, composições como as que vemos claramente nas madrugadas insones e manhãs sonolentas, que se apresentam nas tardes infernalmente abafadas à beira do Rio da Prata, ou do Letes, ou mesmo do mar. Os animais estão presentes em desenhos que a autora, ela própria artista visual, desenha em palavras. São humanos os animais, somos animais os humanos. A Fúria, entidade mítica, eventualmente toma de assalto uns e outros, fundindo-se em horror às expressões humanas de amor.

(OCAMPO, Silvina. A fúria. Trad. Lívia Deorsola. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.)